Nós brasileiros temos ainda presente o que a Polícia
de Sua Majestade britânica fez com Jean
Charles, um dos muitos de nossos compatriotas que tiveram de emigrar para
as Europas, em busca de sustento seu e de suas famílias?
Qual é a grande culpa de Jean Charles, que veio a causar-lhe a infausta e
prematura morte?
Na verdade, não haverá culpa mais
estranha e, no entanto, arraigada e inamovível, que é a marca e a aparência de
ser brasileiro.
Por causa de sua condição, da pobreza e
da falta de oportunidade do próprio meio, Jean Charles teve que viajar para bem
longe de sua terra natal.
Não só queria trabalhar, senão ganhar salário
digno, de modo a garantir sustento, morada e respeito a ele próprio e sua
família.
Jean Charles pensou que lá, aonde com
dificuldade chegara, obtivera emprego seguro e remunerador.
No entanto, o brasileiro Jean Charles -
que logo tratara de trazer para junto dele a própria família - esqueceu-se de
um detalhe ao qual aqui não se dá importância.
Todavia, esse mero pormenor não é coisa
de somenos na Terra de Sua Majestade.
Nordestino, tinha a cor de tantos
nossos nacionais, o moreno jambo da gente brasileira.
Indo para o trabalho, a polícia de Sua
Majestade, tangida pela histeria das ameaças terroristas, logo o confundiu na
matinal anônima multidão que como rebanho se encaminha para o metrô e o
trabalho, com alguma perigosa presa, sinalizada nos cartazes dos serviços da
ordem.
E, no entanto, Jean Charles tinha todos os papéis em ordem. Só uma marca o traía, marca
essa de nascença: era brasileiro e de compleição morena.
Poderia acaso haver tentado
explicar-se, dizer que era inocente, mesmo sem saber de quê? Pois a sua condição de brasileiro, de humilde
terceiro-mundista, e a sua cor de jambo - que o diferençava dos demais
branquelas - lhe apontava como suspeito!
Suspeito de quê? Eis a pergunta que
paira sobre essa gente, vítima de uma cruel, sanhuda triagem, que o torna
suspeita perante as forças ditas da Ordem.
E o inocente Jean Charles sabia de
sua sina naquela terra madrasta, de gente estrangeira e que o tratava amiúde
com aquela inata desconfiança que ela reserva às legiões de trabalhadores
anônimos que ali estão para servir a essa mesma gente - em trabalhos que ela
estima indignos dela própria.
É a sorte da ignomínia que a plaga de
gente rica dispensa aos proletários que acorrem das terras tropicais. Eles
pagam com a sua faina miúda os salários que os locais lhe dão, com a má-vontade
que se dispensa àquilo com que esses mesmos locais não podem viver sem.
Pela aparência e a pobreza, Jean Charles
integra sem o saber a princípio, o peculiar submundo do proletário interno. Tal
madrasta condição ele a aprenderá durante a permanência em terra que, a um
tempo, o repele e dele carece, num desses mal-amarrados pacotes que o recebedor acolhe com desconfiante incerteza.
Vejam só, meus senhores e minhas
senhoras, a sentença prolatada pela Alta Corte Européia dos Direitos Humanos!
Reza o aresto que "a Justiça britânica conduziu investigação
efetiva sobre morte de brasileiro confundido como terrorista".
Jean Charles foi perseguido sem trégua
nem oportunidade de declarar a sua verdadeira condição. Como ele parecia terrorista, pela tez e por
aparência, e como não tinha outra saída senão fugir, pois a polícia de Sua
Majestade lhe estava no encalço, a Corte Europeia dos Direitos Humanos o
considera a priori culpado, pela
própria condição da pobreza, que o torna suspeito dos piores malfeitos.
Jean Charles não tinha qualquer
saída. Era culpado por ser trabalhador estrangeiro em terra de gente rica (e
portanto temerosa) brasileiro, com a pele morena, que muitos apodam de pardo. O
agente da lei de Sua Majestade o temia por várias razões: fugira, quando policial
armado investira contra ele; estranho temor de Jean Charles, a um tempo lhe
oferecia a senda da salvação, mas também o inculpava, porque depois, na serena
ordem dos gabinetes policiais, o medo de Jean Charles - que a sua sorte
confirmaria - valeria como ulterior desculpa para a organizada violência
policial.
Parece fábula, minha gente, mas é
verdade, e nela está a sorte do imigrante, legal ou ilegal (como se a fome decidisse
da legalidade), que cinicamente vira sentença da Alta Corte Europeia dos Direitos Humanos.
Não cabe aqui, como não coube na
viela do Metrô de Sua Majestade, quando o seu policial matou Jean Charles -
que, excluída a própria condição, não ameaçava ninguém - qualquer aceno dessa
Justiça que se autoproclama nos salões em que ela dita as próprias sentenças.
Teme a gente de là bas o fasto de muitas justiças. A
pompa e o fausto podem trazer dentro de si, como suprema ironia, a própria
negação de o que pretendem tanto sinalizar, quanto significar.
( Fontes: Site
de O Globo; Arnold Toynbee )
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