A União Européia parece pronta a receber a Turquia
como mais um membro. Depois que as negociações entre Bruxelas e Âncara ficaram dormentes por vários anos - após
promissor começo - não é que se volta a ver como possibilidade concreta o
ingresso da Turquia ?
O que terá havido para que os
antagonistas do grande país herdeiro dos califas do Oriente e ainda mais para
trás, do Império Romano Oriental, derrubado afinal pela horda turca em 1453,
com a queda de Constantinopa em 29 de maio, e a morte do último Imperador de
Bizâncio, Constantino XI Paléologo[1]
tenham mudado de opinião quanto à participação de seu estado sucessor na
construção européia?
A data é importante menos pelo
desaparecimento do Império Romano do Oriente, do que por marcar o fim da Idade
Média e os pródromos da civilização ocidental. Com efeito, a marcha dos
invasores turcos, vindos dos confins da Ásia, ao decretar, pela força das
armas, a queda de o que fora a Grande Bizâncio, dava início a sério desafio
para o Ocidente, confrontado com o Turco que pela cimitarra se propunha levar o
credo muçulmano aos novos reinos do Ocidente.
Aqui não é o local para que nos
ocupemos da guerra, muitas vezes sem quartel, entre o Oriente islâmico e as
jovens nações ocidentais. Istambul estenderia a sua égide em partes do
Mediterrâneo, e no Continente Europeu, para ser afinal detida na batalha naval
de Lepanto, que assegurou ao Ocidente o domínio dos mares, e se prolongaria até
o cerco de Viena, no século XVII, quando foi detida a marcha do invasor otomano
e principia o seu longo recuo, nos séculos seguintes com a decadência e o que
se chamaria a enfermidade do poder turco de Constantinopla.
Voltemos, porém, ao presente, que em certos
aspectos pode imitar o ir e vir das ondas e marés. Desde muito, Âncara pleiteia
entrar na União Européia. O seu primeiro intento, no entanto, malograra,
sobretudo pelos questionamentos quanto à realidade de sua democracia, assim
como pelas reservas de membros da C.E., como a República Helênica que tem
relação difícil com o colosso turco,seu vizinho demasiado próximo no
Mediterrâneo oriental.
O reino grego lograra a
independência do domínio turco nas primeiras décadas do século XIX, e o poeta
inglês Byron seria uma vítima dessa luta
em que a intelligentsia da época
participara com o elan do romantismo.
O antigo domínio do turco sobre os helenos e sua cercania não conduzem a
excessos amistosos entre os dois povos. Um dos maiores desastres da Grécia foi
a expulsão das comunidades gregas que viviam há milênios na Ásia menor, e que
foi provocada pelo desastre militar de 13 a 20 de agosto de 1922. A traição de
maus patriotas, precipitou em seguida outra catástrofe, que foi a expulsão de
cerca de dois milhões de gregos
asiáticos pela nova Turquia, saída esta das cinzas da 1ª Guerra Mundial, e da
vitória de Kemal Pacha, mais tarde chamado de Ataturk.
Mas voltemos ao presente, após o
sobrevôo do passado. A União Europeia, e os seus líderes, como Angela Merkel, a Chanceler alemã, François Hollande, Presidente francês,
e Donald Tusk, presidente do
Conselho da Europa, parecem entusiasmados com a generosidade do lider turco.
Requestados pela liderança comunitária,
o Presidente
Recep Tayyip Erdogan, e o seu primeiro Ministro Ahmet Davutoglu, o líder turco e seu direto auxiliar sabem de o que
fez mudar radicalmente a postura de Bruxelas diante da candidata Turquia. Após longo
período, em que série de fatores - o
tamanho da candidata, as suas peculiaridades, sobremodo a repressão dos curdos
e as inclinações autoritárias de Erdogan,
assim como prevenções de membros da U.E. contra Âncara (República Helênica,
entre outras) - a princípio retarda o processo de adesão e mais tarde o confina
aos gabinetes dos passos perdidos. Com a irrupção da crise dos refugiados na
Europa, crise esta que é decorrência da interminável guerra civil contra Bashar
al-Assad, o ditador sírio, apoiado pelo Irã dos ayatollahs, a Federação Russa de Vladimir V. Putin, e por aliados menores como a milícia Hezbollah, encabeçada por Hassan Nasrallah, dependente este do
líder supremo iraniano Ali Khamenei.
