É lugar
comum que a natureza abomina o vácuo. Dessa constatação tão banal quanto
lógica, salta aos olhos que a terra de ninguém em que se transformara a larga
faixa oriental da Síria, esse antigo espaço de passagem entre os próximos
Ocidente e Oriente não permaneceria assim por muito. Se a natureza abomina o
vácuo, o recuo de um movimento tenderá a ser desestabilizador a médio prazo.
Faltando à Liga Rebelde poder bélico para quebrar o
impasse, tal estado de coisas não iria perdurar por muito. Nesse sentido, o
crescimento do Exército Islâmico se prevaleceu de dois fatores: (a) a aparição
de virtual terra de ninguém entre o ressurgente poder do regime alauíta dos
Assad e o núcleo duro da minoria sunita do Iraque, submetido a um Estado xiita
em Bagdá; e (b) a piora objetiva da maioria sunita na Síria, com o
enfraquecimento do campo contrário a Bashar al-Assad e o reforço da
coligação xiita (Assad mais Teerã, além do continuado apoio da Rússia e do Hezbollah).
A própria
debilidade do lado sunita para muitos surgia como mais aparente do que real.
Com efeito, faltava aglutinação e coordenação ao Suni. A liga dos descontentes
desta seita majoritária no Islam clamava por uma reação. Nesses termos, além da maioria sunita na Síria, cujo
desconforto com estado de coisas desfavorável, tinha evoluido para demandas agressivas (mas ainda políticas) por mais democracia. A
brutal e desproporcional repressão do regime alauíta às passeatas e
manifestações pacíficas constituiria na
prática o detonador da guerra civil na Síria.
Não
obstante, o capítulo da revolução sunita na Síria, por não ter levado à
derrubada do regime dos Assad – como durante certo espaço de tempo tinha sido
havida como certa, ocasionando inclusive a defecção de diversos aliados e parentes
do clã dominador, e até previsões russas de terminal enfraquecimento do lado
defendido pelo Kremlin – acabaria por
introduzir uma nova situação, como acima referido.
E o
surgimento de novo turning point[1] nessa
conflagração não passa, na verdade, de virtual reconfiguração dos fatores em
liça, acrescida e exacerbada pela entrada de aparente novo personagem nessa
luta intestina entre o tronco (sunna)
e a facção contestadora (xia) nessa
larga faixa do médio oriente.
O califado
do Exército Islâmico tem para a sua eventual consecução dois elementos básicos:
(a) aglutinação da dispersa maioria sunita no cenário médio-oriental; e (b) sua
reconfiguração valendo-se de cenário triunfalista da reação islâmica – a
conjunção de poderes sob a figura tradicional do Califa.
Para a
implementação deste escopo – a formação de Estado militarmente forte e com
localização geográfica determinada – entram as coordenadas oportunistas do ISIS (caráter nomádico de sua
localização; acirramento das contraposições contra os principais adversários no
universo árabe; recrutamento do proletariado
interno [2] no Ocidente).
O Califado
para sobreviver olha para os poderes sunitas e suas eventuais dissensões
internas. Também no lado oportunista – e consciente de seu papel de fanal do ressurgimento sunita no Oriente
Médio – conta com a minoria sunita no Iraque seja como virtual integrante do
Califado, seja como apoiador externo de sua implantação. A liderança do ISIS tem como seu maior aliado o poder xiita no Iraque, como prefigurado pelo
anterior Primeiro Ministro iraquiano, Nuri
al-Maliki. Al-Maliki não teve a visão de congregar as duas principais
seitas iraquianas (a shia e a minoritária suni). Fê-lo a tal ponto que se transformou em poder
de desagregação no Iraque, e por isso teve ao cabo de renunciar. Sucedido pelo xia moderado Xaider al-Abadi, ainda não se mostrou como capaz de controlar o xia
e de integrar as duas grandes correntes islâmicas, com vistas a viabilizar o
Iraque.
Por
força dessa situação e da calamitosa condição do exército iraquiano, até o
presente Bagdá não se mostra capaz de lidar militarmente com o ISIS.
