sábado, 13 de junho de 2015

Assad e a Guerra Química

                                   

         Mencionei em blog do ano passado relevante denúncia da doutora Annie Sparrow, na New York Review, sobre o método digamos retrô do ditador da Síria, de servir-se de antigas pestes para atingir populações que residam em terras não por ele controladas.

         Reportei-me então à poliomielite, que em parte por intermédio de Bashar al-Assad continua a grassar no Oriente Médio. O ditador de Damasco tem visão abrangente do combate aos grupos insurretos.  Assim, ele denega às áreas sob eventual controle rebelde (incluindo Deir Ezzor, Raqqa, Daraa e os arrabaldes de Damasco) o tratamento por cloro  de água contaminada por esgotos. Algumas gotas desse produto bastariam para desinfetar água e mãos, mas o bom Bashar não o disponibiliza para áreas rebeldes. Igualmente, em áreas sitiadas, como Ghouta, o fornecimento de água costuma ser cortado, como medida punitiva.

         Tenha-se presente que tais privações são agravadas por deslocamentos populacionais, com cerca de dez milhões de pessoas enxotadas de seus lares, e constrangendo a reunião de três ou quatro famílias por alojamento, muita vez em tenebrosas condições de falta de higiene. A par disso, 642 mil sírios vivem hoje debaixo de cerco militar, em condições ainda piores.

         Endemias antes controladas reaparecem com força. Assim, a miases (myiasis) – a infecção por larvas associada com a falta d’água – apareceu em Ghouta em 2014, simultaneamente com o corte do precioso líquido.

        Em Deir Ezzor, água da torneira não tratada vem diretamente do rio Eufrates, a cerca de cem metros a jusante de um cano de esgoto. Em consequência, houve trinta mil casos de hepatite A através do país, com várias mortes de crianças pequenas.

        A 24 de fevereiro do ano corrente, a Organização Mundial da Sáude difundiu  Alerta sobre o risco de cólera na Síria. Esse temor foi aumentado pelo súbito surgimento em Hama em meados de março de mais de quinhentos casos de diarréia aguda. Pode ter consequências letais  a combinação de vigilância inadequada,  a falta de laboratórios para testar o cólera, e diversas criminosas ocultações (cover ups) pelo Ministério sírio da Saúde (?) do cólera em 2005 e 2009, e da poliomielite em 2013, indicam, segundo Sparrow, que o cólera pode mesmo estar de volta.

            Consoante a dra. Annie Sparrow,  seus colegas em Damasco, em que a maior parte da água é clorada,  tem sofrido de hepatite; outros cairam de cama com a febre tifóide.

             Velhas doenças, que a higiene e o tratamento químico afastara, retornam nessa terra da passagem.  O Tifo voltou a ser endêmico em Deir Ezzor, a sudeste, na mesma área em que a poliomielite reapareceu em 2013. A administração de Daraa (donde se originou a guerra civil síria), no sul, acaba de reportar mais de duzentos casos de febre aftosa, que atinge  rapidamente crianças expostas a beber água não-clorada, contaminada pelas fezes de uma criança infectada. A sarna e os piolhos estão por toda a parte. Muitas enfermidades transmitidas pela água não-tratada, como poliomielite, giardia-intestinalis (infecção que pode ser mortal para infantes), esquistossomose e legionela, são de diagnóstico e tratamento difícil, sem doutores especializados, instalações médicas bem equipadas para coletar sangue, fezes, e amostras de pele e urina, assim como de laboratórios onde o patógeno possa ser isolado – todos esses meios e equipamentos que o governo sírio destrói sistematicamente em áreas rebeldes.

               Como assinala a dra. Annie Sparrow, a pólio, a doença que mais atinge a infância poderia até não haver ressurgido na Síria, se o cloro fosse disponível.  O vírus da pólio é extremamente resistente,e o cloro é um dos poucos agentes que podem destruí-lo.  A pólio não reapareceu no Iraque, apesar de uma guerra de oito anos com vacinação irregular, por causa do uso continuado do cloro. Na Síria, o não-fornecimento da vacina contra a pólio foi reforçado pela falta de tratamento de águas e esgotos. Por isso, essa terrível doença reapareceu em menos de dois anos de conflito.

               Os crimes de Assad de lesa-humanidade não param por aí.  Em Aleppo, ao norte, em 2012, houve a destruição da indústria farmacêutica – dentro do sistemático e planejado ataque do governo sírio contra instalações sanitárias em áreas dominadas pelos rebeldes.  Recentemente, de quatro casos de infecção de malária, um homem morreu por falta de cloroquinino, um composto com base no cloro.

                Apesar da vã ameaça de Obama – a famosa linha vermelha – o governo Assad continua recorrendo à guerra química (apesar de ter sido forçado a destruir parte de seus estoques de gás sarin).  Por isso, e como o cloro tem usos legítimos, o governo sírio não foi obrigado a destruir os seus estoques de cloro.  Como o bom Bashar Assad bem sabe, o cloro em forma gasosa causa sufocação e pode ser fatal.  Assim, apesar de violar a Convenção sobre Armas Químicas, que o Presidente da Síria assinou e ratificou, ele continua a utilizar o cloro gasoso em ataques contra aldeias rebeldes (Talmenes, Al Tamanah e Kafr Zita, em abril de 2014).

                   Diante da ilegal e inumana campanha do ditador Assad de emprego de armas químicas, as vítimas desses ataques devem ser lavadas, descontaminadas e colocadas em áreas ventiladas. Compreende-se, por conseguinte, que isso tenha de ser feito em céu aberto (os hospitais foram sistematicamente destruídos pela aviação síria).  Como não é possível a utilização de tal recurso, por causa dos ataques aéreos sírios, é inteligível quanto torna-se precária a higienização a céu aberto, sem os necessários instrumentos.

                   Afinal, a seis de março de 2015, chegou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas o exame desse gritante atentado contra os direitos humanos de parte do governo sírio.

                   O CSNU condenou o uso do cloro como arma química.  A resolução serviu para algo? Aparentemente, não.  A pedido da Federação Russa, presidida por gospodin Vladimir Putin, os membros do Conselho consentiram em omitir o nome do governo sírio, como quem perpetrara a repetida, ignóbil e criminosa ação...

                   Essa omissão me parece de inigualável hipocrisia. Apagar o nome do facínora e criminoso de guerra Bashar al-Assad, equivale a deboche, a desperdício da ação do Conselho de Segurança, eis que,  se se condena um crime sem apontar o culpado, a quem se favorece senão o ditador sírio e o seu poder protetor, a Rússia de Putin ?

                    Há outras instâncias de baixarias – com graves riscos médicos  - igualmente imputáveis a Assad, mas também a outros países, com a recusa de distribuir às populações diretamente atingidas pela agência responsável meios sanitários para combater as diversas enfermidades, sob o pretexto de que podem cair em mãos do Exército Islâmico.  Não me delongarei na série de ignomínias agora extensíveis ao setor médico, mas se deve ter presente que, com todas as restrições que se possa fazer ao ISIS, resta de pé, no entanto, o mandato hipocrático de que as populações civis afetadas não são culpadas pelos atos do E.I., nem devem ter denegado todo o indispensável apoio médico.
 

 

(Fonte: apud artigo da doutora Annie Sparrow “Siria: Morte pelo Cloro de Assad”, em The New York Review, 7 de maio de 2015, número 8, pp. 40/42)

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