sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A Crise na Palestina

                          
                                          

        Não é necessário acompanhar de perto os atuais renovados incidentes na antiga Palestina, para que se tenha reação a princípio visceral e, em seguida, fundada na experiência da realidade da situação marcada pela injustiça e a hostilidade no terreno, assim como amarga consciência de crise de várias décadas, que não é fruto de oportunidades por acaso perdidas, mas sim urdida por governo que trata como habitantes de terra ocupada a remanescente sociedade árabe-palestina.

       Mesmo no período que antecedeu ao primeiro conflito armado entre a maioria palestina e as tropas judaicas, não há exemplo que comparar-se possa às características que têm presidido ao tratamento, inspirado pelo governo de Benjamin Netanyahu, aos agricultores e moradores palestinos de Israel.

        Decerto graças a longa convivência pacífica, as relações entre a maioria palestina e os segmentos judaicos não tinham sido  marcadas pelas características que ora presidem a crise na relação das duas comunidades, cujos papéis políticos respectivos estão ora trocados.

        Para melhor avaliar o atual estágio de desagregação nestas relações, parece oportuno que se tenham presentes algumas premissas elementares.

        Os chamados Acordos de Oslo, assinados com fanfarra e grandes expectativas nos jardins da Casa Branca, não eram o resultado de desultório esforço para dar novo viés a tal relacionamento, marcado este pela esperança concreta e a perspectiva da construção de paz duradoura. Na presença do Presidente Bill Clinton, firmados por Yasser Arafat, do lado palestino, e Yitzhak Rabin, primeiro ministro e Shimon Peres, ministro do exterior de Israel, malgrado a expectativa então prevalente, os famosos acordos não constituiriam infelizmente o ambicionado prelúdio então nas esperanças compartilhadas pelas duas comunidades.

       Como já observei nestas linhas, o malogro da nova via aberta para a esperança de um porvir livre da crise-mãe deve ser partilhado pelos dois povos. A inexperiência dos negociadores da Palestina não encetaria o caminho indispensável para a criação de fundamentos seguros para as relações entre os dois Povos. Esse malogro diplomático se deveria sobretudo à carência de condições abrangentes para estabelecer relações de justiça e de paridade entre os dois Povos.

        O câncer que destruiria a confiança indispensável, e as condições de justiça paritária que representavam o âmago dos Acordos foram a um tempo estimulado, e por outro, negligenciado pelos redatores palestinos. Nesse quadro, a grande oportunidade da Paz autêntica foi perdida por graves omissões nos aludidos Acordos, e por consequentes insidiosas deturpações da respectiva índole. No seu entusiasmo, os negociadores palestinos não prepararam os artigos necessários para extirpar na raiz a criatura maligna dos núcleos de assentamento dos colonos (vindos a mor parte de ultramar estadunidense, mas também do Leste europeu), que desvirtuaria o equilíbrio existente - e sobretudo a atmosfera de boa fé - entre judeus e árabes.

        Tampouco teve o gabinete Rabin, e os que lhe seguiram, a coragem política de põr termo a tal maligna raiz, que fatalmente tenderia a esvaziar do seu verdadeiro e liberador sentido os Acordos de Oslo. Mesmo para quem viveu de longe o caráter promissor do grande documento, é com fundo pesar que assistimos a processo tão deplorável quanto o escárnio da esperança por uma direita que parecia renovar-se pela origem obnóxia de suas indefensáveis pretensões, e, por outro lado, pela mão desleal de sorte madrasta, que firmaria, seja pelo ignavo assassínio de um dos firmatários do Acordo, Yitzhak Rabin, seja pelas tenebrosas visões de novas lideranças israelenses, como Ariel Sharon e seu discípulo Bibi Netanyahu, que, com a habilidade da pequena política, prepararam, com míopes e demagógicas visões, o terreno para desgraças futuras.

         Infelizmente, os Estados Unidos da América, o grande protetor de Israel, por conta de processo surpreendente, mas não sem antecedentes históricos, permitiria que por força desse personagem - que para muitos não passa de uma algaravia ininteligível, e para outros, um astuto artífice de males - a musa Clio[1] - o caráter da relação entre mestre e discípulo, ou senhor e criado, acusasse sobretudo nos anos setenta uma metamorfose que não é sem exemplo na História. Máxime, no governo de Richard Nixon, e com a superveniência de ulterior guerra entre o Egito de Anuar Sadat e Israel, o então Secretário de Estado Henry Kissinger faria enormes concessões ao antigo protegido pela Superpotência, concessões essas que tenderiam a desvirtuar a relação com o estado cliente - que assumiu as rédeas que incumbiam à potência diretora.

