Todo dia, ao
levantar-me, contemplo na minha sala de estar o retrato de um jovem sorridente,
ao lado do então Presidente da República, Juscelino
Kubitschek de Oliveira. JK esboça um sorriso, mas quem naquele
momento de longínquo fim de ano de 1959,
no anexo do velho Palácio Itamaraty, abre o largo sorriso dos vencedores era o
subscrito, que apesar de ilustre desconhecido no Itamaraty, fizera o difícil
vestibular, cursara o Instituto Rio Branco, e
ora fazia jus ao canudo de Cônsul classe K - que era então como se
designavam os funcionários diplomáticos, no seu grau inicial.
O
largo sorriso explicava muita coisa. Que
um desconhecido, armado apenas do próprio conhecimento, houvesse galgado a
escadaria da diplomacia e nela entrasse, pelos abertos portões dos exames, que
exigiam estudo e mais estudo.
Ao
ver-me como o primeiro aluno da turma, trazendo comigo a alegria de quem vencera árduas provas, na base
exclusiva do estudo, que era naquele tempo a forma imposta de provar a
respectiva capacitação. Se carecesse de demonstrações da realidade de tal
princípio, me sentia, ainda que modestamente, um testemunho dessa verdade
democrática. No exame inicial, que me abrira as portas do Instituto Rio Branco,
ao meu lado se sentara o filho do Secretário-Geral do Itamaraty, na prática o
vice-ministro das Relações Exteriores.
E
ele seria reprovado naquele exame, enquanto eu, virtual desconhecido, armado
apenas do meu conhecimento, ultrapassaria a temível barreira dos exames do
vesti-bular do Instituto Rio Branco, para dois anos após cursá-lo, poder
receber o canudo das mãos de JK, e ouvir-lhe mais tarde o comentário - você é muito moço, rapaz! Pudera! entrara com a idade mínima e pelo
meu esforços - e dos mestres do Instituto Rio Branco - lograra completar a travessia de estudante para a diplomacia.
Na minha larga existência diplomática - cinquenta anos ! -tal grande momento
serviria sempre de incentivo.
Porque a democracia não se demonstra apenas pela batida à porta que
outrora o sonolento morador logo identifica como o leiteiro, a cumprir sua
modesta rotina, e não algum polícia secreto, a prender-me por eventual delito
político. Na França livre, essa expressão - tiens,
c'est le laitier !- trazia verdades conquistas por lutas acérrimas em
séculos passados.
Se o leitor desculpar-me a digressão - que, em verdade, não o é - essa
subversiva e perigosa ideia da democracia tem a ver com os barulhentos,
impetuosos mesmo, ajuntamentos na Pnyx,
nas encostas da ágora, onde se reuniam os representantes do Povo (demos) ateniense, e lá nas respectivas
discussões sobre a cidade (pólis) de
Atenas, lançaram as bases de o que seria a civilização Ocidental, ao
introduzirem pelo exercício da palavra e na representação desse Povo, a análise e discussão dos temas de
interesse da comunidade.
Em verdade, não pretendo cansá-los com longas
descrições de arcanos debates acerca dos problemas do demos ateniense. O meu
escopo é reapresentar o conceito de democracia, esta invenção altamente
subversiva da gente de Atenas, reunida em assembleia, com a participação da
classe alta e também da baixa, i.e. o próprio povo ateniense que não por
coincidência constituíam a maioria.
Dessarte, as discussões na Pnyx, nos arredores da acrópole, não teriam
relevância apenas local. Lançariam as
bases de o que seria muito mais tarde a democracia
ocidental. Nesse contexto, a importância do controle pela maioria do Povo (demos)
ateniense não pode ser subestimada. Não se trata de um simples conceito, mas de
uma ideia-força mundial, que se não seria de pronto aplicada nessa escala,
guardaria para um ávido futuro o seu poder de contágio intelectual.
É inegável, portanto, a dívida da
Civilização Ocidental - que vivemos - com a Helênica. Se tantos outros
conceitos - como o do direito (jus) nos vêm de Roma e da civilização latina, a
influência grega (Atenas) no campo das ideias políticas não é suscetível de
questionamento.
