Se a mãe
respectiva encontrasse jeito de cuidá-las à distância – por exemplo, de sua
sacada, e mesmo da Avenida Nossa Senhora de Copacabana – porque nessa época
ainda havia pouco edifícios na Atlântica, então melhor ainda.
Copacabana
naquele tempo era mesmo a Princezinha do Mar, tal como ela ainda vive na minha
memória, e nas modestas escrevinhações desse escriba da série Cidade Nua.
Tampouco
para os jovens teen-agers – termo que
na época me era desconhecido – não havia maior problema em ir aos cinemas do
bairro. Nos anos cinquenta, a TV Tupi
mal engatinhava, e a diversão estava sobretudo na série de salas de cine, como
o demonstravam as longas filas para comprar ingresso.
A única
dificuldade para os mais jovens era lograr acesso às inúmeras salas, como o Roxy (que ainda hoje resiste), ao Metro-Copacabana, Art-Palácio (em que passavam muitos filmes italianos), e um pouco
mais longe, no Ritz. Já no Posto 6,
existiam os cines da galeria Alaska
(com seriados à tarde), outros na Av. Copacabana e na rua Raul Pompeia, ainda
sonolenta, pois o túnel Sá Freire Alvim sequer era pensado.
A própria
ladeira Saint-Roman, que desemboca na Sá Ferreira, era uma rua burguesa, com
residências de classe média.
Isso sem
falar dos bondes da Light – o treze,
o doze e o catorze se não me engano – que íam e vinham pela avenida Nossa
Senhora de Copacabana, que então tinha duas mãos! Eram bondes com estribo, cobrador
e tudo, e duas seções, i.e., o ilustre passageiro que o
tomasse em Copacabana, em Botafogo, na rua da Passagem, teria que pagar mais
uma passagem, porque ali começava a segunda seção, que ia até o centro, passando
pelo Passeio Público.[1]
Criança ainda, quando minha mãe ia visitar
parentes nossos perto da Gávea – se não erro era com o Catorze – pégavamos o
bonde na Francisco Sá, quase esquina da Avenida Copacabana, e de lá seguíamos,
no que eu, menino, considerava uma
viagem para o longínquo arrabalde do
Leblon.
Embora nem tudo fossem rosas, os tempos então
era mais tranquilos. E, não obstante, a segurança que nos rodeava – e que nós,
a dela desfrutar, sequer nos dávamos conta – não é que não se podia andar muito
sem deparar com a dupla dos benquistos Cosme
e Damião, que eram os PMs que
cruzavam os logradouros cariocas, como creio hoje os guardas londrinos
palmilham as ruas da capital de Sua Majestade.
Ali estava pintado com as cores vivas
do presente realidade a que não dávamos maior tento, e que hoje, no ambiente e
na gente, não mais existe. Se fotos há na parede emolduradas, elas são vistas
hoje como simples memórias, e nas palavras do poeta Drummond – e como dóem !
Naquele tempo, em que éramos ignaros
e felizes, ainda não havia chegado o progresso, que no seu avanço vai
carcomendo os bairros e a gente. Quem chamaria hoje Copacabana de a Princezinha do Mar ?
Voltar ali, com o comércio
rebaixado, calçadas de que desapareceram as pedras portuguesas, iremos seguindo
em meio a público numeroso mas apressado, com aparência que igualmente veremos
nas descaracterizadas ruas do centro
citadino, de que fugiram as livrarias, as grandes lojas como a Torre Eiffel por
exemplo, e repontam assanhadas, como que duplicando o comércio do Saara,
lojinhas de artigos de baixa qualidade, além dos sólitos cartórios e farmácias,
muitas farmácias.
Na Uruguaiana, e guarnecida por
enorme camelódromo, se acha a estação do metrô, esse estranho mensageiro do
progresso acinzentado, apressado e inseguro dos dias que correm.
Ontem noticiei a morte de uma
pessoa, assassinada por bandidos. Hoje posso retificar a anotação apressada e procurar dar mais algum
sentido ao assassínio de modesto trabalhador, que estava na fila da
bilheteria do metrô para comprar a sua
passagem.
Alexandre Oliveira tinha 46 anos e ganhava a vida com o transporte
de valores.
Nesta cidade, hoje violenta e
quase sem lei, onde não mais se vêem perambularem os Polícias Militares Cosme e
Damião – assim chamados por mensageiros do bem – Alexandre foi brutalmente
trucidado por três foras da lei, enquanto à volta nem dupla, nem nenhum
policial se avistava. Antes, nós os
víamos como imagem da serenidade que estava por toda parte e que, na realidade,
semelhava até deles prescindir.
Hoje e ontem e amanhã e sempre,
as pessoas vagam por ruas com muita gente mas nenhuma que nos acene com o braço
forte da lei e da segurança.
Será que Alexandre tinha seguro,
pois o seu mister era de risco ?
O mais provável é que não.
Ouviremos ou leremos talvez palavras
de condolência da autoridade. No entanto, quando não estamos sob o reino de
algum magno certamen, elas sóem chegar sempre demasiado tarde.
Porque Alexandre Oliveira poderia
não ter morrido, se houvesse algum policiamento ostensivo. Não é assim que eles
o denominam quando há muitos estrangeiros circulando pela metrópole?
Só então as autoridades
evidenciam a necessária atenção e preocupação.
Para fazer transporte de valores, os bancos se
servem de carros blindados. Alexandre Oliveira fazia esse mister pondo em risco
a própria pele.
Pena que os Cosme e Damião são
coisa do passado. Então, eles eram
benquistos pelo Povo, embora não semelhassem muito necessários. Hoje, em que as
coisas mudaram e para muito pior, nem em
retrato na parede eles despontam.
( Fontes: O Globo, Carlos
Drummond de Andrade )
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