Por primeira vez, Vladimir V. Putin, o
senhor do Kremlin, cujo poder se iguala ao dos antigos Tzares, ousou
investir na vasta área que os russos chamam de ‘o estrangeiro próximo’ em país
de grande extensão territorial.
Decerto o
ataque retaliatório contra Kiev já estava programado se o quisling Viktor Yanukovych caísse.
Oriundo da região oriental ucraniana, de fala russa na sua maior parte, Yanukovych
não trepidara em aderir ao convite de gospodin Putin para que o seu país
aderisse à União Aduaneira com Moscou.
Ao enjeitar o
acordo com a União Europeia, o presidente Yanukovych sabia que ía na contramão
das aspirações de seus compatriotas. Basta ver a atual situação da vizinha Polônia, que optou pela união com Bruxelas,
para que se compreenda o anelo da maioria do povo ucraniano.
Ficar atrelado
a Moscou significava não só submeter-se à vontade do gigante vizinho do Norte,
mas aderir ao atraso e a uma situação similar à de Bielorrússia. Entrementes, a
iniciativa de Varsóvia já apresenta vias de progresso e de maior estabilidade
econômico-financeira.
Para a maioria
dos ucranianos, a dicotomia entre Moscou e Bruxelas se resume a um futuro mais
brilhante e economicamente desenvolvido ou a perenização da situação de vassalo
em um cenário de mais do mesmo.
Não espanta,
por conseguinte, que a reação da população, a princípio de Kiev, assim como de
boa parcela da Ucrânia, tenha sido de rejeição do acordo com o Kremlin, que
seria a continuação da antiga dependência com o grande vizinho do Norte.
Esse protesto
logo espoucaria na Praça Maidan, onde
se concentram diversos órgãos estatais da Ucrânia. A princípío pacíficas, as manifestações
perduraram nessa grande praça central da capital. Diversos edifícios públicos
foram ocupados, a começar pela administração municipal.
Os partidários
do Presidente a princípio acreditaram que o severo frio do tardo outono e do
inverno tenderia a resolver a questão, induzindo a coletividade a desistir,
tangida pelo gélido vento e as longas e inclementes vigílias sob o inverno
boreal.
Mas a
disposição da heróica aglomeração era movida pelos aguilhões da esperança e de
oportunidades de uma vida melhor, em meio às benesses do desenvolvimento e do
progresso tecnológico e industrial. A comparação com o ramerrame de virtual
colônia de Moscou, equiparada à Minsk, os fortalecia para arrostar as nevadas
do general-inverno. Os ideais por vezes aquecem mais do que taças de chá
tomadas no aconchego dos próprios lares.
E, assim, o que
seria um capricho, multitudinário é verdade, mas havido como fugaz, estendeu-se
muito além de o que pensavam os próximos de Yanukovych.
Não é aqui o
lugar de descrever uma luta obstinada contra as insídias das nevadas e dos
transidos frios dos grandes espaços em longas, traiçoeiras noites. Sem embargo,
todas as previsões, o sonho de uma vida melhor os fez atravessar, muita vez
transidos por temperaturas muito além do suportável, a interminável espera por outra aurora, em que a conscientização da
multidão a fizera galgar a resolução – e a consequente imantação de mais forças
aliadas, agora também no Parlamento – que a transformaria de um protesto para a
contestação de uma situação, e dali para situação revolucionária, em que o povo
formava barricadas no exemplo parisiense.
Houve
tentativas em desespero dos aliados de Yanukovych de vencê-los à bala. Sem
embargo, tal movimento correspondeu ao estrebuchar do poder desse aliado de
Moscou.
Como sói
acontecer em tais situações, o povo amotinado recebeu o apoio da maioria do
Parlamento, e a posição de Viktor Yanukovych se tornou de repente
insustentável.
Do palácio
presidencial para a fuga, de início para povoação na fronteira com a Rússia, e
em seguida a internação na terra pela qual optara em detrimento dos interesses
pátrios, a situação de Yanukovych se transformava em mais um governante
asilado, que foge de seus compatriotas, para jogar-se uma vez mais nos braços de
seu amo e senhor.
A sua
debandada, contudo, teria outra consequência, que não tardaria em deslanchar,
sob ordens expressas de Vladimir Vladimirovich Putin.