        Fundado em apoio interno a Israel pela comunidade judaica, e pelo peso dessa influência sobretudo em estados do leste americano, o eixo diretor dessa relação sofreria mudança profunda, que alteraria o papel de guia estadunidense, que são exemplos os presidentes anteriores, como o democrata Harry S Truman e o republicano Dwight D. Eisenhower. 

        Para que se tenha ideia do peso atual que tem um político desmoralizado sob muitos aspectos (mas em especial por regar o jardim do dissenso nas relações entre judeus e palestinos) como Benjamin Netanyahu, não é exagero afirmar que para ele arranjar discurso na grande sala da Câmara de Representantes (e que é o palco habitual das mensagens anuais ao Povo pelos Presidentes estadunidenses) é coisa de somenos, como se viu na alocução de Bibi contra o acordo nuclear, que seria firmado pelas principais potências com o Irã dos ayatollahs. O palco não lhe foi de grande serventia, eis que os seus temores pareceram excessivos à opinião americana, e por isso, malgrado tivesse concedida a honraria, para o Primeiro Ministro de Israel seria de nenhuma serventia.

        Não obstante a arrogância de personagens como Netanyahu - que não trepidara em apoiar o candidato republicano, o hoje quase esquecido Mitt Romney, contra a reeleição de Barack Obama - tal não seria um entrave duradouro nas suas relações com a Casa Branca.

        Quando Mahmoud Abbas, da tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas, chegaria ao passo de cancelar os Acordos de Oslo, pode-se dizer que em termos de ironia da História, aquela já provecta tribuna terá visto espetáculos até maiores. Tampouco terá impressionado àqueles que do tema algo conheciam, houvesse o presidente da Autoridade Palestina se sentido obrigado a tal gesto que aos partícipes da cerimônia, seja pessoalmente, seja pela transmissão simultânea, pareceria algo de todo incompreensível, que dizer de extremo mau gosto.

        E a dita ironia se transforma em sarcasmo, ao deparar os protestos de Netanyahu quanto à declaração de nulidade de tais Acordos.

         O histórico das relações de palestinos e israelenses hoje é apenas um roto e desbotado pano de fundo se nele procurarmos um mapa, mesmo que artesanal e rudimentar, das perspectivas de uma frutífera interação desses dois povos, a que está associada a Jerusalem que, por muitos séculos, abrigou os sonhos e não só dessas duas comunidades.

           Como perniciosa consequência da guerra dita dos seis dias (cinco a dez de junho de 1967), Israel se apossou da margem ocidental do rio Jordão, na qual então os palestinos estavam solidamente implantados, assim como da Jerusalém na época sob controle do Reino hashemita da Jordânia. Desaparecia na prática o significado político da ponte Allenby, modesta construção, mas de potenciais grandes consequências para os personagens que cruzaram sob a regra do incógnito, como a Primeira Ministra Golda Meir como mensageira para o então rei Abdul da Jordânia.

            A partir da imprudente entrada no conflito dos seis dias pelo então jovem Rei Hussein da Jordânia, se transformaria de modo radical a sorte da comunidade palestina, antes subordinada ao Reino Hashemita, que passaria, junto com a chamada Jerusalém árabe para o controle de Israel.

            Desde então, a despeito de Resoluções do Conselho de Segurança têm crescido e muito os assentamentos dos chamados colonos, muitos procedentes dos Estados Unidos, assim como da Rússia, que se tem apossado de terras ancestrais de palestinos.

          A partir de 1966 e o desastroso resultado de uma guerra que pelo despreparo do lado árabe, e a brutal diferença em termos de proficiência bélica e de armamentos, teriam pesadas consequências sobre o povo palestino.  Por força dos assentamentos de colonos, os palestinos se viram despojados de suas terras de cultivo.

           Malgrado terem o direito do seu lado, por intermédio de inúmeras e incisivas Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a cumplicidade americana - na prática, criando um sistema de duas faces, em que o direito de posse, ainda que resguardado pela lei internacional, na prática constituía apenas um véu de conveniência que não impediu caísse a sua posse, inda que ilegal, nos braços dos chamados colonos, vindos eles de todos os rincões do oportunismo deslavado.

