domingo, 16 de dezembro de 2018

Democracia - magna doação da Grécia ao Mundo


         
          Todo dia, ao levantar-me, contemplo na minha sala de estar o retrato de um jovem sorridente, ao lado do então Presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira.  JK esboça um sorriso, mas quem naquele momento  de longínquo fim de ano de 1959, no anexo do velho Palácio Itamaraty, abre o largo sorriso dos vencedores era o subscrito, que apesar de ilustre desconhecido no Itamaraty, fizera o difícil vestibular, cursara o Instituto Rio Branco, e  ora fazia jus ao canudo de Cônsul classe K - que era então como se designavam os funcionários diplomáticos, no seu grau inicial.
           O largo sorriso explicava muita coisa.  Que um desconhecido, armado apenas do próprio conhecimento, houvesse galgado a escadaria da diplomacia e nela entrasse, pelos abertos portões dos exames, que exigiam estudo e mais estudo.
            Ao ver-me como o primeiro aluno da turma, trazendo comigo a alegria  de quem vencera árduas provas, na base exclusiva do estudo, que era naquele tempo a forma imposta de provar a respectiva capacitação. Se carecesse de demonstrações da realidade de tal princípio, me sentia, ainda que modestamente, um testemunho dessa verdade democrática. No exame inicial, que me abrira as portas do Instituto Rio Branco, ao meu lado se sentara o filho do Secretário-Geral do Itamaraty, na prática o vice-ministro das Relações Exteriores.
             E ele seria reprovado naquele exame, enquanto eu, virtual desconhecido, armado apenas do meu conhecimento, ultrapassaria a temível barreira dos exames do vesti-bular do Instituto Rio Branco, para dois anos após cursá-lo, poder receber o canudo das mãos de JK, e ouvir-lhe mais tarde o comentário - você é muito moço, rapaz!  Pudera! entrara com a idade mínima e pelo meu esforços - e dos mestres do Instituto Rio Branco - lograra completar a travessia  de estudante para a diplomacia.
               Na minha larga existência diplomática - cinquenta anos ! -tal grande momento serviria sempre de incentivo.
                Porque a democracia não se demonstra apenas pela batida à porta que outrora o sonolento morador logo identifica como o leiteiro, a cumprir sua modesta rotina, e não algum polícia secreto, a prender-me por eventual delito político. Na França livre, essa expressão - tiens, c'est le laitier !- trazia verdades conquistas por lutas acérrimas em séculos passados.
                Se o leitor desculpar-me a digressão - que, em verdade, não o é - essa subversiva e perigosa ideia da democracia tem a ver com os barulhentos, impetuosos mesmo, ajuntamentos na Pnyx, nas encostas da ágora, onde se reuniam os representantes do Povo (demos) ateniense, e lá nas respectivas discussões sobre a cidade (pólis) de Atenas, lançaram as bases de o que seria a civilização Ocidental, ao introduzirem pelo exercício da palavra e na representação desse  Povo, a análise e discussão dos temas de interesse da comunidade.
               Em verdade, não pretendo cansá-los com longas descrições de arcanos debates acerca dos problemas do demos ateniense.  O meu escopo é reapresentar o conceito de democracia, esta invenção altamente subversiva da gente de Atenas, reunida em assembleia, com a participação da classe alta e também da baixa, i.e. o próprio povo ateniense que não por coincidência constituíam a maioria.
                 Dessarte, as discussões na Pnyx, nos arredores da acrópole, não teriam relevância  apenas local. Lançariam as bases de o que seria muito mais tarde a democracia ocidental.  Nesse contexto, a importância  do controle pela maioria do Povo (demos) ateniense não pode ser subestimada. Não se trata de um simples conceito, mas de uma ideia-força mundial, que se não seria de pronto aplicada nessa escala, guardaria para um ávido futuro o seu poder de contágio intelectual.
