segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Ucrânia para os ucranianos


                                      
         Por primeira vez, Vladimir V. Putin, o senhor do Kremlin, cujo  poder se iguala ao dos antigos Tzares, ousou investir na vasta área que os russos chamam de ‘o estrangeiro próximo’ em país de grande extensão territorial.

        Decerto o ataque retaliatório contra Kiev já estava programado se o quisling Viktor Yanukovych caísse. Oriundo da região oriental ucraniana, de fala russa na sua maior parte, Yanukovych não trepidara  em aderir ao convite de gospodin Putin para que o seu país aderisse à União Aduaneira com Moscou.

       Ao enjeitar o acordo com a União Europeia, o presidente Yanukovych sabia que ía na contramão das aspirações de seus compatriotas. Basta ver a atual situação da vizinha  Polônia, que optou pela união com Bruxelas, para que se compreenda o anelo da maioria do povo ucraniano.

       Ficar atrelado a Moscou significava não só submeter-se à vontade do gigante vizinho do Norte, mas aderir ao atraso e a uma situação similar à de Bielorrússia. Entrementes, a iniciativa de Varsóvia já apresenta vias de progresso e de maior estabilidade econômico-financeira.

       Para a maioria dos ucranianos, a dicotomia entre Moscou e Bruxelas se resume a um futuro mais brilhante e economicamente desenvolvido ou a perenização da situação de vassalo em um cenário de mais do mesmo.

       Não espanta, por conseguinte, que a reação da população, a princípio de Kiev, assim como de boa parcela da Ucrânia, tenha sido de rejeição do acordo com o Kremlin, que seria a continuação da antiga dependência com o grande vizinho do Norte.

       Esse protesto logo espoucaria na Praça Maidan, onde se concentram diversos órgãos estatais da Ucrânia.  A princípío pacíficas, as manifestações perduraram nessa grande praça central da capital. Diversos edifícios públicos foram ocupados, a começar pela administração municipal.

       Os partidários do Presidente a princípio acreditaram que o severo frio do tardo outono e do inverno tenderia a resolver a questão, induzindo a coletividade a desistir, tangida pelo gélido vento e as longas e inclementes vigílias sob o inverno boreal.

       Mas a disposição da heróica aglomeração era movida pelos aguilhões da esperança e de oportunidades de uma vida melhor, em meio às benesses do desenvolvimento e do progresso tecnológico e industrial. A comparação com o ramerrame de virtual colônia de Moscou, equiparada à Minsk, os fortalecia para arrostar as nevadas do general-inverno. Os ideais por vezes aquecem mais do que taças de chá tomadas no aconchego dos próprios lares.

      E, assim, o que seria um capricho, multitudinário é verdade, mas havido como fugaz, estendeu-se muito além de o que pensavam os próximos de Yanukovych.

      Não é aqui o lugar de descrever uma luta obstinada contra as insídias das nevadas e dos transidos frios dos grandes espaços em longas, traiçoeiras noites. Sem embargo, todas as previsões, o sonho de uma vida melhor os fez atravessar, muita vez transidos por temperaturas muito além do suportável, a interminável espera por  outra aurora, em que a conscientização da multidão a fizera galgar a resolução – e a consequente imantação de mais forças aliadas, agora também no Parlamento – que a transformaria de um protesto para a contestação de uma situação, e dali para situação revolucionária, em que o povo formava barricadas no exemplo parisiense.

       Houve tentativas em desespero dos aliados de Yanukovych de vencê-los à bala. Sem embargo, tal movimento correspondeu ao estrebuchar do poder desse aliado de Moscou.

       Como sói acontecer em tais situações, o povo amotinado recebeu o apoio da maioria do Parlamento, e a posição de Viktor Yanukovych se tornou de repente insustentável.

        Do palácio presidencial para a fuga, de início para povoação na fronteira com a Rússia, e em seguida a internação na terra pela qual optara em detrimento dos interesses pátrios, a situação de Yanukovych se transformava em mais um governante asilado, que foge de seus compatriotas, para jogar-se uma vez mais nos braços de seu amo e senhor.

        A sua debandada, contudo, teria outra consequência, que não tardaria em deslanchar, sob ordens expressas de Vladimir Vladimirovich Putin.

