segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Adeus Belle Époque


                                

         Como já terei referido, o conflito de 1914 pode parecer romântico à distância, mas creio que, na opinião da juventude de então, mandada às tenebrosas  trincheiras da campanha militar, pelos generais que pensavam em grandes,dramáticas movimentações, as que se transmutariam no arremedo cruel de uma por vezes sádica guerra da espreita e  solitárias mortes desses infelizes recrutas, essa ambicionada glória  constituíu na verdade um  alástor[1]  que dizimou, sem distinção de classe e cultura, poetas, escritores, obreiros, pintores e sobretudo jovens que nutriam outros sonhos e esperanças que os da morte solitária por ignotos, covardes projéteis, ou pelo tifo e outras moléstias oportunistas, sem falar das bombas e  gases venenosos.  Levas e mais levas eram carregadas por aquela conjunção maldita, urdida pelas alianças automáticas, feitas em chancelarias e cuidadosos gabinetes ministeriais, sequer imaginando o monstro que urdiam diplomatas e militares - com seus tratados de alianças por estranhas querelas, urdidas e nutridas em plagas ignotas, mas escritos muito antes na cuidadosa, marmórea frieza dos gabinetes de chancelaria, pensando abrir novos horizontes, para a pátria glória e poder, quando apenas tratavam de trazer para a belle époque os monstros da guerra sem quartel, com toda maldade transformada nos mais inventivos armamentos, que cuidaram de ceifar as levas que haviam marchado na leda ilusão de que estariam de volta antes que as folhas das decíduas árvores amarelecessem e caíssem ao solo, nas próprias prósperas e bem-cuidadas avenidas, de que se despediam sem que lhes assolasse, nas faces brejeiras, sequer a dúvida de um dificultoso, árduo retorno, mas sim embalados na álacre fantasia da  mui próxima e vitoriosa volta, sob os sorrisos de suas jovens namoradas, que os receberiam na descuidada e sem limites efusão que elas todas podiam doravante transformar um pouco mais tarde na amorosa ternura que haviam carregado nas próprias cartas, enviadas ao front. Se houve guerra rodeada de ilusões e de falsas esperanças, seria aquela que os franceses comprimiriam nos números - que ao espoucar o conflito semelhavam ininteligíveis - de catorze-dixhuit que marcaria pelas charnecas e planícies da França, Bélgica, Alemanha, Áustria-Hungria, sem esquecer as estepes do czar, todo o mal que a bélica ambição e a ilusão da próxima vitória poderia incutir naquelas amorfas massas que, longe dos louros sorrisos de seus amores, marchavam com o desatino da juventude para a fétida podridão das charnecas ou para as ubiquas trincheiras, em que se dissimularam os espíritos e os avantesmas da morte, seja súbita, seja lenta, e das físicas misérias do estropiamento, que é obra dos competentes artífices de Tánatos, garantido para tais infelizes, muitos e muitos sem conta anônimos, mas também perfis proeminentes, com a triste missão de quebrar, através da notícia funesta, em jornal da própria terra, a estranha mensagem que carrega o desastre de catorze-dixhuit, como os franceses, que o veriam de perto, demasiado perto, na própria campanha, a maneira sem dúvida cruel, com que Marte e demais associados cuidaram da juventude da dita belle-époque, ignaros que eram de o que as chancelarias lhes haviam preparado, mas jamais ignavos partícipes da tragédia que sobre eles despenca, com a boçal, bestialógica brutalidade da inimaginável crueldade que, no silêncio untuoso das chancelarias, fora urdida não só contra uma geração, mas sobretudo na arrogante, demencial proposta de consolidar, reforçar e derrubar impérios, sem que nos silentes gabinetes co-partícipes neste festival de massacres, de renascente xenofobia, e de quando possível completa destruição de inimigos que para seus adversários decerto não mereceriam compaixão, nem qualquer momento perdido de humana sensação de co-participação, no que muitos grandes tinham visto como grande oportunidade de respectiva ulterior elevação, e que passaria para a História como fautora de grandes e mesquinhos desastres, tudo derrubando pela frente, com a álacre, ruidosa alegria de uns tantos, que pensaram poder surgir sem peias, nem estorvos na próxima grande encenação da sacralizada abominação da Paz e de todos os seus frutos.  Para tanto, Catorze-Dixhuit seria a Grande Guerra, pois abriu de par em par as portas para autênticas, resplendentes, infames ideologias, que se veriam consagradas no próximo magno espetáculo da humana demência.  

(Fontes: gênero humano, nacionalismos, políticas de gabinete que sequer cogitaram que não tratavam de problemas culturais, mas sim da utilização do chamado progresso para a sua própria destruição. Não é decerto irrealista - sobretudo com a pletora do atual cenário - pensar na guerra senão  como uma política a ser consignada como estúpido, criminal instrumento, a ser evitado e para sempre. O próprio poder destrutivo dos novos infames engenhos constitui um antinômico fator para a  contenção e o remanescente bom-senso. Que melhor exemplo se encontrará de que o papel histórico abominável a que essa guerra de catorze-dixhuit emprestaria um infausto começo, que o magnificado  desastre trazido pelo Segundo Conflito Mundial para a Humanidade ?  Com a sua terminal abominação atômica, pode-se afirmar, com a certeza de que são passíveis os propósitos humanos, que tais guerras, com seu trem de indizíveis crueldades, e outros  episódios de bestial estupidez, marcam, no arrependimento e na vergonha, o quanto tais comemorações devem ser evitadas, pois que na sua própria encenação elas trazem os mefíticos ares do pântano a que em passado não tão distante regrediu a gente humana).


[1] divindade vingativa (grego clássico).  A transcrição é quase inviabilizada pelo sistema...

Nenhum comentário: