Com trágica oportunidade, lembrou Kafka
e o processo o desembargador Lédio
Andrade, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A torrente dos
acontecimentos terá causado este
longo hiato, mas nunca será demasiado
tarde para que se recorde infâmia praticada contra um justo.
Há dois meses atrás morria um justo, Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Cancellier, o Cau, fora preso pela Polícia Federal, na chamada Operação Ouvidos
Moucos, na manhã de catorze de setembro. Sem o saber, ele era investigado pela
delegada Erika Mialik Marena, ex-coordenadora da Operação Lava-Jato, em
Curitiba, e mais tarde, da Ouvidos Moucos, em Florianópolis.
Havia suspicácia acerca do reitor da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que, com 59 anos de idade, não
tinha nenhum antecedente penal: seria a suposta tentativa de obstruir uma investigação sobre desvios no
programa de educação à distância - feita sobretudo por um declarado desafeto do
reitor, o corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, integrante da
Advocacia-Geral da União em Santa Catarina.
Com efeito, no depoimento que prestou
no inquérito da P.F., o próprio Prado contou sua contrariedade no que tange a
Cancellier, em medida administrativa de redução de custos, por haver cortado gratificação de R$ 1 mil (hum mil
reais). Nem sequer cogitou a delegada a
possibilidade de retaliação pessoal.
Além disso o espetaculoso figurino da
prisão foi bastante além do necessário, como sói acontecer. Segundo a própria Polícia Federal, 115 policiais foram mobilizados para prender
Cancellier e mais seis professores da UFSC. No dia da prisão, a manchete no site da P.F. tinha cavalar erro, eis que apresentava a Operação Ouvidos
Moucos como se combatesse "desvio de mais de R$ 80 milhões".
Tal valor, como depois explicaria a
Delegada Érika, e sem mais aquela, era o total
de repasses do Ministério da Educação para o programa de ensino à
distância ao longo de dez anos (2005 a 2015), quando Cancellier sequer era
reitor (só entrou nessas funções a partir de maio de 2016!)
Como se tal não fora bastante, no mesmo dia 14 de setembro, depois de depor na
Polícia Federal, o Reitor, sem que até o presente ninguém haja explicado o motivo, foi levado,
como se condenado estivesse, para a
Penitenciária de Florianópolis. Dentro
do ritual reservado aos criminosos, teve os pés agrilhoados, as mãos algemadas
e, nu, foi submetido à revista íntima, vestiu o uniforme de presidiário e ficou
em uma cela na ala de segurança máxima.
Não surpreende, de resto, que, cardiopata, diante desta profusa e brutal
humilhação, passasse mal, sendo
examinado e medicado por seu cardiologista.
Trinta horas depois, a pedido
do advogado Hélio Rubens Brasil, uma
Juíza federal relaxa a prisão do Reitor Cancellier de Olivo.
Dezoito dias depois, a dois de
outubro do ano corrente, o Reitor Cancellier, com 59 anos de idade, se atira do
sétimo andar de shopping de
Florianópolis. "A minha morte foi decretada quando fui banido da
universidade!!!" - são as suas últimas palavras, escritas em bilhete.
Cinco dias antes do desfecho, o
próprio reitor descreve para o jornal O Globo: "A humilhação e o vexame a
que fomos submetidos há uma semana - eu e outros colegas da Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC) - não tem precedentes na história da instituição".
Depois da prisão, o
desembargador Lédio Andrade o recebeu em
casa, para um jantar de levantamento de ânimo entre poucos amigos. "Cau
estava sob efeito de remédios psiquiátricos. O pouco que falou foi para narrar
o que passou na penitenciária. " E acrescentou Andrade: Ele foi vítima de
um sistema que condena sem defesa, clamorosamente contrário à
Constituição", disse o desembargador
do TJ-SC.
Catarinense de Tubarão, filho
de operário e costureira, Cancellier foi liderança do movimento estudantil contra a ditadura, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois
foi jornalista. Assessorou o senador Nelson Wedekin, em Brasília, durante a
Constituinte de 1987/88. Nos anos 1990,
de volta a Florianópolis, concluíu o curso de Direito e seguiu a carreira
acadêmica.
