Quando em 2014, Vladimir Putin lança a Rússia em guerra
não-declarada contra a Ucrânia – casus
belli a derrubada de seu protegido Viktor
Yanukovich da presidência – dar-se-ia o presidente russo conta de que
iniciava processo que colocaria em jogo a détente
pós-dissolução da União Soviética?
Com efeito,
em seguida à atrevida anexação da Crimeia, o presidente russo quebrara a
espécie de entente cordiale que se estabelecera tempos após às intervenções de
Moscou na Georgia e na Moldova. As consequências negativas desse imperialismo
do Kremlin contra o
estrangeiro-próximo[1] afetaram as relações de
Washington e Moscou sobretudo no segundo mandato de George W. Bush.
Numa jogada
política cuja habilidade somente seria reconhecida mais tarde, Putin cederia a
presidência para o seu fiel aliado Dmitri Medvedev, que no famoso par
seria o good cop (bom guarda) em
relação ao bad cop (encarnado por
Putin).
No quadriênio
de Medvedev (2008-2012), este
estabeleceria boa relação com Barack Obama. Entrementes, Putin ficou como
Primeiro Ministro. Passado o intervalo, Vladimir Putin retomaria a presidência,
e por algum tempo o bom clima estabelecido pelo fiel Medvedev prevaleceria.
Sem embargo,
a máscara cairia com a invasão branca da Ucrânia, além da anexação da península
da Crimeia. Esta seria o turning-point[2] nas relações de
Moscou com Washington e o Ocidente. Além de ser posta para fora do G-8, o grupo das principais nações
mundiais (de que está excluída também a China), a Rússia sofreria uma série de
sanções pontuais, de natureza econômico-financeira, que puniria notadamente o
círculo de cupinchas de Putin. Não podendo serem aplicadas sanções através do
Conselho de Segurança das Nações Unidas (de que é membro permanente, e com
direito de veto, a Federação Russa), Obama preferiu atingir as finanças de milionários
membros mais próximos da curriola de gospodin
Putin.
Prosseguindo
a guerra por procuração contra a Ucrânia – a despeito de dois cessar-fogo
subscritos em Minsk, no segundo semestre de 2014 e no primeiro semestre de 2015
– a surda hostilidade entre Moscou e Washington igualmente continuou.
Conforme
este blog assinalou na Colcha de Retalhos C 22, de catorze de junho corrente, a
insegurança provocada nos países bálticos e em outras nações, como a Polônia,
Hungria, Romênia e Bulgária, previu destacamentos com soldados americanos, além
de armamentos.
Não houve
menção da Ucrânia, por ora, ainda que
Kiev enfrente duas ameaças complementares. Por um lado, os ditos ‘rebeldes
pró-Rússia’, que são forças de partiggiani[3] industriadas e
equipadas por Moscou, e que atuam notadamente em Luhansk e Donetzk,
no extremo leste da Ucrânia; e, por outro lado, os chamados voluntários russos, que são fluxos de
soldados supostamente autônomos do Kremlin, mas na verdade peças da mesma
engrenagem, providos de equipamentos e armas do exército russo.
Há ainda um
outro objetivo próximo à costa do Mar de Azov, que é Mariupol. Esta cidade tem
posição mais bem defendida pelas forças ucranianas. Dada a sua importância, a postura da
Alemanha, em termos de concessão de maior ajuda a Kiev, tenderia a mudar, em
caso de ataque russo, como o teria assinalado a própria Chanceler Angela
Merkel.
Dadas as
características desse desafio à soberania da Ucrânia, depois de primeiro
momento de choque, está aumentando a reação ucraniana, que vem tendo respaldo
de toda a sociedade nacional, excetuados enclaves na área extremo oriental.
O que as
forças armadas ucranianas carecem é de serem mais bem equipadas, com armamento
pesado de defesa para enfrentar não só os rebeldes, estipendiados e
estruturados pelo aliado russo, mas também o maior desafio colocado pelo
invasor moscovita.
Por outro
lado, o Presidente Vladimir V. Putin tem ultimamente transmitido sinais de
crescente beligerância. Parece querer assumir o posto da finada União Soviética,
que em processo literalmente único na história se teria esfacelado em 1992 sob
o peso de exigências logísticas e militares, as quais por influência da perestroika e da glasnost – além do temido princípio das nacionalidades – teriam provocado
o desaparecimento da própria estrutura
de governo.
Agora, Putin
deseja colocar a Federação Russa como estado sucessor da União Soviética. Se a Rússia continua a ser um grande país, há
muita diferença entre a sua extensão e capacidade de poder, em relação à antiga
União Soviética.
Não
obstante, dentro desse espírito, Putin acaba de anunciar a decisão de instalar
40 mísseis intercontinentais. Segundo o presidente russo, esses mísseis fazem parte
de um programa de modernização militar e serão “capazes de passar pelos
sistemas de defesa antiaérea mais sofisticados.”
Segundo o
Secretário-Geral da NATO, Jan Stoltenberg, a iniciativa russa é “desestabilizadora
e perigosa”, o que constituiria, a seu ver, “padrão de comportamento” do
governo Putin.
Há
realmente uma sensação de perplexidade diante dessa atitude belicosa. “Essa ameaça é injustificada, é como
desembainhar a espada nuclear. Essa é uma das razões pela qual estamos aumentando
o grau de prontidão e preparando nossas
forças”, completou Stoltenberg.
Ainda não
se determinaram quais são os escopos reais de Putin, à vista dessa disposição.
Quer acaso demonstrar que não é apenas um mero ‘poder regional’, como lhe acoimou Barack Obama recentemente?
Pode ser.
Mas a Rússia, no frigir dos ovos, não tem um PIB que se compare ao da
Superpotência, nem, por conseguinte, base econômico-financeira que sustente as
fanfarronadas de discursos circundados por fardas e quepes militares.
Se Putin
deseja investir contra os moinhos de vento das potências visadas pelos seus
quarenta novos mísseis intercontinentais, resta determinar qual o objetivo
dessa ameaça. No paralelo com o episódio célebre em que seu êmulo
D.Quixote se assinalou, sabemos quão
rápido e desastroso para o valeroso cavaleiro da Mancha foi esse embate.
( Fontes: Folha de S. Paulo,Putin’s Kleptocracy, de
Karen Dawisha,Simon & Schuster,
D.Quijote de la Mancha, Miguel de Cervantes, cap.VIII da Primeira Parte)
[1] O ‘estrangeiro próximo’ é um
conceito deveras presente no vocabulário do poder do Kremlin.. Assim são referidos os países menores, considerados na
órbita de influência de Moscou, que podem inclusive serem mencionados na
legislação interna da Federação Russa.
[2] Mudança determinante.
[3] Guerrilheiros.
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