                   É inegável, portanto, a dívida da Civilização Ocidental - que vivemos - com a Helênica. Se tantos outros conceitos - como o do direito (jus) nos vêm de Roma e da civilização latina, a influência grega (Atenas) no campo das ideias políticas não é suscetível de questionamento.
                   Malgrado os seus muitos inimigos, abertos ou não, não se pode, em sã mente, subestimar  a mega-força da ideia democrática, que se firmaria na Civilização Ocidental com o transcorrer dos séculos.
                  O que confere a intrínseca força a esta mega ideia ?
                  Na verdade, a sua inquestionabilidade lógica. Ela se sobrepõe ao poder real e ao próprio poder religioso.  O primeiro por sustentar-se no suposto direito divino dos reis, que com o passar dos anos e, sobretudo, dos séculos, descobriu-se a padecer de crescentes dificuldades de defesa contra a sucessão de sobrevindas contestações, porque essencialmente a prática demonstrava que se o poder democrático, representado pela soberania do Povo se sustentava crescentemente com a força do direito da maioria, cresciam  com a educação e a maior conscientização do Povo as dúvidas quanto à validade do direito divino da realeza.
                  Também o mesmo poderia ser aplicado como força desestabilizante para ou-tras formas de poder político, como as fundadas na atividade comercial e no dinheiro, a par das baseadas nas classes - a nobreza, por sua origem superior às demais - e por aí afora. A força dos números, se guiada pela luta de classes, tenderia a reforçar a base de governanças fundadas em sólidas bases, a princípio de obediência de classes (aristocracia e mesmo monarquia) como foi o regime de sujeição dos servos da gleba, aquele feudal, que se veria ao cabo minado pela conscientização das classes ditas inferiores, que apoiadas pela consciência numérica e, por consequente, desequilíbrio de forças, tenderia a desestabilizar com o passar dos séculos o feudalismo e a monarquia.
                   Como se vê pelos escorços acima, o conceito de democracia, i.e.,o governo
do povo - e como no futuro acrescentado - existente pelo povo e para o povo, tem raiz de força que  se baseia na lógica e na justiça. Se estabelecermos - como foi o caso em Atenas - com todas as inevitáveis limitações, um governo para o povo, do povo  e pelo povo - tal conceito disporá de inelutável força, se fundado no seu mecanismo básico, do direito das maiorias de disporem, reunidos em assembleia, dos respectivos destinos, e tal dentro de uma crescente extensão da respectiva autoridade.
                   O demos  era na essência o Senhor de Atenas, eis que as suas diferentes tribos compunham  a maioria do demos ateniense e, por conseguinte, representavam a ideia-força da suserania popular, que decidia, por maioria das classes representadas, que providências tomar quanto à orientação externa desse demos, bem como as suas providências internas.           
                   Eis aí representadas de forma bastante sumária as características do poder democrático das classes atenienses reunidas em assembleia. Na essência, dispor sobre o governo da cidade-estado (e de suas dependências caudatárias) e, também, com a evolução do poder ateniense, as suas relações com as demais cidades-estado do mundo helênico, e, em consequência,  o seu poder de estabelecer a Paz e declarar a Guerra.
                  Daí, defluem os poderes da assembleia de convocar e formar exércitos, de designar os respectivos comandantes, de conceder-lhes fundos e a autoridade para levantá-los. Com o crescimento e a consequente pujança de Atenas, aumentaram as responsabilidades assembleiares, assim como as preocupações na promoção dos interesses atenienses além dos limites da Cidade-estado, a princípio restritos, e mais tarde crescentes com as obrigações e direitos decorrentes da extensão dos respectivos domínios, nesse aspecto não sendo menores as obrigações decorrentes das relações com as cidades-vassalo.
                   No mundo helênico, com o passar dos anos crescem as relações com outra Cidade- Estado, v.g., e tais laços, em tempos de guerra e de paz, devem ser observados, enquanto cresce a rivalidade entre os dois superpoderes do mundo helênico - Atenas e Esparta - até a eclosão da chamada Guerra do Peloponeso, que sustaria, por um tempo, a progressão de Atenas.
