quarta-feira, 30 de março de 2016

Jean Charles tem direitos humanos ?


                                
       Nós brasileiros temos ainda presente o que a Polícia de Sua Majestade britânica fez com Jean Charles, um dos muitos de nossos compatriotas que tiveram de emigrar para as Europas, em busca de sustento seu e de suas famílias?

       Qual é a grande culpa de Jean Charles, que veio a causar-lhe a infausta e prematura morte?

       Na verdade, não haverá culpa mais estranha e, no entanto, arraigada e inamovível, que é a marca e a aparência de ser brasileiro.

       Por causa de sua condição, da pobreza e da falta de oportunidade do próprio meio, Jean Charles teve que viajar para bem longe de sua terra natal.

       Não só queria trabalhar, senão ganhar salário digno, de modo a garantir sustento, morada e respeito a ele próprio e sua família.

       Jean Charles pensou que lá, aonde com dificuldade chegara, obtivera emprego seguro e remunerador.

       No entanto, o brasileiro Jean Charles - que logo tratara de trazer para junto dele a própria família - esqueceu-se de um detalhe ao qual aqui não se dá importância.

       Todavia, esse mero pormenor não é coisa de somenos na Terra de Sua Majestade.

        Nordestino, tinha a cor de tantos nossos nacionais, o moreno jambo da gente brasileira.

        Indo para o trabalho, a polícia de Sua Majestade, tangida pela histeria das ameaças terroristas, logo o confundiu na matinal anônima multidão que como rebanho se encaminha para o metrô e o trabalho, com alguma perigosa presa, sinalizada nos cartazes dos serviços da ordem.

        E, no entanto, Jean  Charles tinha todos os papéis em ordem. Só uma marca o traía, marca essa de nascença: era brasileiro e de compleição morena.

         Poderia acaso haver tentado explicar-se, dizer que era inocente, mesmo sem saber de quê?  Pois a sua condição de brasileiro, de humilde terceiro-mundista, e a sua cor de jambo - que o diferençava dos demais branquelas - lhe apontava como suspeito!

          Suspeito de quê? Eis a pergunta que paira sobre essa gente, vítima de uma cruel, sanhuda triagem, que o torna suspeita perante as forças ditas da Ordem.

          E o inocente Jean Charles sabia de sua sina naquela terra madrasta, de gente estrangeira e que o tratava amiúde com aquela inata desconfiança que ela reserva às legiões de trabalhadores anônimos que ali estão para servir a essa mesma gente - em trabalhos que ela estima indignos dela própria.

          É a sorte da ignomínia que a plaga de gente rica dispensa aos proletários que acorrem das terras tropicais. Eles pagam com a sua faina miúda os salários que os locais lhe dão, com a má-vontade que se dispensa àquilo com que esses mesmos locais não podem viver sem.

          Pela aparência e a pobreza, Jean Charles integra sem o saber a princípio, o peculiar submundo do proletário interno. Tal madrasta condição ele a aprenderá durante a permanência em terra que, a um tempo, o repele e dele carece, num desses mal-amarrados pacotes  que o recebedor  acolhe com desconfiante incerteza.

         Vejam só, meus senhores e minhas senhoras, a sentença prolatada pela Alta Corte Européia dos Direitos Humanos!

         Reza o aresto que "a Justiça britânica conduziu investigação efetiva sobre morte de brasileiro confundido como terrorista".

         Jean Charles foi perseguido sem trégua nem oportunidade de declarar a sua verdadeira condição. Como ele parecia terrorista, pela tez e por aparência, e como não tinha outra saída senão fugir, pois a polícia de Sua Majestade lhe estava no encalço, a Corte Europeia dos Direitos Humanos o considera a priori culpado, pela própria condição da pobreza, que o torna suspeito dos piores malfeitos.    

          Jean Charles não tinha qualquer saída. Era culpado por ser trabalhador estrangeiro em terra de gente rica (e portanto temerosa) brasileiro, com a pele morena, que muitos apodam de pardo. O agente da lei de Sua Majestade o temia por várias razões: fugira, quando policial armado investira contra ele; estranho temor de Jean Charles, a um tempo lhe oferecia a senda da salvação, mas também o inculpava, porque depois, na serena ordem dos gabinetes policiais, o medo de Jean Charles - que a sua sorte confirmaria - valeria como ulterior desculpa para a organizada violência policial.

            Parece fábula, minha gente, mas é verdade, e nela está a sorte do imigrante, legal ou ilegal (como se a fome decidisse da legalidade), que cinicamente vira sentença da Alta Corte Europeia dos Direitos Humanos.

             Não cabe aqui, como não coube na viela do Metrô de Sua Majestade, quando o seu policial matou Jean Charles - que, excluída a própria condição, não ameaçava ninguém - qualquer aceno dessa Justiça que se autoproclama nos salões em que ela dita as próprias sentenças.

              Teme a gente de là bas o fasto de muitas justiças. A pompa e o fausto podem trazer dentro de si, como suprema ironia, a própria negação de o que pretendem tanto sinalizar, quanto significar.

 

( Fontes:  Site de O Globo; Arnold Toynbee )        

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