           Naquele vasto espaço - se medido no sistema de mensuração da antiga agricultura - mostrava uma face ambivalente. Os donos legais da terra se viram desapossados, pela chamada lei do vencedor, ainda que o Conselho de Segurança nominalmente continuasse a proclamar  serem eles os reais proprietários. Já exclamara na Antiguidade romana o Rei gaulês Breno 'Vae Victis!' (Ai dos vencidos!), e pelo visto, ainda que sobraçando os títulos que corroboram a sua propriedade legítima, os infelizes palestinos sofriam as consequências da derrocada árabe.

 

 

O Esbulho da Terra e suas consequências hodiernas.

 

         O sofrimento palestino e a consequente crise tem sido considerado como a mãe de todas as crises médio-orientais. Israel e seu grande protetor têm na sua existência funda responsabilidade.

        Essa responsabilidade, de certa forma, tem aumentado nas últimas décadas, diante do poder do estado israelense, e sobremodo de sua crescente desenvoltura nos últimos anos, que é decorrência clara da complexa relação entre a dita potência tutelar - que por força do referido em parágrafos acima tornou-se uma quase-ficção - e o estado-cliente, ganhando uma extensão de afirmação que lhe permite ignorar na prática as resoluções do CSNU.

        Por outro lado, corolário dessa situação é a afirmação cada vez maior de uma postura do Estado israelense que o afasta da comunidade internacional, pela sistemática denegação dos direitos palestinos. Complica ainda mais o problema a molesta circunstância de que a Superpotência - e o respectivo presidente - não dispõe mais de um poder, senão de controle, mas de moderação do estado-cliente (que o é, em muitos aspectos,  tão só na aparência).

        Enganam-se e redondamente aqueles que acreditam que Israel, detentor de bombas atômicas, está acima do bem e do mal. A tibieza dos moradores da Casa Branca nos últimos tempos - em que o seu comportamento difere radicalmente do de  antecessores mais longínquos, como Harry Truman e Dwight Eisenhower - e nisso Barack Obama infelizmente não é exceção,  nada têm contribuído para criar condições objetivas para solucionar (ou encaminhar a respectiva solução, em linguagem ajustada às circunstâncias) o que pode ser havido como a mãe de todas as crises no Oriente Médio.

       A injustiça quando arraigada e defendida pelos órgãos do estado israelense, como o é a magistratura, sem falar nos braços da segurança e da ordem (que, às mais das vezes, funcionam como opressores objetivos do povo árabe-palestino), essa injustiça, repito, funciona como poderoso auxiliar na opressão de uma comunidade que também possui larga, milenar mesmo permanência naquelas terras.

       Nas últimas décadas, a história de Israel tem sido assinalada por diversas manifestações do povo árabe-palestino que, apesar de ter oficialmente reconhecidos os respectivos direitos à língua e à propriedade, na prática o exercício de tais direitos (inclusive de deputados palestinos no Knesset [2] ) só consegue lograr o respeito que em geral vem acompanhado do medo, através de insurreições populares, como são as Intifadas, que marcam a história recente do Estado de Israel.

        Um dos últimos primeiros ministros de Israel, Ariel Sharon - a que a violência sempre esteve associada, como no seu comportamento no Líbano, v.g. - trataria de marcar a sua presença no momento político israelense, através de um ato de índole provocatória e mesmo explosiva, qual seja a sua desassombrada visita no início de 2001 à Esplanada das Mesquitas, o local mais sagrado para o devoto palestino.

         Com a ascensão ao poder de Benjamin Netanyahu,  o nível do relacionamento da maioria judaica com a comunidade palestina tem baixado e de forma preocupante. Bibi, como é conhecido em Israel, se tem valido da tensão no relacionamento entre segmento judeu e o árabe de forma que beira o irresponsável, quando v.g. se valeu para amedrontar potenciais eleitores pró-candidatos de sua chapa de o que poderia ocorrer naquele país, se os árabes-palestinos ganhassem a maioria...Diabolizar o adversário nunca foi fórmula apropriada para uma democracia.

        A par disso, se registra hoje em Israel uma generalizada rejeição aos cidadãos de etnia palestina, a ponto de que, por desconfortáveis com o ambiente assim criado, muitos desses árabes venham emigrando para os Estados Unidos e outros países em que se sintam em ambiente menos tenso, desprovido de preconceitos e eventuais dissabores.

