terça-feira, 8 de março de 2016

Trincheiras da Liberdade - 17


                                              

          A União Européia parece pronta a receber a Turquia como mais um membro. Depois que as negociações entre Bruxelas e Âncara  ficaram dormentes por vários anos - após promissor começo - não é que se volta a ver como possibilidade concreta o ingresso da Turquia ?

          O que terá havido para que os antagonistas do grande país herdeiro dos califas do Oriente e ainda mais para trás, do Império Romano Oriental, derrubado afinal pela horda turca em 1453, com a queda de Constantinopa em 29 de maio, e a morte do último Imperador de Bizâncio, Constantino XI Paléologo[1] tenham mudado de opinião quanto à participação de seu estado sucessor na construção européia?

          A data é importante menos pelo desaparecimento do Império Romano do Oriente, do que por marcar o fim da Idade Média e os pródromos da civilização ocidental. Com efeito, a marcha dos invasores turcos, vindos dos confins da Ásia, ao decretar, pela força das armas, a queda de o que fora a Grande Bizâncio, dava início a sério desafio para o Ocidente, confrontado com o Turco que pela cimitarra se propunha levar o credo muçulmano aos novos reinos do Ocidente.

          Aqui não é o local para que nos ocupemos da guerra, muitas vezes sem quartel, entre o Oriente islâmico e as jovens nações ocidentais. Istambul estenderia a sua égide em partes do Mediterrâneo, e no Continente Europeu, para ser afinal detida na batalha naval de Lepanto, que assegurou ao Ocidente o domínio dos mares, e se prolongaria até o cerco de Viena, no século XVII, quando foi detida a marcha do invasor otomano e principia o seu longo recuo, nos séculos seguintes com a decadência e o que se chamaria a enfermidade do poder turco de Constantinopla.                 

          Voltemos, porém, ao presente, que em certos aspectos pode imitar o ir e vir das ondas e marés. Desde muito, Âncara pleiteia entrar na União Européia. O seu primeiro intento, no entanto, malograra, sobretudo pelos questionamentos quanto à realidade de sua democracia, assim como pelas reservas de membros da C.E., como a República Helênica que tem relação difícil com o colosso turco,seu vizinho demasiado próximo no Mediterrâneo oriental.

           O reino grego lograra a independência do domínio turco nas primeiras décadas do século XIX, e o poeta inglês Byron seria uma vítima  dessa luta em que a intelligentsia da época participara com o elan do romantismo. O antigo domínio do turco sobre os helenos e sua cercania não conduzem a excessos amistosos entre os dois povos. Um dos maiores desastres da Grécia foi a expulsão das comunidades gregas que viviam há milênios na Ásia menor, e que foi provocada pelo desastre militar de 13 a 20 de agosto de 1922. A traição de maus patriotas, precipitou em seguida outra catástrofe, que foi a expulsão de cerca de dois  milhões de gregos asiáticos pela nova Turquia, saída esta das cinzas da 1ª Guerra Mundial, e da vitória de Kemal Pacha, mais tarde chamado de Ataturk.

             Mas voltemos ao presente, após o sobrevôo do passado. A União Europeia, e os seus líderes, como Angela Merkel, a Chanceler alemã, François Hollande, Presidente francês, e Donald Tusk, presidente do Conselho da Europa, parecem entusiasmados com a generosidade do lider turco.

              Requestados pela liderança comunitária, o Presidente Recep Tayyip Erdogan, e o seu primeiro Ministro Ahmet Davutoglu, o líder turco e seu direto auxiliar sabem de o que fez mudar radicalmente a postura de Bruxelas diante da candidata Turquia. Após longo período, em que  série de fatores - o tamanho da candidata, as suas peculiaridades, sobremodo a repressão dos curdos e as inclinações autoritárias de Erdogan, assim como prevenções de membros da U.E. contra Âncara (República Helênica, entre outras) - a princípio retarda o processo de adesão e mais tarde o confina aos gabinetes dos passos perdidos. Com a irrupção da crise dos refugiados na Europa, crise esta que é decorrência da interminável guerra civil contra Bashar al-Assad, o ditador sírio, apoiado pelo Irã dos ayatollahs, a Federação Russa de Vladimir V. Putin, e por aliados menores como a milícia Hezbollah, encabeçada por Hassan Nasrallah, dependente este do líder supremo iraniano Ali Khamenei.