Malgrado os seus muitos inimigos, abertos ou não, não se pode, em sã mente,
subestimar a mega-força da ideia
democrática, que se firmaria na Civilização Ocidental com o transcorrer dos
séculos.
O que confere a intrínseca força a
esta mega ideia ?
Na verdade, a sua inquestionabilidade lógica. Ela se sobrepõe ao poder
real e ao próprio poder religioso. O
primeiro por sustentar-se no suposto direito divino dos reis, que com o passar
dos anos e, sobretudo, dos séculos, descobriu-se a padecer de crescentes
dificuldades de defesa contra a sucessão de sobrevindas contestações, porque
essencialmente a prática demonstrava que se o poder democrático, representado
pela soberania do Povo se sustentava crescentemente com a força do direito da
maioria, cresciam com a educação e a
maior conscientização do Povo as dúvidas quanto à validade do direito divino da realeza.
Também o mesmo poderia ser aplicado como força desestabilizante para ou-tras
formas de poder político, como as fundadas na atividade comercial e no
dinheiro, a par das baseadas nas classes - a nobreza, por sua origem superior
às demais - e por aí afora. A força dos números, se guiada pela luta de classes,
tenderia a reforçar a base de governanças fundadas em sólidas bases, a
princípio de obediência de classes (aristocracia e mesmo monarquia) como foi o
regime de sujeição dos servos da gleba, aquele feudal, que se veria ao cabo
minado pela conscientização das classes ditas inferiores, que apoiadas pela
consciência numérica e, por consequente, desequilíbrio de forças, tenderia a
desestabilizar com o passar dos séculos o feudalismo e a monarquia.
Como se vê pelos escorços acima, o conceito de democracia, i.e.,o governo
do povo - e como no futuro acrescentado - existente
pelo povo e para o povo, tem raiz de força que
se baseia na lógica e na justiça. Se estabelecermos - como foi o caso em
Atenas - com todas as inevitáveis limitações, um governo para o povo, do povo e pelo povo - tal conceito disporá de
inelutável força, se fundado no seu mecanismo básico, do direito das maiorias
de disporem, reunidos em assembleia, dos respectivos destinos, e tal dentro de
uma crescente extensão da respectiva autoridade.
O demos era na essência o
Senhor de Atenas, eis que as suas diferentes tribos compunham a maioria do demos ateniense e, por conseguinte, representavam a ideia-força da
suserania popular, que decidia, por maioria das classes representadas, que
providências tomar quanto à orientação externa
desse demos, bem como as suas providências internas.
Eis aí representadas de forma bastante sumária as características do
poder democrático das classes atenienses reunidas em assembleia. Na essência,
dispor sobre o governo da cidade-estado (e de suas dependências caudatárias) e,
também, com a evolução do poder ateniense, as suas relações com as demais
cidades-estado do mundo helênico, e, em consequência, o seu poder de estabelecer a Paz e declarar a
Guerra.
Daí, defluem os poderes da assembleia de convocar e formar exércitos, de
designar os respectivos comandantes, de conceder-lhes fundos e a autoridade
para levantá-los. Com o crescimento e a consequente pujança de Atenas,
aumentaram as responsabilidades assembleiares, assim como as preocupações na
promoção dos interesses atenienses além dos limites da Cidade-estado, a
princípio restritos, e mais tarde crescentes com as obrigações e direitos
decorrentes da extensão dos respectivos domínios, nesse aspecto não sendo
menores as obrigações decorrentes das relações com as cidades-vassalo.
No mundo helênico, com o passar dos anos crescem as relações com outra
Cidade- Estado, v.g., e tais laços, em tempos de guerra e de paz, devem ser
observados, enquanto cresce a rivalidade entre os dois superpoderes do mundo
helênico - Atenas e Esparta - até a eclosão da chamada Guerra do Peloponeso,
que sustaria, por um tempo, a progressão de Atenas.
Não é decerto meu propósito desenvolver considerações de crônica histórica,
mas sim de eventualmente utilizar-me dos respectivos exemplos para mostrar,
além do nascimento desta mega-ideia da Humanidade - de que a atual Civilização
Ocidental é óbvia credora, tanto do demos
ateniense, quanto da elite da civilização helênica - repor-to-me, como semelha
óbvio, à ideia força da democracia, o governo do Povo, pelo Povo e para o Povo,
conforme substanciado pelos seus discípulos através dos séculos.
Nesse sentido, a presença
estadunidense é inegável, e a sua influência cresceu com a evolução dos
séculos, notadamente através do estabelecimento de uma República nas Américas,
a primeira delas aquela proclamada por George Washington, ao cabo da guerra de
independência, movida e vencida pelo Povo americano contra uma das principais
potências do Universo político de então, a Inglaterra.
Obviamente, não tenho a intenção
de repetir em detalhe os traços desta grande vitória de um povo colonial
contra a forte realeza britânica, com o crescente domínio em contraposição a
outros impérios europeus - França, Espanha e Portugal - que, em muitos casos,
detinham a soberania sobre grandes extensões territoriais, marcadamente a Espanha (Madrid) e Portugal
(Lisboa).
Se bem que a Inglaterra
tivesse rivais territoriais na política europeia, notada- mente França e
Espanha, além do Império Austríaco
(depois Áustria-Hungria), naquele tempo, tanto a Rússia, quanto a Alemanha -
esta última, caminhava com o vagar dos séculos, de expressão geográfica, para
forte realidade política. A dormência, se porventura existia, desapareceria com
a guerra dos Trinta Anos, e a crescente agitação da Reforma, em que a religião
exerce um papel muita vez desestabilizador.
Não desejo, no entanto, ser
acoimado de promover visão que para muitos há de parecer demasiado dinâmica da
história universal.
Não cabem dúvidas, sem
embargo, que a democracia é uma idéia-força da Civilização Ocidental, que é,
queiramos ou não, modulada atualmente pela presença da mega-potência
estadunidense. Ela talvez haja brilhado mais intensamente no passado século XX,
mas ainda é, em um consenso bastante extenso, a principal força
político-militar, semelha existir poucas dúvidas.
Ainda que cresça nos Estados
Unidos a tese do decline, defendida
na im-prensa americana, e alhures, por jornalistas importantes (V. a revista The New Yorker), tese esta que decorre
dos efeitos sobre a superpotência da
desastrosa guerra do Iraque, em que foram gastos pela Administração Bush
júnior bilhões e bilhões de
dólares, na busca tresloucada das armas
de destruição em massa (WMD) do ditador Saddam Hussein, armas essas, seja dito de paso, que jamais existiram, e
constituíram o estranho pretexto para uma guerra sem propósito, que abriria a
desatada sangreira que levou ao dito declínio
(é de notar-se que outro Bush, por ter juízo, evitaria meter-se no atoleiro iraquiano,
e por isso o seu sepultamento, sob a atual e desastrosa presidência
de Donald Trump, e na ótica
comparativa, reuniu todo o contingente apoio da Washington oficial, que por
muitas razões hoje paga um preço exorbitante pelos muitos estranhos torpedos
que foram lançados contra a candidatura
democrata de Hillary Clinton, o
que na prática inverteram o resultado das urnas, e que já tinham criado mais um
candidato democrata (Albert V. Gore) a morrer na praia, apesar de ganhar com
folga na votação numérica contra o republicano George W. Bush Jr. citado.
Cresce, portanto, a
necessidade de fazer uma reforma na legislação eleitoral estadunidense, com
vistas a que Washington leve em conta a série de injustiças históricas produzidas
por esse sistema indireto de votação presidencial,que foi decerto uma grande
descoberta para a jovem democracia americana no século XVIII, mas que
ultimamente - e de forma gritante e embaraçosa tem produzidos estranhos,
estranhíssimos mesmo, resultados para a não tão jovem grande democracia
estadunidense.
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