Deixa três parentes diretos:
o matemático Acioli Antônio, irmão mais velho; o jornalista Júlio César, irmão
mais novo, e o filho Mikhail, doutor
em Direito, como o pai, e também professor da UFSC. Em outubro, Acioli Antônio e o advogado Hélio
Rubens Brasil estiveram com o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato
Jardim, a quem entregaram uma petição de seis páginas pela instauração de
"procedimento administrativo para apurar a responsabilidade da delegada Érika
Mialik Marena pelos abusos e excessos cometidos
na denominada Operação Ouvidos
Moucos."
A assessoria de imprensa do
ministério informou ao Estado que a petição foi processada e tramita na forma
de processo administrativo, atualmente
na Polícia Federal. Na PF, segundo o Ministério da Justiça, a corregedoria
abriu procedimento para verificar a notícia-crime descrita na petição da
família. O procedimento está sendo
analisado pelo Núcleo da Polícia
Judiciária. Ao fim da análise, que está em fase de execução, haverá um parecer sobre a existência do
crime.A depender de o que diga o parecer, abre-se um inquérito sobre a delegada.
A prisão temporária do
reitor e de seus colegas da UFSC foi pedida pela delegada Érika à juíza
federal Juliana Cassol. Ouvido o Ministério Público Federal (MPF) - onde o
procurador da República André Bertuol deu
parecer favorável - Juliana autorizou, concordando com o argumento de
risco à investigação, entre outros. A
prisão foi relaxada pela juíza federal Marjorie Freiberguer, em momento que
Juliana estava de licença médica. Quando
retornou, ela criticou o relaxamento. O
Estado tentou falar com as duas juízas e o procurador Bertuol. Ninguém quis
falar.
"Queremos urgência na apuração das responsabilidades de todos
os responsáveis pela prisão que resultou na morte de Cau, incluindo a decisiva
pressão do algoz ( o corregedor
Hickel do Prado) ", diz o outro irmão, Júlio Cesar Olivo. Prado é citado no documento entregue ao
ministro da Justiça como "subordinado e oposicionista político".
Na
semana imediatamente anterior à prisão, Cancellier esteve em Portugal,
participando de um seminário. Ao voltar, em
13 de setembro, autorizou seu chefe de gabinete, Aureo Moraes, a abrir processo
administrativo disciplinar contra o corregedor, pedido pelo professor Gerson Rizzatti. Prado ainda tentou uma
liminar contra a portaria que abria o processo, e o afastava até a conclusão,
mas o juiz federal Osny Cardoso Filho não a concedeu. Cancellier foi preso no
dia seguinte.
No dia 23 de outubro, a
vice-reitora Alacoque Erdmann, que o sucedeu, recebeu a visita do
superintendente regional da CGU, Orlando Vieira de Castro, e do procurador da
República, André Bertuol. "Eles pressionaram a reitora, e ela revogou a
portaria", disse Moraes ao Estado. Dias depois, vice-reitora pediu para
afastar-se do cargo - e Prado pediu licença médica. Castro, Bertuol e a vice-reitora não quiseram
falar. Depois da morte do reitor, o site
Jornalistas Livres levantou
uma série de procedimentos judiciais contra Prado, incluindo uma sentença por
calúnia, violências contra sua ex-mulher e contra moradores de um prédio de que
era síndico.
Assumiu a reitoria da UFSC, o professor dr. Ubaldo Cesar
Baltazar, amigo antigo de Cancellier e,
como ele, ex-diretor do Centro de Ciências Jurídicas. Baltazar despacha na mesma cadeira onde há
pouco atuava Cau. "Tive uma boa
conversinha com ele antes de sentar aqui" disse ao Estado, desvelando sua
forte formação espírita.
"A prisão foi arbitrária
e desnecessária" disse o Reitor. "Queremos a apuração das
responsabilidades."
Na terça-feira
passada, o juiz Marcelo Volpato de Souza mandou arquivar o inquérito que apurou
a morte do reitor, concluindo por suicídio.
No despacho, o juiz cita trechos do parecer do promotor Andrey Cunha
Amorim, da 37ª Promotoria de Justiça da Capital. Diz Amorim:
"(...) dias
antes do seu suicídio, a vítima foi presa provisoriamente, permaneceu encarcerada
por um ou dois dias e teve sua prisão revogada judicialmente. Do ponto de vista
psíquico, tais fatos, evidentemente, podem ter contribuído para o agravamento
do quadro de depressão do ofendido, levando-o ao ato extremo de ceifar a sua
própria vida."
( Fonte: O Estado de São
Paulo, pag. A-9, de 3.XII.2017 )
Nenhum comentário:
Postar um comentário