        Com efeito, não tolerando avanias nem supostas afrontas ao respectivo poder de Senhor de todas as Rússias, não é que Vladimir Vladimirovich dispusera o planejamento do castigo que seria visitado àquela turba insolente e provocadora?

        Como se estivesse no século passado, ou até antes, o seu estado-maior pôs em funcionamento  o que seria um evento que a Humanidade julgara cousa de tempos idos, quando se respeitava a força mas não os tratados e a regra de pacta sunt servanda. Dessarte, como se estivesse regulando questão interna o Presidente de todas as Rússias determinou que se deslanchasse a operação de reconquista da Crimeia. Assim, como déspota do século XIX ou XX, gospodin Putin dispunha que a península, cedida por Nikita Khruchev à Ucrânia em 1954, voltasse agora ao abraço de Mãe Rússia...

        Não é o caso de aqui repetir essa flagrante afronta contra a soberania da Ucrânia. A Assembleia Geral das Nações Unidas, por recomendação de 27/03/2014 aprovada por cem países, onze contra e 58 abstenções,  considerou inválida a anexação da Crimeia pela Federação Russa.

        A agressão russa contra a Ucrânia, a pretexto de defender as pretensões dos separatistas pro-Rússia, na Ucrânia oriental,  continua, na prática, enviando pontuais reforços aos rebeldes, e em caso de necessidade, intervindo diretamente com incursões ilegais através da fronteira ucraniana, seja com o fornecimento de material ofensivo e defensivo, seja reforçando destacamentos rebeldes em eventual dificuldade.

        Diante desse inaceitável desafio imperialista ao território da livre Ucrânia, com a nacionalidade ucraniana submetida a tal ataque – que configura guerra de conquista, de todo inadmissível consoante o direito internacional público, o Parlamento federal de Kiev aprovou lei que proíbe o uso de símbolos do comunismo e que prevê punição de até dez anos de prisão para os infratores.

       Nesses termos, centenas de estátuas de Lenin e de outros líderes soviéticos começaram a ser retiradas de seus pedestais. Cidades, nomes de rua, acidentes geográficos, inclusive rios deverão ter as indicações mudadas. Sem embargo, caberá ao Parlamento federal confirmar os novos nomes das grandes cidades.

       No transe ora enfrentado pela Ucrânia, se entenderá porque os cidadãos se tem empenhado em retirar motu proprio as estátuas dos respectivos pedestais.  Por circunstâncias compreensíveis, tal apenas não ocorre na área do país ora dominada pelos rebeldes pró-Rússia.

        Em reação à invasão da Rússia e os problemas conexos com o separatismo no Leste de enclaves pró-Rússia, esse gigantesco trabalho de desmantelamento de monumentos, lápides e estátuas adquire conotação de esforço voluntário da nacionalidade empenhada em uma catarse patriótica. Diante das características da invasão russa, o incitamento à rebeldia em localidades e centros urbanos, e a maneira com que tal sanhudo desrespeito ao direito internacional, em cínica ação coordenada com punhados de rebeldes ditos pro-Rússia, prossegue a invasão e a afronta à soberania da Ucrânia.

        Malgrado os protestos do Ocidente e as sanções pontuais de Estados Unidos e da União Europeia, a Rússia continua a afrontar a regra dos pacta sunt servanda e a invadir de forma cínica um país vizinho que não lhe deu qualquer motivo para proceder de tal forma.

        Como a assistência do Ocidente e da NATO não inclui o fornecimento de armamento tanto de defesa, quanto ofensivo para as forças armadas da Ucrânia, a situação desse grande país, submetida a essa afronta, e por ora sem contar com qualquer ajuda em termos de defesa e de material bélico, não há decerto de surpreender que o Povo livre da Ucrânia não só apoie, mas também participe da campanha de arrasar os monumentos de personalidades dessa grande potência que lhe inflige, por cobiça territorial, essa não provocada e ilegal invasão.

        Parece-me, por conseguinte, mais do que difícil, afrontoso que se venha recomendar a um país pacífico, que é vítima de agressão não-provocada, que preserve e mantenha monumentos e estátuas que refletem a passada dominação territorial, de que o Povo ucraniano tem todos os motivos de repudiar e repelir.

 

( Fonte:  O  Globo )

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