As primeiras instâncias
comunitárias, que encarecem a ajuda de Âncara, a princípio encontram ouvidos de
mercador. A posição geográfica turca, lindando com a área do conflito, e tendo
condições territoriais de abrigar, ainda que temporariamente, o problema humano
dos refugiados, que não mais suportam viver nas condições presentes, em
acampamentos precários, quando não sob a artilharia de Bashar, ou os
bombardeios de seu interessado protetor, gospodin
Putin, sem falar das atenções do
tirano que não trepida em usar a arma das epidemias (tanto as usuais quanto as
que se acreditava extintas, como a poliomielite),
tudo isso cria condições infernais para essa povoação abandonada, que não tem
outro recurso senão a fuga para o acolhedor Ocidente.
São milhões de refugiados,
que são produzidos não se sabe como nessa sucursal do inferno, que, movidos
pelo desespero, partem para a Europa maravilha.
Até o momento, a Turquia se
faz de desentendida, e não facilita em nada (ou muito pouco) as instantes
súplicas dos estados da U.E. que já não mais têm condições de abrigar o número
de infelizes que produzem as usinas do presidente Bashar.
Dado o pendor atávico da
gente turca para as habilidades da negociação, e dispondo Âncara de condições
de espaço topográfico e de clara cercania desse teatro trágico criado pela
sublime indiferença humana com os males de outrem, não é preciso forçar
demasiado o intelecto para dar-se conta de que caíu no colo da Turquia a
oportunidade de, por um lado, acertar as contas de o que padecera com a longa
travessia de seu pedido de ingresso na U.E., e por outro, extrair, com os
atávicos pendores para a negociação da etnia turca, talvez até a libra de carne
exigida pelo personagem da peça famosa de Shakespeare.
Em sua missão a Bruxelas,
o Primeiro Ministro Davutoglu aumentou
de forma dramática o preço de seus serviçois a ser cobrado dos nervosos
europeus: mais ajuda financeira do que a
antes prometida; vistos em passaporte já em junho aos nacionais turcos, e,
entrementes acolher alguns migrantes que estejam detidos diante dos arames
farpados dos países europeus mais orientais, e por conseguinte mais expostos a
esses caminhantes do desespero.
Mas o pior não está na oferta
turca, mas na reação européia, que levaria a vômitos do velho personagem de Henfil.
Não é que essa modesta abertura turca foi saudada pela Chanceler Merkel e por Donald
Tusk, presidente do Conselho Europeu como avanço importante (breakthrough)? Também a esse respeito, uma
deputada ao Parlamento Europeu, a holandesa Marietje
Schaake disse: "Agora estamos nos liberando dos princípios na simples
esperança de soluções para os desafios para a Europa em tratar com migrantes e
com candidatos ao asilo."
Diante da tragédia dos
refugiados - e a situação política de Angela Merkel, pela sua decisão de
abrigar a massa de refugiados, com as consequências inelutáveis da queda no seu
nível de aceitação e a pendente ameaça de um desastre eleitoral, constitui
desse aspecto relevante da questão - como exigir da União Européia que está sem
espaço de manobra - sobremodo diante da comovente indiferença dos demais
países, sobretudo os mais afluentes, do Ocidente - que tente endurecer nas
negociações envolvendo aspectos de direitos humanos, se Bruxelas está
inferiorizada pela posição turca?
Aproveitando o
momento, a velha tendência de Erdogan se espalha no que tange à repressão da
mídia turca, o incremento na perseguição
à minoria curda. Nesse contexto, Selahattin Demirtas, o principal
líder curdo - cujo partido logrou alcançar o quociente para a representação no
Parlamento turco - disse que a crise dos refugiados levou a Europa a
silenciar quanto à renovação da guerra
civil no Sudeste.
Quanto ao apreço
pela democracia da base popular do líder Recep Tayyp Erdorgan, ele pode ser
mensurado pelas comparações com outro ídolo, Vladimir V. Putin, outro líder autoritário que não morre de amores
pela liberdade de expressão na imprensa.
Mas a certeza de
que os líderes da União Européia tem a boca presa, e não ousarão criar atritos
com o eventual aliado humanitário - por mais caro que seja o preço exigido -
está no oportunismo de investir contra a liberdade de expressão, fechando o Zaman, um jornal de oposição, e
apossando-se da CIHAN, agência de
notícias, que é ligada à nêmesis do Presidente Erdogan, i.e., o clérigo muçulmano Fethullah Gulen, que vive
no exílio estadunidense. Erdogan se acredita ameaçado pelo grande círculo de
ligações de Fethullah.
( Fontes: The New York Times, New York Review,
Shakespeare, Carlos Drummond de Andrade
)
[1] Constantino XI
(1405-1449-1453). O imperador mártir reinou sobre o que restava do antes
poderoso Império de Constantino, e caíu na invasão de Constantinopla,
encabeçada pelo Sultão Maomé II.
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