        Os atuais ataques de jovens e menos jovens da comunidade árabe-palestina que se voltam contra os habitantes judaicos são decorrência clara da má-vontade com que são de hábito tratados, as iteradas suspeitas que muitos inocentes vem sofrendo da maioria do povo israelense, e do modo brutal - que guarda não poucas semelhanças do tratamento dispensado pelos brancos americanos contra os afro-descendentes, tratamento esse que é muita vez coonestado por juris sulinos, em que assassinos são inocentados (como o pobre negro morto por atravessar desarmado uma quadra de classe média, por um segurança de plantão).  O fato de Obama ter-se a ele referido como que bem poderia ser o filho homem que ele não teve não sensibilizou o júri da Flórida que considerou inocente o dito segurança.

        Sem embargo, mais ao norte, a violência de policiais americanos contra afro-americanos tem merecido severo, mas adequado tratamento da Justiça, como no caso em que a morte de um demonstrante negro foi provocada pela maneira cruel com que fora amarrado no chão de uma caminhonete policial.

       Os policiais e militares israelenses não tem tido pela frente qualquer reação oficial que lhes determine agir com o respeito e as precauções necessárias diante de eventuais cidadãos e cidadãs palestinas que pela sua própria presença já seriam considerados como ameaça à segurança dos israelitas.

       Está nesta funda diferença no tratamento que lhes é atribuído - sentindo-se considerados na sua própria casa como estranhos - que é a causa-mãe de todos os percalços e violências (tanto as pequenas e mesquinhas, quanto as grandes). Por isso, não deve estranhar muito que esta gente sofrida venha a ser cotidianamente  rechaçada e maltratada pela má-vontade coletiva, que lhe torna a presença em ambientes públicos e o eventual uso que lhes assiste de transportes coletivos como merecedor de surda desconfiança e da agressiva suspicácia desses agentes públicos ditos de segurança, mas que poderiam ser, pela própria atitude insolente e arrogante, vistos como similares do mesmo segurança que matou o jovem negro pelo exclusivo fato de que  era negro (e por conseguinte suspeito). Em verdade, hostilizado pela atitude confrontativa do meganha que despeja os respectivos preconceitos sociais enquanto endossa a veste de um alegado protetor da ordem social - só que a ordem que ele defende, e pela qual ele espezinha o cidadão palestino (considerado, na prática, de segunda ordem) é feroz caricatura de uma realidade que distingue entre subpessoas e integrantes da classe do poder, identificada no israelita.

       Quem pode considerar essa caricatura soez da antiga realidade sul-africana (e de tantas outras condições de cidadãos de segunda ordem) como o reflexo de uma democracia, em que todos devem ser iguais perante a lei.

       Como surpreender-se assim que a comunidade palestina - se tem meios opta por transferir-se a terras em que seja tratado como gente igual às demais - diante do aut-aut de funda injustiça, se revolte contra a situação - em que tem direito a duas atitudes: curvar-se diante dela, e passar em silêncio as ofensas e contumélias do dia-a-dia - ou então reagir e ter o seu momento breve de sentir-se validado por atitude que acredita digna.

           Refugiar-se na covardia e no silêncio só tende a agravar a  revolta interior.  Viver em meio da injustiça (a mesma que tira as terras de seus parentes) constitui uma dose que o pobre mortal que só é perseguido e maltratado por ser o antigo habitante daquelas mesmas terras pode ser considerado por alguém como uma postura válida e segura?

          Não se tenha ilusões sobre a violência da sociedade hegemônica em Israel. Yitzhak Rabin caíu vitima do punhal assassino de  israelita de extrema direita.

          Agora, ao lamentar que inocentes tombem vítima dos ataques de jovens palestinos - o que é, por certo, deplorável e condenável - não deve esquecer por um momento que cada injustiça, safanão e prepotência de quem chamou os cães de guarda dessa população que defrauda as terras palestinas e os individualiza agressivamente nos logradouros públicos, não é faina para orgulhar-se e nem esperar que os seus frutos não possam ser outros que a raiva diante de  injustiça, que se lordeia no preconceito, que é a outra cara desta mesma injustiça.

 

( Fontes: O Estado de S. Paulo; William Bundy, A Tangled Web, Hill and Wang, New York, 1998 )

   




[1] Clio é a musa da História.
[2] Knesset - designação do Parlamento israelense.

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