Como já terei
referido, o conflito de 1914 pode parecer romântico à distância, mas creio que,
na opinião da juventude de então, mandada às tenebrosas trincheiras da campanha militar, pelos
generais que pensavam em grandes,dramáticas movimentações, as que se
transmutariam no arremedo cruel de uma por vezes sádica guerra da espreita e solitárias mortes desses infelizes recrutas,
essa ambicionada glória constituíu na
verdade um alástor[1] que dizimou, sem distinção de classe e
cultura, poetas, escritores, obreiros, pintores e sobretudo jovens que nutriam
outros sonhos e esperanças que os da morte solitária por ignotos, covardes
projéteis, ou pelo tifo e outras moléstias oportunistas, sem falar das bombas e gases venenosos. Levas e mais levas
eram carregadas por aquela conjunção maldita, urdida pelas alianças
automáticas, feitas em chancelarias e cuidadosos gabinetes ministeriais, sequer
imaginando o monstro que urdiam diplomatas e militares - com seus tratados de
alianças por estranhas querelas, urdidas e nutridas em plagas ignotas, mas escritos
muito antes na cuidadosa, marmórea frieza dos gabinetes de chancelaria,
pensando abrir novos horizontes, para a pátria glória e poder, quando apenas
tratavam de trazer para a belle époque
os monstros da guerra sem quartel, com toda maldade transformada nos mais
inventivos armamentos, que cuidaram de ceifar as levas que haviam marchado na
leda ilusão de que estariam de volta antes que as folhas das decíduas árvores
amarelecessem e caíssem ao solo, nas próprias prósperas e bem-cuidadas
avenidas, de que se despediam sem que lhes assolasse, nas faces brejeiras,
sequer a dúvida de um dificultoso, árduo retorno, mas sim embalados na álacre
fantasia da mui próxima e vitoriosa volta, sob os sorrisos de suas jovens
namoradas, que os receberiam na descuidada e sem limites efusão que elas todas
podiam doravante transformar um pouco mais tarde na amorosa ternura que haviam
carregado nas próprias cartas, enviadas ao front.
Se houve guerra rodeada de ilusões e de falsas esperanças, seria aquela que os
franceses comprimiriam nos números - que ao espoucar o conflito semelhavam
ininteligíveis - de catorze-dixhuit que
marcaria pelas charnecas e planícies da França, Bélgica, Alemanha, Áustria-Hungria,
sem esquecer as estepes do czar, todo o mal que a bélica ambição e a ilusão da
próxima vitória poderia incutir naquelas amorfas massas que, longe dos louros
sorrisos de seus amores, marchavam com o desatino da juventude para a fétida
podridão das charnecas ou para as ubiquas trincheiras, em que se dissimularam
os espíritos e os avantesmas da morte, seja súbita, seja lenta, e das físicas
misérias do estropiamento, que é obra dos competentes artífices de Tánatos, garantido para tais infelizes,
muitos e muitos sem conta anônimos, mas também perfis proeminentes, com a
triste missão de quebrar, através da notícia funesta, em jornal da própria
terra, a estranha mensagem que carrega o desastre de catorze-dixhuit, como os franceses, que o veriam de perto, demasiado
perto, na própria campanha, a maneira sem dúvida cruel, com que Marte e demais
associados cuidaram da juventude da dita belle-époque,
ignaros que eram de o que as chancelarias lhes haviam preparado, mas jamais
ignavos partícipes da tragédia que sobre eles despenca, com a boçal,
bestialógica brutalidade da inimaginável crueldade que, no silêncio untuoso das
chancelarias, fora urdida não só contra uma geração, mas sobretudo na arrogante,
demencial proposta de consolidar, reforçar e derrubar impérios, sem que nos
silentes gabinetes co-partícipes neste festival de massacres, de renascente
xenofobia, e de quando possível completa destruição de inimigos que para seus
adversários decerto não mereceriam compaixão, nem qualquer momento perdido de
humana sensação de co-participação, no que muitos grandes tinham visto como
grande oportunidade de respectiva ulterior elevação, e que passaria para a
História como fautora de grandes e mesquinhos desastres, tudo derrubando pela
frente, com a álacre, ruidosa alegria de uns tantos, que pensaram poder surgir
sem peias, nem estorvos na próxima grande encenação da sacralizada abominação
da Paz e de todos os seus frutos. Para
tanto, Catorze-Dixhuit seria a Grande
Guerra, pois abriu de par em par as portas para autênticas, resplendentes, infames
ideologias, que se veriam consagradas no próximo magno espetáculo da humana
demência.
(Fontes:
gênero humano, nacionalismos, políticas de gabinete que sequer cogitaram que
não tratavam de problemas culturais, mas sim da utilização do chamado progresso
para a sua própria destruição. Não é decerto irrealista - sobretudo com a
pletora do atual cenário - pensar na guerra senão como uma política a ser consignada como estúpido,
criminal instrumento, a ser evitado e para sempre. O próprio poder destrutivo
dos novos infames engenhos constitui um antinômico fator para a contenção e o remanescente bom-senso. Que
melhor exemplo se encontrará de que o papel histórico abominável a que essa
guerra de catorze-dixhuit emprestaria
um infausto começo, que o magnificado desastre trazido pelo Segundo Conflito Mundial
para a Humanidade ? Com a sua terminal
abominação atômica, pode-se afirmar, com a certeza de que são passíveis os propósitos
humanos, que tais guerras, com seu trem de indizíveis crueldades, e outros episódios de bestial estupidez, marcam, no
arrependimento e na vergonha, o quanto tais comemorações devem ser evitadas,
pois que na sua própria encenação elas trazem os mefíticos ares do pântano a
que em passado não tão distante regrediu a gente humana).
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