                   Não é decerto meu propósito desenvolver considerações de crônica histórica, mas sim de eventualmente utilizar-me dos respectivos exemplos para mostrar, além do nascimento desta mega-ideia da Humanidade - de que a atual Civilização Ocidental é óbvia credora, tanto do demos ateniense, quanto da elite da civilização helênica - repor-to-me, como semelha óbvio, à ideia força da democracia, o governo do Povo, pelo Povo e para o Povo, conforme substanciado pelos seus discípulos através dos séculos.
                   Nesse sentido, a presença estadunidense é inegável, e a sua influência cresceu com a evolução dos séculos, notadamente através do estabelecimento de uma República nas Américas, a primeira delas aquela proclamada por George Washington, ao cabo da guerra de independência, movida e vencida pelo Povo americano contra uma das principais potências do Universo político de então, a Inglaterra.
                 Obviamente, não tenho a intenção de repetir em detalhe os traços desta grande vitória de um povo colonial contra a forte realeza britânica, com o crescente domínio em contraposição a outros impérios europeus - França, Espanha e Portugal - que, em muitos casos, detinham a soberania sobre grandes extensões territoriais,  marcadamente a Espanha (Madrid) e Portugal (Lisboa).
                 Se bem que a Inglaterra tivesse rivais territoriais na política europeia, notada- mente França e Espanha,  além do Império Austríaco (depois Áustria-Hungria), naquele tempo, tanto a Rússia, quanto a Alemanha - esta última, caminhava com o vagar dos séculos, de expressão geográfica, para forte realidade política. A dormência, se porventura existia, desapareceria com a guerra dos Trinta Anos, e a crescente agitação da Reforma, em que a religião exerce um papel muita vez desestabilizador.
                  Não desejo, no entanto, ser acoimado de promover visão que para muitos há de parecer demasiado dinâmica da história universal.
                  Não cabem dúvidas, sem embargo, que a democracia é uma idéia-força da Civilização Ocidental, que é, queiramos ou não, modulada atualmente pela presença da mega-potência estadunidense. Ela talvez haja brilhado mais intensamente no passado século XX, mas ainda é, em um consenso bastante extenso, a principal força político-militar, semelha existir poucas dúvidas.
                   Ainda que cresça nos Estados Unidos a tese do decline, defendida na im-prensa americana, e alhures, por jornalistas importantes (V. a revista The New Yorker), tese esta que decorre dos efeitos  sobre a superpotência da desastrosa guerra do Iraque, em que foram gastos pela Administração Bush júnior  bilhões e bilhões de dólares,  na busca tresloucada das armas de destruição em massa (WMD) do ditador Saddam Hussein, armas essas, seja dito de paso, que jamais existiram, e constituíram o estranho pretexto para uma guerra sem propósito, que abriria a desatada sangreira que levou ao dito declínio (é de notar-se que outro Bush, por ter juízo, evitaria meter-se no atoleiro iraquiano, e por isso o seu sepultamento, sob a atual e desastrosa  presidência  de Donald Trump,  e na ótica comparativa, reuniu todo o contingente apoio da Washington oficial, que por muitas razões hoje paga um preço exorbitante pelos muitos estranhos torpedos que foram lançados contra a candidatura  democrata de  Hillary Clinton, o que na prática inverteram o resultado das urnas, e que já tinham criado mais um candidato democrata (Albert V. Gore) a morrer na praia, apesar de ganhar com folga na votação numérica contra o republicano George W. Bush Jr.  citado.
                     Cresce, portanto, a necessidade de fazer uma reforma na legislação eleitoral estadunidense, com vistas a que Washington leve em conta a série de injustiças históricas produzidas por esse sistema indireto de votação presidencial,que foi decerto uma grande descoberta para a jovem democracia americana no século XVIII, mas que ultimamente - e de forma gritante e embaraçosa tem produzidos estranhos, estranhíssimos mesmo, resultados para a não tão jovem grande democracia estadunidense.

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