sábado, 23 de janeiro de 2010

O Futuro do Haiti pós-terremoto

Segundo a primeira contagem oficial, já há mais de cento e onze mil mortos por causa do terremoto de terça-feira, doze de janeiro. Dadas as circunstâncias do grande sismo – sete graus na escala Richter - e a precariedade dos meios locais, este total deve ser encarado mais como estimativa baseada em dados oficiais, do que propriamente cômputo exato das vítimas. Além de existirem presumivelmente muitas pessoas debaixo de escombros, a ausência de estruturas estatais organizadas e o enterro de muitos corpos em valas improvisadas, sobretudo nos primeiros dias após o sinistro, contribuem para aumentar as dúvidas quanto à eventual precisão das estatísticas fornecidas.
A pobreza extrema do Haiti constituíu decerto fator agravante para o cenário pós-terremoto. A par do desmonte das frágeis estruturas estatais – não é só uma imagem retórica que até o Palácio de Governo haja sido transformado em ruína -, a grande carência de meios contribuiu talvez com alguns graus a mais na escala do desastre natural.
A falta de máquinas, como escavadeiras e tratores, tornou ainda mais dificultosa a tarefa não só de desfazer os monturos e os escombros, mas também de proceder à rápida empresa de salvar homens, mulheres e crianças soterradas pela catástrofe.
Nessa hora terrível, em que a precariedade do Estado foi exposta da forma mais dramática – corroborada pela persistente confusão na gestão seja da alimentação emergencial, seja do estabelecimento de aceitável assistência sanitária provisória – ouviu-se voz afastada daquela terra sofrida desde 2004.
O ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, ora vivendo na África do Sul o seu segundo exílio, manifestou disposição de regressar à pátria, e de somar-se ao que deve ser um esforço conjunto nacional para a recuperação do país.
A trajetória política do ex-sacerdote católico, apesar de conhecida, carece de ser relembrada em suas grandes linhas. Através de sua atividade, a princípio pastoral e religiosa, o padre Aristide se transformaria em um catalisador dos pobres e miseráveis. Breve, sua empenhada presença se tornaria um incômodo e um espinho para a elite dominante de Pétionville e, infelizmente, para a superestrutura religiosa a que se achava nominalmente vinculado.
Grande orador e adepto da teologia da liberação, terá sido o bastante para que seus hierarcas o afastassem em 1988 do sacerdócio. Aristide escapou de várias tentativas de assassínio para alcançar, em inéditas eleições livres, e com dois terços dos votos, a presidência (dezembro de 1990). A direita lhe concedeu oito meses de mandato – foi apeado do poder por Raoul Cedras, general de turno. Eram tempos de Bush senior, não estando esclarecido o envolvimento americano nesse golpe.
Asilado nos Estados Unidos, sob Bill Clinton em 1994 Aristide seria restaurado no poder, embora para cumprir apenas o exíguo período remanescente.
Vedada a reeleição imediata, Aristide retornaria de novo com enorme apoio popular em 2000. Neste segundo mandato, a oposição logo se vestiu de propósitos golpistas, que afinal teriam sucesso – com o manifesto apoio de Bush júnior – em 2004.
O atual presidente René Préval, antes ligado a Aristide, há muito segue a linha de Washington. Do ponto de vista do estamento dominante, é anátema o eventual retorno do ex-presidente Jean Bertrand Aristide, porque este líder tem a seu ver dois grandes defeitos: continua extremamente popular e defende política que é o inverso do presente arremedo.
O Brasil, através de seu contingente militar e respectivo comando da Minustah, tem tido uma certa participação nas questões do Haiti. Suposto trabalho de Hércules para um dia ganhar o desejado assento permanente no Conselho de Segurança, a missão tem angariado a simpatia das comunidades locais diretamente atendidas.
Para que o Haiti vença o gigantesco desafio, não será através da trilha do ‘estado falido’, sob a tutela internacional, que esse país logrará o seu objetivo. Carece de somar forças. Que tal criarmos condições para tanto, por meio de autêntica democracia ? E como se tenciona lá chegar se se proibe a atuação política do partido Lavalas e a volta de Aristide? A que espécie de mostrengo político se quer confiar a gestão do pós-terremoto ? A políticos sem liderança, sombras de poderes imperiais, como Préval e quejandos ?
A defesa da democracia não se faz com a exclusão da maioria.

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