                As primeiras instâncias comunitárias, que encarecem a ajuda de Âncara, a princípio encontram ouvidos de mercador. A posição geográfica turca, lindando com a área do conflito, e tendo condições territoriais de abrigar, ainda que temporariamente, o problema humano dos refugiados, que não mais suportam viver nas condições presentes, em acampamentos precários, quando não sob a artilharia de Bashar, ou os bombardeios de seu interessado protetor, gospodin Putin,  sem falar das atenções do tirano que não trepida em usar a arma das epidemias (tanto as usuais quanto as que se acreditava extintas, como a poliomielite), tudo isso cria condições infernais para essa povoação abandonada, que não tem outro recurso senão a fuga para o acolhedor Ocidente. 

                  São milhões de refugiados, que são produzidos não se sabe como nessa sucursal do inferno, que, movidos pelo desespero, partem  para a Europa maravilha.

                   Até o momento, a Turquia se faz de desentendida, e não facilita em nada (ou muito pouco) as instantes súplicas dos estados da U.E. que já não mais têm condições de abrigar o número de infelizes que produzem as usinas do presidente Bashar.

                    Dado o pendor atávico da gente turca para as habilidades da negociação, e dispondo Âncara de condições de espaço topográfico e de clara cercania desse teatro trágico criado pela sublime indiferença humana com os males de outrem, não é preciso forçar demasiado o intelecto para dar-se conta de que caíu no colo da Turquia a oportunidade de, por um lado, acertar as contas de o que padecera com a longa travessia de seu pedido de ingresso na U.E., e por outro, extrair, com os atávicos pendores para a negociação da etnia turca, talvez até a libra de carne exigida pelo personagem da peça famosa de Shakespeare.

                     Em sua missão a Bruxelas, o Primeiro Ministro Davutoglu aumentou de forma dramática o preço de seus serviçois a ser cobrado dos nervosos europeus:  mais ajuda financeira do que a antes prometida; vistos em passaporte já em junho aos nacionais turcos, e, entrementes acolher alguns migrantes que estejam detidos diante dos arames farpados dos países europeus mais orientais, e por conseguinte mais expostos a esses caminhantes do desespero.

                       Mas o pior não está na oferta turca, mas na reação européia, que levaria a vômitos do velho personagem de Henfil. Não é que essa modesta abertura turca foi saudada pela Chanceler Merkel e por Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu como avanço importante (breakthrough)? Também a esse respeito, uma deputada ao Parlamento Europeu, a holandesa Marietje Schaake disse: "Agora estamos nos liberando dos princípios na simples esperança de soluções para os desafios para a Europa em tratar com migrantes e com candidatos ao asilo."

                        Diante da tragédia dos refugiados - e a situação política de Angela Merkel, pela sua decisão de abrigar a massa de refugiados, com as consequências inelutáveis da queda no seu nível de aceitação e a pendente ameaça de um desastre eleitoral, constitui desse aspecto relevante da questão - como exigir da União Européia que está sem espaço de manobra - sobremodo diante da comovente indiferença dos demais países, sobretudo os mais afluentes, do Ocidente - que tente endurecer nas negociações envolvendo aspectos de direitos humanos, se Bruxelas está inferiorizada pela posição turca?

                           Aproveitando o momento, a velha tendência de Erdogan se espalha no que tange à repressão da mídia turca, o incremento  na perseguição à minoria curda. Nesse contexto, Selahattin Demirtas, o principal líder curdo - cujo partido logrou alcançar o quociente para a representação no Parlamento turco - disse que a crise dos refugiados levou a Europa a silenciar  quanto à renovação da guerra civil no Sudeste.

                            Quanto ao apreço pela democracia da base popular do líder Recep Tayyp Erdorgan, ele pode ser mensurado pelas comparações com outro ídolo, Vladimir V. Putin, outro líder autoritário que não morre de amores pela liberdade de expressão na imprensa.

                             Mas a certeza de que os líderes da União Européia tem a boca presa, e não ousarão criar atritos com o eventual aliado humanitário - por mais caro que seja o preço exigido - está no oportunismo de investir contra a liberdade de expressão, fechando o Zaman, um jornal de oposição, e apossando-se da CIHAN, agência de notícias, que é ligada à nêmesis do Presidente Erdogan, i.e., o clérigo  muçulmano Fethullah Gulen, que vive no exílio estadunidense. Erdogan se acredita ameaçado pelo grande círculo de ligações de Fethullah. 

 

( Fontes:  The New York Times, New York Review, Shakespeare, Carlos Drummond de Andrade )



[1] Constantino XI (1405-1449-1453). O imperador mártir reinou sobre o que restava do antes poderoso Império de Constantino, e caíu na invasão de Constantinopla, encabeçada pelo Sultão Maomé II.

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