Mencionei em blog do ano passado relevante denúncia da doutora Annie
Sparrow, na New York Review,
sobre o método digamos retrô do
ditador da Síria, de servir-se de antigas pestes para atingir populações que
residam em terras não por ele controladas.
Reportei-me
então à poliomielite, que em parte por intermédio de Bashar al-Assad continua
a grassar no Oriente Médio. O ditador de Damasco tem visão abrangente do
combate aos grupos insurretos. Assim,
ele denega às áreas sob eventual controle rebelde (incluindo Deir Ezzor, Raqqa,
Daraa e os arrabaldes de Damasco) o tratamento por cloro de água contaminada por esgotos. Algumas
gotas desse produto bastariam para desinfetar água e mãos, mas o bom Bashar não o disponibiliza para
áreas rebeldes. Igualmente, em áreas sitiadas, como Ghouta, o fornecimento de
água costuma ser cortado, como medida punitiva.
Tenha-se
presente que tais privações são agravadas por deslocamentos populacionais, com
cerca de dez milhões de pessoas enxotadas de seus lares, e constrangendo a
reunião de três ou quatro famílias por alojamento, muita vez em tenebrosas
condições de falta de higiene. A par disso, 642 mil sírios vivem hoje debaixo
de cerco militar, em condições ainda piores.
Endemias
antes controladas reaparecem com força. Assim, a miases (myiasis) – a infecção
por larvas associada com a falta d’água – apareceu em Ghouta em 2014,
simultaneamente com o corte do precioso líquido.
Em Deir Ezzor,
água da torneira não tratada vem diretamente do rio Eufrates, a cerca de cem
metros a jusante de um cano de esgoto. Em consequência, houve trinta mil casos
de hepatite
A através do país, com várias mortes de crianças pequenas.
A 24 de
fevereiro do ano corrente, a Organização Mundial da Sáude difundiu Alerta
sobre o risco de cólera na Síria. Esse temor foi aumentado pelo súbito
surgimento em Hama em meados de março de mais de quinhentos casos de diarréia
aguda. Pode ter consequências letais a
combinação de vigilância inadequada, a
falta de laboratórios para testar o cólera, e diversas criminosas ocultações (cover ups) pelo Ministério sírio da
Saúde (?) do cólera em 2005 e 2009, e da poliomielite em 2013, indicam, segundo
Sparrow, que o cólera pode mesmo estar de volta.
Consoante a
dra. Annie Sparrow, seus colegas em Damasco, em que a maior parte
da água é clorada, tem sofrido de
hepatite; outros cairam de cama com a febre tifóide.
Velhas
doenças, que a higiene e o tratamento químico afastara, retornam nessa terra da
passagem. O Tifo voltou a ser endêmico
em Deir Ezzor, a sudeste, na mesma área em que a poliomielite reapareceu em
2013. A administração de Daraa (donde se originou a guerra civil síria), no sul, acaba de reportar mais de duzentos
casos de febre aftosa, que atinge rapidamente crianças expostas a beber água
não-clorada, contaminada pelas fezes de uma criança infectada. A sarna e os
piolhos estão por toda a parte. Muitas enfermidades transmitidas pela água
não-tratada, como poliomielite, giardia-intestinalis
(infecção que pode ser mortal para infantes), esquistossomose e legionela, são
de diagnóstico e tratamento difícil, sem doutores especializados, instalações
médicas bem equipadas para coletar sangue, fezes, e amostras de pele e urina,
assim como de laboratórios onde o patógeno possa ser isolado – todos esses
meios e equipamentos que o governo sírio destrói sistematicamente em áreas
rebeldes.
Como
assinala a dra. Annie Sparrow, a
pólio, a doença que mais atinge a infância poderia até não haver ressurgido na
Síria, se o cloro fosse disponível. O vírus
da pólio é extremamente resistente,e o cloro é um dos poucos agentes que podem
destruí-lo. A pólio não reapareceu no
Iraque, apesar de uma guerra de oito anos com vacinação irregular, por causa do
uso continuado do cloro. Na Síria, o não-fornecimento da vacina contra a pólio
foi reforçado pela falta de tratamento de águas e esgotos. Por isso, essa
terrível doença reapareceu em menos de dois anos de conflito.
Os crimes de Assad de lesa-humanidade não
param por aí. Em Aleppo, ao norte, em
2012, houve a destruição da indústria farmacêutica – dentro do sistemático e
planejado ataque do governo sírio contra instalações sanitárias em áreas
dominadas pelos rebeldes. Recentemente,
de quatro casos de infecção de malária, um homem morreu por falta de
cloroquinino, um composto com base no cloro.
Apesar
da vã ameaça de Obama – a famosa linha vermelha – o governo Assad continua
recorrendo à guerra química (apesar de ter sido forçado a destruir parte de
seus estoques de gás sarin). Por isso, e
como o cloro tem usos legítimos, o governo sírio não foi obrigado a destruir os
seus estoques de cloro. Como o bom
Bashar Assad bem sabe, o cloro em forma gasosa causa sufocação e pode ser
fatal. Assim, apesar de violar a
Convenção sobre Armas Químicas, que o Presidente da Síria assinou e ratificou,
ele continua a utilizar o cloro gasoso em ataques contra aldeias rebeldes (Talmenes,
Al Tamanah e Kafr Zita, em abril de 2014).
Diante
da ilegal e inumana campanha do ditador Assad de emprego de armas químicas, as
vítimas desses ataques devem ser lavadas, descontaminadas e colocadas em áreas
ventiladas. Compreende-se, por conseguinte, que isso tenha de ser feito em céu
aberto (os hospitais foram sistematicamente destruídos pela aviação
síria). Como não é possível a utilização
de tal recurso, por causa dos ataques aéreos sírios, é inteligível quanto
torna-se precária a higienização a céu aberto, sem os necessários instrumentos.
Afinal, a seis de março de 2015, chegou ao Conselho de Segurança das
Nações Unidas o exame desse gritante atentado contra os direitos humanos de
parte do governo sírio.
O CSNU
condenou o uso do cloro como arma química.
A resolução serviu para algo? Aparentemente, não. A pedido da Federação Russa, presidida por gospodin Vladimir Putin, os membros do
Conselho consentiram em omitir o nome do governo sírio, como quem perpetrara a
repetida, ignóbil e criminosa ação...
Essa omissão me parece de inigualável hipocrisia. Apagar o nome do
facínora e criminoso de guerra Bashar al-Assad, equivale a deboche, a
desperdício da ação do Conselho de Segurança, eis que, se se condena um crime sem apontar o culpado,
a quem se favorece senão o ditador sírio e o seu poder protetor, a Rússia de
Putin ?
Há
outras instâncias de baixarias – com graves riscos médicos - igualmente imputáveis a Assad, mas também a
outros países, com a recusa de distribuir às populações diretamente atingidas
pela agência responsável meios sanitários para combater as diversas enfermidades,
sob o pretexto de que podem cair em mãos do Exército Islâmico. Não me delongarei na série de ignomínias agora
extensíveis ao setor médico, mas se deve ter presente que, com todas as
restrições que se possa fazer ao ISIS, resta de pé, no entanto, o mandato
hipocrático de que as populações civis afetadas não são culpadas pelos atos do E.I., nem devem ter denegado todo o indispensável
apoio médico.
(Fonte: apud artigo da
doutora Annie Sparrow “Siria: Morte pelo Cloro de Assad”, em The New York
Review, 7 de maio de 2015, número 8, pp. 40/42)
Nenhum comentário:
Postar um comentário