Não são apenas
as decapitações de cristãos, de idólatras e de fiéis de outras seitas nefastas
que constituem o aspecto obnóxio do Exército Islâmico.
Aborrece a
muitos e ao próprio escriba, em particular, o seu ímpeto destrutivo de ídolos
da Antiguidade.
Um animal
irracional em um antiquário ou loja de cristais há de causar calculáveis
perdas. Há de quebrar muitos adornos, pratos e até serviços de cristal da
Boêmia, mas o infeliz proprietário, se lamenta os estragos, verá muitos
artefatos preservados, porque a ação do agente no caso depende tão só do
imponderável. Tudo que foi lascado,
rachado, quebrado, até espatifado, terá sido por alimária irracional. Como não
tem lógica, nem razão, os seus estragos se apegam a uma caprichosa curva. Os
prejuízos infligidos obedecem à probabilidade do acaso. Mas nunca terão –
segundo nos mostram os vídeos de militantes islâmicos radicais – o empenho
bestial da aniquilação.
Este odium maquinal e programado, que após a conquista para o ISIS de ulterior
espaço de terra, se volta contra os sítios históricos, provoca a princípio
perplexidade. Não é capricho de colecionador, mas reação compreensível de quem
visite museus em terras do Ocidente. Nesse contexto, tive a felicidade
profissional de visitar grandes museus, como o Arqueológico de Atenas, ou o
Novo Museu da Acrópole – que espera, com paciência de santo, a devolução do
frontal do Parthenon, pilhado, no início do século XIX, por Lord Elgin,e que
continua a ser exposto como se nada fora, no British Museum. Bem
sabemos que não só as grandes potências têm grandes museus mas também a Santa
Sé, sem falar na Itália que chega ao requinte de distribuir-se em miríades de
sítios, quase como se fora um parque arqueológico. Igualmente a Grécia pode ser
vista quase como um museu ao ar livre, mostruário esse que se distribui pelas
ilhas do Egeu, o Peloponeso, a Grécia continental, sem falar na Ásia Menor, em
que as ruinas da civilização helênica repontam no que hoje são terras turcas.
Talvez a bela surpresa de encontrar, nas colinas batidas pelo deus Eolos uma jóia da arquitetura helênica
que é o tempo de Apolo epikouros,
seja encantadora vinheta reservada aos viajantes pelos caminhos da Arcádia.
Ao registrar
essa visita à construção dedicada a culto hoje esquecido (mas protegida com o
amor dedicado às antigas aras do deus Apolo
que vem em socorro), recordo-me que o seu famoso arquiteto o dispôs no topo de
monte que descortina os verdes mas acidentados relevos e planuras da Arcádia.
Lá não se vêem mais pastores, porém os ventos continuam a soprar naqueles
páramos, a tal ponto que a autoridade helênica cuida de preservá-lo com pesadas
cortinas de cautchu.
Hoje os visitantes aos templos
helênicos – e por fortuna muitos resistem às insídias do tempo – deparam nas
suas hieráticas colunas a austeridade imposta por milênios de paz, conflitos,
invasores com o seu cortejo de desgraças e sinistros. Com efeito, a construção
do templo passa a enfeixar solitária todas as belezas e adornos – imagens
votivas, doações em agradecimento, mementos de grandes vitórias – que a
divindade Cronos (o tempo) carregou.
Assim, não foi esse tempo que os levou, mas a longa monotonia dos séculos que
os caprichos dos raios e dos impios sóem quebrar.
Antes de voltar aos vândalos da
pós-modernidade (que são os islâmicos radicais do ramo sunita), gostaria de
partilhar com o leitor outra experiência havida quando foram exibidos os
chamados Bronzes de Riete, São duas estátuas em tamanho quase natural
que na época foram encontradas em sítio
do Mar Tirreno, em metal. Se não me engano uma das figuras guardava os olhos de
porcelana. Eram obras originais trazidas de Helás (Grécia), que um desastre
náutico (naufrágio) preservara para a modernidade. A trireme fora ao fundo, e
pode-se imaginar o prejuízo do rico romano que as encomendara de algum escultor
helênico do século I A.C. Ora esse infortúnio, uma vez descoberto e retirado
das profundezas marinhas, após a sua longa restauração retornava às aras de
glória – depois de intervalo de quase dois mil anos – preservados pela
intervenção do deus Poseidon.
Essa
digressão – que, na verdade, não o é – pode ser um memento de como enfrentar os
azares da sorte e, sobretudo, dos séculos.
O Deus
Cronos é indiferente. A natureza humana sendo o que é, e os cultos religiosos
sendo o que são – e, em termos de destruição, temos infelizmente de computar a
intolerância religiosa, como fenômeno não-negligenciável.
Para que
se entenda o potencial destrutivo de energúmenos armados de porretes e
martelos, bulldozers, moto-niveladoras, além de explosivos, tenha-se presente,
como assinala Nicolas Pelham no seu artigo “ISIS
& o renascimento xia no Iraque” que, após a conquista de Mosul no norte
do Iraque, militantes islâmicos se lançaram à destruição da cidadela do Rei
Assírio Sargon II, em Khorsabad, a
dezesseis km ao norte de Mosul.
Como
mote ao trabalho de arrasar essa cidadela do oitavo século A.C. , assim como
das estátuas colossais de touros alados,
com cabeças humanas, que a guardaram por mais de vinte e nove séculos, se
passou vídeo de um pregador dizendo: “Estamos livrando o mundo do politeísmo e
espalhando o monoteísmo através do planeta”.
