sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Terremoto no Haiti

A pobreza do Haiti, a inaudita violência do terremoto de doze de janeiro, o grande número de vítimas, a espantosa destruição material, e o incontornável despreparo do Estado, em termos de infraestrutura e equipamentos, para lidar com as consequências da catástrofe, tudo isso coloca penosas questões.
Na Grécia antiga os frequentes tremores de terra eram atribuídos ao deus Posêidon. Essa interpretação de ingerência divina em desastres naturais não se circunscrevia aos sismos, estendendo-se por certo a todas as forças da Natureza.
Através da personalização de fenômenos diante dos quais sentiam funda impotência, os helenos acreditavam criar um vínculo de influência sobre os deuses, tão suscetíveis a paixões e cóleras. Como os demais sinistros, os terremotos só podiam ser entendidos enquanto castigos devidos pela hubris e por outras afrontas dos mortais. Daí a necessidade do culto e dos sacrifícios para propiciar o humor de Posêidon no que dissesse respeito aos inescrutáveis movimentos tectônicos.
Essa necessidade de minorar a angústia defronte de forças incontroláveis não se cinge às civilizações antigas. Também nas culturas indígenas americanas, se encontra o mesmo desígnio de tornar mais próximos e inteligíveis esses poderes. Assim, o grande terremoto da Guatemala de fevereiro de 1976 – que provocou, além das muitas mortes, um milhão de desabrigados - foi explicado pelas populações autóctones como mexida da cauda da serpente de prata, que dorme nas profundezas do inframundo.
Nos tempos que correm, com o muito exagerado fenômeno nietzschiano da morte de Deus, a relação com o divino tornou-se um tanto mais esgarçada, embora na ocorrência de cataclismos, tanto humanos (guerras mundiais, holocausto, genocídios), quanto naturais, a presença da Providência divina tende a ser questionada.
Em tais domínios, a intervenção em geral abrupta e de todo inesperada de forças subterrâneas, cuja breve onipotência - refletida nas largas, hediondas garatujas dos sensores – desperta não só o pânico, senão a antiga ligação com os mistérios sobrenaturais.
A própria morte de Zilda Arns, em uma igreja de Porto Príncipe, traz, na sua aparente inexplicável crueldade, muito do caráter simbólico que sempre envolveu o relacionamento com a Providência, independente do nome com que a sociedade respectiva o designava em seu tempo.
Qualquer intento de inserir a divindade em desgraça dessa magnitude participa necessariamente dos mesmos esforços do homem na Antiguidade de buscar entender atos que eram para ele, na essência, incompreensíveis.
A crueza da geologia e os seus efeitos despojados de qualquer sentido ético colocam, sem dúvida, um problema para quem se aventure a extrapolar o seu significado. Nas várias épocas, os contemporâneos buscaram dar um sentido ao terremoto, como se tal fosse possível. Assim, já no século XVIII, com o sismo que arrasou Lisboa, se entrevê essa vontade de dar explicação ultra-terrena ao que na fria linguagem científica não passa de reacomodação de camadas subterrâneas.
A calamidade no Haiti, acentuada pelo terremoto, constitui o principal desafio a ser enfrentado. É uma obrigação de todos – e com a generosa dedicação evidenciada pelos Presidentes Lula e Obama – de ajudar o pobre povo haitiano a superar mais esse desastre a abater-se sobre ele.
Se a resposta da comunidade internacional abrange um número sem precedente de países e agências internacionais, cumpre infundi-la do espírito que norteia a atuação dos dois Presidentes acima citados. Em muitos países europeus, as contribuições prometidas se afiguram risíveis, seja em função da catástrofe, seja atendida a potencialidade das respectivas economias. O aporte a ser trazido pela Alemanha de Ângela Merkel não pode ser apenas o dobro da doação do casal Brad Pitt-Angelina Jolie.
Esta hora trágica para a população haitiana – com os seus milhares de mortos, os enterrados-vivos nos escombros, as ruínas por toda a parte, e o sobrepairante risco de graves epidemias – pode, no entanto, ser a travessia do deserto para o reencontro das correntes nacionais, refletido na participação do presidente René Préval e do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, em esforço conjunto com a ampla e indispensável assistência internacional.

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