O Iraque ora deve apoiar-se em
Teherã para enfrentar o Exército Islâmico. O seu exército, dada a incúria e a
corrupção endêmicas, não tem mostrado condições de constituir-se em adversário
eficaz do ISIS. Ironicamente, pela
sua situação lastimável, tanto em termos de disposição, quanto de liderança, as
forças iraquianas muita vez servem de carne de canhão para o Exército Islâmico.
Além
disso o ISIS se tem prevalecido da
precariedade das forças armadas de Bagdá para transformá-las em virtuais e
involuntárias fornecedoras de equipamento pesado para as forças islâmicas.
A
assistência americana prestada à Bagdá não tem até o presente surtido maior
efeito. Pode ser que dar condições de lutar contra e enfrentar de forma
militarmente coordenada às motivadas formações do ISIS seja um desafio estrutural e não conjuntural para os
assessores americanos do Exército regular do Iraque.
Como
a história por vezes se repete, tal situação poderia configurar o inútil
apoiamento concedido pelos Estados Unidos às forças do Viet-Nam do Sul, contra
as do Viet-Cong e às do Norte.
Até
o presente, o ISIS se tem apropriado
do equipamento pesado proporcionado por Washington às forças armadas
iraquianas. É uma forma de certo eventual e necessariamente precária a que
recorre, por falta de melhor escolha, o Exército Islâmico.
No
seu avanço a leste, através do Curdistão e do Iraque central, o ISIS tem levado a melhor contra a
milícia peshmerga pelo armamento
deficiente desses últimos, malgrado o valor bélico dos curdos. Já no caso de
suas incursões na área de Ramadi, o exército islâmico prevalece pelo falta de
preparo e de qualquer disciplina tática (e mesmo disposição para a luta) de seu
opositor iraquiano (qualquer semelhança com as divisões de Saddam Hussein na
guerra contra o Irã, em que Bagdá levou a melhor, constitui mera e acidental
coincidência).
Até o presente, o Ocidente montou uma grande aliança contra o ISIS.
Inexiste, no entanto, por temor de reincidir em velhas e perigosas sendas, um
braço terreste dessa confederação
(excluídas, obviamente, as ineficazes e ineficientes forças do novo Iraque). A
única manifestação desse poder está em associação aérea – de que a parte
preponderante é desempenhada pelos EUA. Ora, são muito conhecidas as limitações
desses ataques aéreos. São tática e pontualmente de grande letalidade, mas –
excluídas opções politicamente inaceitáveis – no plano do domínio territorial
são de escassa eficácia.
A própria resistência da ‘capital’ Raqqa aos bombardeios dos esquadrões de Tio Sam constitui indício cabal dessa
limitação que é mais política do que militar.
Nesse
contexto, houve de parte do ISIS recente tentativa de levar ao território
estadunidense, a própria ação terrorista. Pelo seu total malogro, no entanto, tal
ação, que se pretendeu oportunista,
não teve, além da eliminação dos terroristas, quaisquer consequências de maior
peso.
Cabe, por fim, determinar se os possíveis avanços territoriais do Exército
Islâmico continuarão com linha análoga à do Talibã no Iraque (a estúpida
destruição estatuária do Buda).
O
artigo do New York Times sobre os
métodos do ISIS se reporta à
circunstância de os integrantes do Exército Islâmico, após a tomada da cidade
desértica de Palmira, destruiram a
notória prisão de Tadmur, há muito
utilizada pelo Estado de Assad para a detenção e tortura de presos políticos.
Essa mensagem difere bastante dos anteriores procedimentos do ISIS, no que tange a ruinas e monumentos
de longínqua antiguidade, em muitos casos considerada como Patrimônio da
Humanidade pela UNESCO.
Dado o anterior comportamento filisteu do ISIS, destruindo peças e ruinas de cidades e núcleos históricos situados em territórios
conquistados pelo braço armado do Califado, e as compreensíveis reações mundiais diante desta postura vandálica e
bestial, é de colocar-se a interrogação
se o Exército Islâmico, de acordo com variações passadas, mostrará alguma
flexibilidade no capítulo (como poderia indicar a detonação de efeito político
da prisão de Tadmur), ou se persistirá dentro da anterior boçalidade.
( Fonte: The New York Times, A.J.Toynbee, A
Study of History )
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