Compondo
a gravidade do problema, como assinala
Pelham, o Iraque tem doze mil
sítios arqueológicos. Nesse contexto, Amir al-Jumaili, professor de
antiguidade na Universidade de Mosul,
já computou a destruição de cerca 160
sítios desde junho de 2014, quando o exército islâmico se apoderou de Mosul, a segunda cidade em importância
no Iraque.
Mas há
outros sinais, referidos no artigo de Pelham, que a visão dos líderes do ISIS é
a do lucro com os tesouros da Antiguidade.
Segundo Kamel, o diretor do museu de Bagdad, o pessoal do ISIS “está
escavando e não só destruindo.” Por trás
da defesa do monoteismo, o que se
depreende “ é que não passam de ladrões
de tumbas”.
Consoante o
vídeo do ISIS, tomado em fevereiro de 2015,
acerca do trabalho de demolição do museu de antiguidades em Mosul, o seu escopo era o de mostrar para o mercado
o que eles não destruíram.
De acordo com al-Jumaili, das
trinta peças originais na sala de entrada do museu Hatra, o ISIS destruíu dez.
Eles não filmaram as salas pré-históricas, islâmicas e assírias (estas as mais
valiosas), porque as peças e artefatos estão à venda.
Segundo o
professor al-Jumaili, os danos infligidos à sala Hatra tem por objetivo
aumentar a demanda e elevar os preços no mercado negro.
Há
estimativas no governo iraquiano que o Califado já terá ganho centenas de
milhões de dólares com as suas vendas de peças assírias. Segundo assessor do Governo, o ISIS é a organização terrorista mais bem
financiada, com cerca de oito bilhões de
dólares. Com os bombardeios americanos das suas instalações petrolíferas, o
ISIS quer diversificar os rendimentos. Consoante o articulista, esses
valores não são confirmáveis, mas são julgados prováveis por iraquianos
bem-informados, que Pelham consultou.
Há muita
especulação quanto à destinação dos milhões de dólares auferidos pelo ISIS.
Além da construção da auto-estrada que vai de Mosul no Iraque a Raqqa, a sua
capital (mencionada em artigo anterior), há poucos sinais quanto ao destino dos
bilhões do ISIS. O que se sabe é que o rapto e o estupro de milhares de moças Yazidi pelo ISIS foi ‘legalizado’ pela
liderança como ‘restos de guerra’.
Por outro lado, o mesmo ‘direito de guerra’ valeu para apoderar-se da
propriedade e dos bens de centenas de milhares de pessoas que fugiram da
cidade.
O ISIS
não está sozinho em termos de decapitações, segundo Nicolas Pelham. Nenhum grupo, entretanto, faz tanto
publicidade e até mesmo ‘show’ dessa
prática. Especula-se que a motivação deste ‘espetáculo’ seria provocar os seus
oponentes no exterior a acirrar a perseguição aos grupos Salafistas. Segundo essa hipótese, a expulsão dos salafis favoreceria o ISIS, porque aumentaria a sua base de
fanáticos.
O
Primeiro-Ministro do Iraque, Haider al-Abadi estima que o
exército do ISIS teria 43% de estrangeiros em vinte mil homens. Em algumas áreas de Mosul, como Josak, um
distrito com pessoas de maior poder aquisitivo, se ouviria mais inglês e
francês do que árabe.
Estrangeiros ocupam também postos importantes na hierarquia do ISIS. O
departamento de educação da Universidade de Mosul é dirigido por um binacional
germano-egípcio, Sameh Dhu al-Kurnain. Ele fechou a seção francesa (fundada
pelo orientalista Louis Massignon no princípio dos anos cinquenta), mas não o
departamento inglês. Por outro lado, proibiu os iraquianos de completarem os estudos no estrangeiro.
No
Iraque, há relativo otimismo quanto à recuperação do território perdido para o
ISIS. No entanto, subsistem muitas
dúvidas como evoluirá a situação entre a minoria sunita e a maioria xiita. O
Primeiro-Ministro al-Abadi é um xiita moderado, que tem atitude bastante mais
aberta com relação à cooperação com a etnia sunita, do que o seu antecessor al-Maliki. No entanto, consoante Pelham,
al-Abadi não teria muita força para realizar seus objetivos, por mais louváveis
que eles sejam.
Espera-se
muito na ajuda americana, o que depois da confusão que aprontou George Bush e a
guerra rápida, planejada pelo Secretário da Defesa Donald Rumsfeld, que teve as
consequências amplamente conhecidas, deveria merecer mais ceticismo.
Parece mui
pouco crível que surja outra corrente nos Estados Unidos favorável a uma rápida
guerra para livrar o Iraque dos invasores do ISIS, como nos tempos do Vice Dick
Cheney e do Secretário da Defesa, Donald
Rumsfeld. Depois do enorme prejuízo causado pelas loucuras de George W. Bush na economia americana,
provocando, inclusive, o que ora se denomina o declínio da Superpotência, parece-me difícil acreditar que grupelho belicista,
junto com os neoconservadores, consiga uma
vez mais trazer de novo o soldado americano para o atoleiro iraquiano...
“Fonte: ‘ISIS & the Shia Revival in Iraq’, artigo de
Nicolas Pelham, em The New York Review
of Books, 4 de junho de 2015, número
10.”
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