segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Honra e Suicídio

                              
     
       Com trágica oportunidade, lembrou Kafka e o processo o desembargador Lédio Andrade, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina. A torrente dos acontecimentos terá causado  este longo  hiato, mas nunca será demasiado tarde para que se recorde infâmia praticada contra um justo.   
        Há dois meses atrás morria um justo, Luiz Carlos Cancellier de Olivo.  Cancellier, o Cau, fora preso pela Polícia Federal, na chamada Operação Ouvidos Moucos, na manhã de catorze de setembro. Sem o saber, ele era investigado pela delegada Erika Mialik Marena, ex-coordenadora da Operação Lava-Jato, em Curitiba, e mais tarde, da Ouvidos Moucos, em Florianópolis.
        Havia suspicácia acerca do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que, com 59 anos de idade, não tinha nenhum antecedente penal: seria a suposta tentativa  de obstruir uma investigação sobre desvios no programa de educação à distância - feita sobretudo por um declarado desafeto do reitor, o corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, integrante da Advocacia-Geral da União em Santa Catarina.
         Com efeito, no depoimento que prestou no inquérito da P.F., o próprio Prado contou sua contrariedade no que tange a Cancellier, em medida administrativa de redução de custos, por  haver cortado gratificação de R$ 1 mil (hum mil reais). Nem sequer cogitou a delegada  a possibilidade de retaliação pessoal.
          Além disso o espetaculoso figurino da prisão foi bastante além do necessário, como sói acontecer.  Segundo a própria Polícia Federal,  115 policiais foram mobilizados para prender Cancellier e mais seis professores da UFSC. No dia da prisão, a manchete no site da P.F. tinha cavalar erro, eis que apresentava a Operação Ouvidos Moucos como se combatesse "desvio de mais de R$ 80 milhões".
            Tal valor, como depois explicaria a Delegada Érika, e sem mais aquela, era o total  de repasses do Ministério da Educação para o programa de ensino à distância ao longo de dez anos (2005 a 2015), quando Cancellier sequer era reitor (só entrou nessas funções a partir de maio de 2016!)
             Como se tal não fora bastante, no mesmo dia 14 de setembro, depois de depor na Polícia Federal, o Reitor, sem que até o presente  ninguém haja explicado o motivo, foi levado, como se condenado estivesse,  para a Penitenciária de Florianópolis.  Dentro do ritual reservado aos criminosos, teve os pés agrilhoados, as mãos algemadas e, nu, foi submetido à revista íntima, vestiu o uniforme de presidiário e ficou em uma cela na ala de segurança máxima.  Não surpreende, de resto, que, cardiopata, diante desta profusa e brutal humilhação,  passasse mal, sendo examinado e medicado por seu cardiologista.
                Trinta horas depois, a pedido do advogado Hélio Rubens Brasil,  uma Juíza federal relaxa a prisão do Reitor Cancellier de Olivo.  

                Dezoito dias depois, a dois de outubro do ano corrente, o Reitor Cancellier, com 59 anos de idade, se atira do sétimo andar de shopping de Florianópolis. "A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade!!!" - são as suas últimas palavras,  escritas em bilhete.

                 Cinco dias antes do desfecho,  o próprio reitor descreve para o jornal O Globo: "A humilhação e o vexame a que fomos submetidos há uma semana - eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - não tem precedentes na história da instituição".
                 Depois da prisão, o desembargador Lédio Andrade  o recebeu em casa, para um jantar de levantamento de ânimo entre poucos amigos. "Cau estava sob efeito de remédios psiquiátricos. O pouco que falou foi para narrar o que passou na penitenciária. " E acrescentou Andrade: Ele foi vítima de um sistema que condena sem defesa, clamorosamente contrário à Constituição", disse o desembargador  do TJ-SC.
                 Catarinense de Tubarão, filho de operário e costureira, Cancellier foi liderança do movimento estudantil  contra a ditadura, ligado  ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois foi jornalista. Assessorou o senador Nelson Wedekin, em Brasília, durante a Constituinte  de 1987/88. Nos anos 1990, de volta a Florianópolis, concluíu o curso de Direito e seguiu a carreira acadêmica.
                  Deixa três parentes diretos: o matemático Acioli Antônio, irmão mais velho; o jornalista Júlio César, irmão mais novo, e o filho Mikhail, doutor em Direito, como o pai, e também professor da UFSC. Em    outubro, Acioli Antônio e o advogado Hélio Rubens Brasil estiveram com o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Torquato Jardim, a quem entregaram uma petição de seis páginas pela instauração de "procedimento administrativo para apurar a responsabilidade da delegada Érika Mialik Marena pelos abusos e excessos cometidos  na  denominada Operação Ouvidos Moucos."
                   A assessoria de imprensa do ministério informou ao Estado que a petição foi processada e tramita na forma de processo administrativo,  atualmente na Polícia Federal. Na PF, segundo o Ministério da Justiça, a corregedoria abriu procedimento para verificar a notícia-crime descrita na petição da família.  O procedimento está sendo analisado  pelo Núcleo da Polícia Judiciária. Ao fim da análise, que está em fase de execução,  haverá um parecer sobre a existência do crime.A depender de o que diga o parecer, abre-se um inquérito sobre a delegada.

