sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Moscou: hoje e o passado


     

         O ativismo de Vladimir Vladimirovich Putin na Síria - apoiando notadamente através de bombardeios Sukhoi e mísseis as forças de Bashar al-Assad, com ataques aos rebeldes sírios - vem sendo comparado a longa presença do Império russo no Oriente Médio.

          Assim, os laços da Rússia como defensora da Cristandade Ortodoxa viria desde o tempo da queda de Constantinopla em 1453. Daí a palavra czar (corruptela de Cesar), com os soberanos russos  se apresentando não só como a Terceira Roma, mas também a Nova Jerusalém.

         A dominação russa do Mediterrâneo oriental seria encetada em 1768 com  a ajuda de almirantes escoceses, e posteriormente firmada pelo Conde Alexei Orlov (irmão do amante de Catarina a Grande) que desbaratou a frota otomana.

        Foi efêmero, no entanto, tal domínio, eis que o Império russo abandonou os seus aliados sírios em 1774 em troca de concessões otomanas na Ucrânia e Crimeia.

        Com a criação de frota no Mar Negro, a dupla imperial tentou negociar uma base na ilha mediterrânea de Minorca. Os sucessores de Catarina se viam como cruzados, com o Império Russo  votado a dominar os famosos estreitos de acesso ao Mediterrâneo (e aos mares quentes) -  e uma luta pela posse da Igreja do Santo Sepulcro (entre sacerdotes russos e católicos) que levou à Guerra da Crimeia (em meados do século XIX).

        A derrota russa em 1856 diante da aliança ocidental (Inglaterra e França) forçou o sucessor Alexandre II e os czares seus sucessores a optarem pela diplomacia para ganhar influência nessa área, notadamente à espera da dissolução do Império Otomano, então conhecido com o 'Homem doente da Europa'. Na Grande Guerra (depois denominada de Primeira Guerra Mundial),o Ministro dos Estrangeiros da Rússia, Sergei Sazonov se associou à negociação que mais tarde (com o desmoronamento do poder tzarista) ficaria conhecida apenas como o Acordo Sykes-Picot (que na prática repartiu o Oriente Próximo entre Inglaterra e França). Se Nicolau II houvesse permanecido no trono, o entendimento se chamaria  Sykes-Picot-Sazonov.

        As peripécias posteriores - e notadamente a derrocada da União Soviética em 1991-2 -  destruíram os protegidos russos  Saddam Hussein (Iraque) e o coronel Muammar el-Kaddafi (Líbia). A retirada americana da região, se confirmada, tenderia a reduzir o peso regional de Washington e quiçá favoreceria ao Presidente Putin, que se vê como herdeiro da tradição russa de influência na região. Por outro lado, enquanto gospodin Putin se projetaria como árbitro mundial, a par da salvação de Bashar al-Assad que resiste há quatro anos contra a liga de opositores árabes e ora também se vê investido pelo Estado Islâmico, tudo isso supostamente se encaixaria na luta por sua afirmação política na área, através da revalidação dos títulos de Catarina a Grande além de pensar possa conduzir à negociação do fim das sanções ocidentais à Rússia, a par de garantir-lhe a anexação de Crimea.

         Pode parecer, à primeira vista, a very tall order, isto é, pretensão demasiado ambiciosa, no limite do absurdo, mais semelhando virtual rendição do Ocidente. Com efeito, que num passe de mágica Vladimir Putin logre ver-se livre de todas as penalidades e sanções internacionais que as transgressões da Rússia ao direito internacional pela sua guerra direta ou por interpostos agentes (os chamados rebeldes pró-Rússia na Ucrânia oriental - Donestsk, Luhansk, Mariupol) e todas as demais invasões das fronteiras com a Ucrânia, a anexação da  Crimeia, ao arrepio do direito internacional público), e ainda por cima o levantamento das sanções contra Moscou, por causa da incorporação ilegal da península da Crimeia, tudo isso somado constituiriam pouco verossimilhantes concessões ao Kremlin, as quais poderiam ser comparadas a um equivalente prático de o que poderia ser interpretado como quase  virtual rendição...

          Não será premiando o agressor que se irá construir  paz digna desse nome naquela região. Se o número de agressores na região não para de crescer, como se observa com a guerra civil na Síria, em que os domínios de Bashar al-Assad estão reduzidos a núcleos em torno de Damasco, do sul (o que inclui as bases russas) e o leste retalhado entre o ISIS e a união rebelde.

         A presença russa aumentou bastante de intensidade, máxime através dos ataques dos bombardeiros Sukhoi, com incidentes envolvendo sobrevoos de espaço aéreo turco, sem falar em apoios diretos a Bashar no combate à Liga Rebelde.

          Como um parceiro que tem dificuldade em submeter-se a claros parâmetros de respeito às forças nacionais aí atuantes, a Federação Russa, além de tratar dos próprios interesses (Putin dispõe já de duas bases aérea e naval na velha e dilacerada terra da passagem) tem estado bastante próxima de provocar incidentes internacionais mais sérios nos seus ataques à Liga Rebelde (que é apoiada pelo Ocidente).

         Em tapete que semelha estar sendo recosido a cada dia, a terra síria e as áreas circunvizinhas do Iraque, veem digladiar-se além do Estado  Islâmico (que ameaça notadamente Síria, o Curdistão e o Iraque), os bombardeios aéreos da coalizão ocidental (liderada pelos Estados Unidos, e agora com participação turca), o novo - e perigoso - elemento na vizinhança, que é a Federação Russa, que desdobra a própria ação no envio de mísseis e de bombardeios dos velhos aviões Sukhoi.

         Que até hoje o novo elemento no quarteirão, i.e., as forças aéreas de V. Putin, não haja provocado, além de protestos dos países ocidentais e notadamente dos Estados Unidos, nenhum acidente mais grave  pode indicar alguma coordenação militar, embora a parte russa venha timbrando exercer papel autônomo, com objetivos a marcar por ora de difícil determinação. Já é milagre relativo que nenhum acidente grave tenha acontecido.   

         Como isso tudo vá terminar não é exercício de conjetura fácil. Que terá eventuais reflexos em outros cenários, como na guerra atualmente ao parecer de baixa intensidade na Ucrânia, já é outro exercício, que no momento não me parece suscetível de ulteriores prognósticos.  Note-se, por fim, que além do Iraque, que vê as suas terras retalhadas pelo ISIS, parceiros menores mas atuantes militarmente são o Irã e o Hezbollah, que é uma espécie de linha avançada xiita, com base no pobre Líbano, e que colhe generoso apoio de Teerã. E, por fim, um pouco ao longe mas não tanto, Israel observa nervoso a imprevista movimentação guerreira.

 

( Fontes:  The New York Times, artigo de Simon Sebag Montefiore sobre 'A aventura imperial de Putin na Síria' )   

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