Com efeito,
não tolerando avanias nem supostas afrontas ao respectivo poder de Senhor de
todas as Rússias, não é que Vladimir Vladimirovich dispusera o planejamento do
castigo que seria visitado àquela turba insolente e provocadora?
Como se
estivesse no século passado, ou até antes, o seu estado-maior pôs em
funcionamento o que seria um evento que
a Humanidade julgara cousa de tempos idos, quando se respeitava a força mas não
os tratados e a regra de pacta sunt
servanda. Dessarte, como se estivesse regulando questão interna o
Presidente de todas as Rússias determinou que se deslanchasse a operação de
reconquista da Crimeia. Assim, como déspota do século XIX ou XX, gospodin Putin dispunha que a península,
cedida por Nikita Khruchev à Ucrânia em 1954, voltasse agora ao abraço de
Mãe Rússia...
Não é o caso de aqui repetir essa
flagrante afronta contra a soberania da Ucrânia. A Assembleia Geral das Nações
Unidas, por recomendação de 27/03/2014 aprovada por cem países, onze contra e
58 abstenções, considerou inválida a
anexação da Crimeia pela Federação Russa.
A agressão
russa contra a Ucrânia, a pretexto de defender as pretensões dos separatistas
pro-Rússia, na Ucrânia oriental,
continua, na prática, enviando pontuais reforços aos rebeldes, e em caso
de necessidade, intervindo diretamente com incursões ilegais através da
fronteira ucraniana, seja com o fornecimento de material ofensivo e defensivo,
seja reforçando destacamentos rebeldes em eventual dificuldade.
Diante desse
inaceitável desafio imperialista ao território da livre Ucrânia, com a
nacionalidade ucraniana submetida a tal ataque – que configura guerra de
conquista, de todo inadmissível consoante o direito internacional público, o
Parlamento federal de Kiev aprovou lei que proíbe o uso de símbolos do
comunismo e que prevê punição de até dez anos de prisão para os infratores.
Nesses termos,
centenas de estátuas de Lenin e de outros líderes soviéticos começaram a ser
retiradas de seus pedestais. Cidades, nomes de rua, acidentes geográficos,
inclusive rios deverão ter as indicações mudadas. Sem embargo, caberá ao
Parlamento federal confirmar os novos nomes das grandes cidades.
No transe ora
enfrentado pela Ucrânia, se entenderá porque os cidadãos se tem empenhado em
retirar motu proprio as estátuas dos
respectivos pedestais. Por circunstâncias
compreensíveis, tal apenas não ocorre na área do país ora dominada pelos
rebeldes pró-Rússia.
Em reação à
invasão da Rússia e os problemas conexos com o separatismo no Leste de enclaves
pró-Rússia, esse gigantesco trabalho de desmantelamento de monumentos, lápides
e estátuas adquire conotação de esforço voluntário da nacionalidade empenhada
em uma catarse patriótica. Diante das características da invasão russa, o
incitamento à rebeldia em localidades e centros urbanos, e a maneira com que
tal sanhudo desrespeito ao direito internacional, em cínica ação coordenada com
punhados de rebeldes ditos pro-Rússia, prossegue a invasão e a afronta à
soberania da Ucrânia.
Malgrado os
protestos do Ocidente e as sanções pontuais de Estados Unidos e da União Europeia,
a Rússia continua a afrontar a regra dos pacta sunt servanda e a invadir de
forma cínica um país vizinho que não lhe deu qualquer motivo para proceder de
tal forma.
Como a
assistência do Ocidente e da NATO não
inclui o fornecimento de armamento tanto de defesa, quanto ofensivo para as
forças armadas da Ucrânia, a situação desse grande país, submetida a essa
afronta, e por ora sem contar com qualquer ajuda em termos de defesa e de
material bélico, não há decerto de surpreender que o Povo livre da Ucrânia não
só apoie, mas também participe da campanha de arrasar os monumentos de
personalidades dessa grande potência que lhe inflige, por cobiça territorial,
essa não provocada e ilegal invasão.
Parece-me, por
conseguinte, mais do que difícil, afrontoso que se venha recomendar a um país
pacífico, que é vítima de agressão não-provocada, que preserve e mantenha
monumentos e estátuas que refletem a passada dominação territorial, de que o
Povo ucraniano tem todos os motivos de repudiar e repelir.
( Fonte: O
Globo )
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