                    A prisão temporária do reitor e de seus colegas da UFSC foi pedida pela delegada Érika à juíza federal Juliana Cassol. Ouvido o Ministério Público Federal (MPF) - onde o procurador da República  André Bertuol deu parecer favorável - Juliana autorizou, concordando com o argumento de risco  à investigação, entre outros. A prisão foi relaxada pela juíza federal Marjorie Freiberguer, em momento que Juliana  estava de licença médica. Quando retornou, ela criticou o relaxamento. O Estado tentou falar com as duas juízas e o procurador Bertuol. Ninguém quis falar.
                    "Queremos urgência na apuração das responsabilidades de todos os responsáveis pela prisão que resultou na morte de Cau, incluindo a decisiva pressão do algoz ( o corregedor Hickel do Prado) ", diz o outro irmão, Júlio Cesar Olivo.  Prado é citado no documento entregue ao ministro da Justiça como "subordinado e oposicionista político".
                    Na semana imediatamente anterior à prisão, Cancellier esteve em Portugal, participando de um seminário. Ao voltar, em  13 de setembro, autorizou seu chefe de gabinete, Aureo Moraes, a abrir processo administrativo disciplinar contra o corregedor, pedido pelo professor Gerson Rizzatti. Prado ainda tentou uma liminar contra a portaria que abria o processo, e o afastava até a conclusão, mas o juiz federal Osny Cardoso Filho não a concedeu. Cancellier foi preso no dia seguinte.
                     No dia 23 de outubro, a vice-reitora Alacoque Erdmann, que o sucedeu, recebeu a visita do superintendente regional da CGU, Orlando Vieira de Castro, e do procurador da República, André Bertuol. "Eles pressionaram a reitora, e ela revogou a portaria", disse Moraes ao Estado. Dias depois, vice-reitora pediu para afastar-se do cargo - e Prado pediu licença médica.  Castro, Bertuol e a vice-reitora não quiseram falar. Depois da morte do reitor, o site Jornalistas Livres levantou uma série de procedimentos judiciais contra Prado, incluindo uma sentença por calúnia, violências contra sua ex-mulher e contra moradores de um prédio de que era síndico.
                        Assumiu a reitoria da UFSC, o professor dr. Ubaldo Cesar Baltazar,  amigo antigo de Cancellier e, como ele, ex-diretor do Centro de Ciências Jurídicas.  Baltazar despacha na mesma cadeira onde há pouco atuava Cau.  "Tive uma boa conversinha com ele antes de sentar aqui" disse ao Estado, desvelando sua forte formação espírita.
                          "A prisão foi arbitrária e desnecessária" disse o Reitor. "Queremos a apuração das responsabilidades."
                           Na terça-feira passada, o juiz Marcelo Volpato de Souza mandou arquivar o inquérito que apurou a morte do reitor, concluindo por suicídio.  No despacho, o juiz cita trechos do parecer do promotor Andrey Cunha Amorim, da 37ª Promotoria de Justiça da Capital.  Diz Amorim:
                              "(...) dias antes do seu suicídio, a vítima foi presa provisoriamente, permaneceu encarcerada por um ou dois dias e teve sua prisão revogada judicialmente. Do ponto de vista psíquico, tais fatos, evidentemente, podem ter contribuído para o agravamento do quadro de depressão do ofendido, levando-o ao ato extremo de ceifar a sua própria vida."


( Fonte:  O Estado de São Paulo, pag. A-9, de 3.XII.2017 )

Nenhum comentário: