Baghdadi e os seus dois alternos
determinam sobre os principais objetivos do Grupo, que em seguida são
repassados para a hierarquia abaixo, com comandantes locais e administradores. Esses últimos têm latitude para cumprir as
tarefas respectivas, de acordo com o próprio julgamento, nos territórios sob
controle do Exército islâmico. Há conselhos de assessoria e vários
departamentos dirigidos por comitês. Os líderes dos respectivos departamentos tem assento no gabinete de Baghdadi.
De todos esses
o mais importante é o Conselho da Sharia,
que supervisiona a draconiana implementação
das penalidades por ‘crimes contra os limites de Alah’ (denominados hudud).
Esses ‘crimes’ incluem a pena capital assim como amputações. No que tange às
infrações menores (chamadas tazir) têm
por escopo envergonhar os transgressores e induzi-los ao arrependimento.
Assim como a
Polícia Religiosa na Arábia Saudita, o Estado Islâmico dispõe igualmente de
força policial baseada na sharia, e
ela é encarregada de impor a estrita observância religiosa.
Por outro
lado, a polícia comum está sob a
administração do ISIS, e usa uniformes negros. Os carros policiais exibem as
insígnias do ISIS.
As Cortes constituídas com base na sharia tratam de todas as queixas, tanto
religiosas, quanto cíveis, e os casos podem ser acionados seja por indivíduos, seja
pela polícia.
Em
aglomerações urbanas em que não havia policiamento nem judiciário, por causa do
colapso do governo central, estas cortes
são bastante populares. Os cidadãos podem submeter casos diretamente nessas
cortes, que estão habilitadas a processá-los rapidamente, e na maior parte das
vezes, razoavelmente bem.
A Justiça é dita
ser imparcial, com os soldados do ISIS sujeitos às mesmas punições que os
civis.
Segundo um
anônimo muçulmano sunita, que não é extremista, confidenciou ao repórter Atwan
que “agora não existe crime”, graças aos ‘métodos intransigentes dos extremistas
e a sua ‘consistência’. As taxas chamadas zakat
(um dos cinco pilares do Islã, em termos de obrigação religiosa) são coletadas
e dadas aos pobres e às famílias deslocadas de outras partes da Síria, que
montam a cerca de metade da população de
Manbij, nas cercanias de Alepo (sob controle do ISIS desde 2014)
O informante
de Atwan lhe disse que a gente vivendo sob a égide do ISIS está de acordo com a sua política
educacional, que se baseia em linha estritamente salafista ou ultra-ortodoxa na interpretação do Alcorão e a lei da sharia. Os professores voltaram a
receber os seus salários, depois de meses de interrupção. Em muitos casos o
currículo nas escolas sauditas –
especialmente em nível médio e ginasial – foi adotado por completo. Diversos
temas são, no entanto, banidos, como o estudo da evolução das espécies na
biologia. No entanto, apesar do reportado por partes da mídia, as meninas e
moças não são privadas da educação. Já os dois gêneros têm educação em
separado, havendo escolas e universidades
inteiramente dedicadas ao sexo feminino. Tampouco são proibidas de
dirigir, como na Arábia Saudita.
Os jihadistas do ISIS podem ser
terroristas, mas são bem pagos e disciplinados. As atrocidades que cometem e
que gravam na internet fazem parte de
estratégia coerente: crucifixões, cabeças decepadas, o coração de vítimas de
estupro retirado e colocado sobre o torax respectivo, homossexuais jogados de
altos edifícios, cabeças cortadas empaladas em cercas ou brandidas por
sorridentes crianças jihadistas – essas macabras imagens de brutal violência
são apresentadas em pacotes de programas distribuídos pelo departamento da
mídia do Estado Islâmico. O escopo é que sejam publicadas pela mídia mundial, e
tanto melhor se acompanhadas de manchetes de primeira página...
Não se
trata apenas de orgia de sadismo. O terror do ISIS é política aplicada de forma
sistemática. O conteúdo desta ‘literatura’ é sumarizado em panfleto –
distribuído on-line sob o título – O
Gerenciamento da Selvageria, de autoria de ideólogo da al Qaida Abu
Bakr Naji. Foi colocado na internet em 2004, muito citado pelos
jihadistas, e é uma rationale para a violência e um plano para o Califado.
A fonte
desse panfleto está nos escritos de Taqi al-Din ibn Taymiyyah (1263-1328). Esse
teólogo medieval inspirou o movimento Wahhabi,
e é havido em alta conta por inspirar os governantes na prática da verdadeira
religião.
Naji,
por sua vez, infelizmente não está mais entre nós. Foi morto por um ataque de drone, no Waziristan (terra inóspita que
aparece no filme de David Lean, Lawrence da Arábia), em 2008. Ele considerava o
conflito como estágio necessário no estabelecimento do Califado. Após a
indispensável comparação com os trabalhos do Profeta, Naji encarava o próximo
período de selvageria como um tempo de
“vexação e exaustão” quando “os superpoderes sofreram com a guerra de atrito
pela ameaça constante dos jihadistas. Os Americanos “ já alcançaram um estágio de efeminação que os
inabilita a sustentar batalhas por um largo período de tempo.”
O
objetivo de Naji – na explicação de Atwan – “é induzir os Estados Unidos a
abandonar a sua guerra contra o Islã por procuração e a guerra psicológica da
mídia ... e forçá-los a lutar diretamente.”
Segundo
Atwan, ao contrário da proposta de Naji, o ISIS maximiza o impacto de sua
estratégia do terror ao encorajar que cenas de violência e morte sejam
mostradas em telas e celulares. A brutalidade, no entanto, é apenas um
elemento na corrente de imagens
carregadas em sofisticadas fontes da mídia.
O
Estado Islâmico é também apresentado como lugar atraente que dá importância à
gente, em que todos são ou um ‘irmão’ ou
uma ‘irmã’. Uma espécie de gíria, que junta adaptações ou reduções de termos islâmicos com a linguagem da rua,
está evoluindo em meio à fraternidade de língua inglesa nas plataformas da
mídia social em tentativa de criar ‘um
jihadi cool’.
A
idéia de um ‘restaurado Califado’ seria sonho de nostálgicos desde a abolição
formal do Califado Otomano pelo General Mustafá Kemal, em 1924.
Este
apelo, promovido com cuidado por Baghdadi através da Internet e da mídia social
seria o de um corpo transnacional que estaria acima das várias tribos ou
comunidades que formam o mundo muçulmano. Segundo assinala Atwan, eles estariam
fazendo progresso, com expressões de obediência (allegiance-em árabe, bayat)
de lugares espalhados pelo mundo, como Nigéria, Paquistão e Yemen. Na Síria, o
ISIS tem uma base, localizada em Sirte, a terra natal de Muammar Kaddafi.
O
lance de maior efeito psicológico nos jihadistas é o sonho do martírio – tema
que, espertamente, vem justaposto com imagens da serenidade doméstica. Assim, closes de faces sorridentes de lutadores
mortos são amiúde postados na web,
juntamente com a saudação do ISIS – o
dedo indicador da mão direita apontando
para o céu.
Pensando em espectadores mais jovens, já habituados à violência simulada
na tevê e nos jogos de computador, o finado Naji aumenta a aposta, ao insistir
que em missões suicidas os jihadistas
deveriam usar “uma quantidade de explosivos que não só destrua o edifício...
mas faça com que a terra o engula por completo. Assim procedendo, o tamanho do
medo do inimigo é multiplicado e bons objetivos na mídia são alcançados.”
A
utilização de explosivos para fins tanto de propaganda, quanto militares pode
ser comparada às táticas de “choque e terror” favorecidas por Donald Rumsfeld (secretário de defesa) e
o general Colin Powell no ataque a
Bagdá em 2003. Graças à fama on-line
de ferozes jihadistas o medo
inspirado nas tropas governamentais do Iraque e da Síria os levou a fugir, ao
invés de esperar pela tropa inimiga e lutar.
O terror que possa induzir
o medo é também personalizado. Naji recomenda
que os refens cujos resgates não foram pagos devem ser “liquidados na mais aterrorizante maneira, de modo a
jogar medo nos corações do inimigo e dos seus apoiadores.” Cidadãos americanos
– James
Foley e Steven Sotloff – foram executados, e a sua morte era filmada,
enquanto eles usavam os abrigos laranja dos prisioneiros da Baía de
Guantanamo. Segundo explica Atwan, a
teatralidade on-line serve para
legitimar o assassínio como um tipo de qisas
(retaliação em espécie), que é uma das bem conhecidas punições na Lei Islâmica.
Quem cuida da distribuição na mídia foi o próprio departamento da mídia
do ISIS, que é chefiado por Sírio-americano nascido na França e treinado em
Massachusetts. Por outro lado, quem cuida do Departamento de Informação é outro
sírio, Abu Muhammad al-Adnani al-Shami,
que Atwan descreve como “a mais importante figura no Estado Islâmico, depois do
Califa
Ibrahim e de seus alternos.” Esse novo Goebbels do Estado Islâmico, além da inflamatória propaganda,
inventou faz pouco a tática do ‘lobo
solitário’ para os simpatizantes que vivam no Ocidente. Al-Shami, que não
parece muito estrito quanto aos modelos escolhidos por seus ouvintes, recomendou-lhes que matassem ‘cidadãos de
países que aderiram a coalizão contra o Estado Islâmico’ da maneira que fosse
mais fácil, como atropelando pessoas com veículos. À sua alocução se seguiu uma sucessão de ataques tipo atropele e fuja no Canadá, França e Israel.
No Ocidente há um trabalho sustentado de remoção de itens que enaltecem
a jihad. Assim o Departamento de Estado retirou 45
mil itens pró-jihad da Internet. Já a Polícia metropolitana de Londres
retira cerca de 1.100 por semana. Esses intentos, por bem intencionados que
sejam, é tarefa ingrata, porque destinada ao malogro. Terão o mesmo ‘êxito’ que
os esforços para abolir a fraude na internet.
Atwan, que visitou a área dominado pelo ISIS em fins de 2014, considera
o número de soldados do Estado Islâmico bem acima dos cem
mil que são em geral citados pela mídia ocidental. Desses, trinta mil
seriam estrangeiros (i.e., não-iraquianos e não-sírios). Pelo que possam valer,
eis os percentuais, consoante o Instituto Washington: Líbios (21%), Tunisianos
e Sauditas (16%), Jordanianos (11%), Egípcios (10%) e Libaneses (8%). Segundo
Atwan, o número de voluntários Turcos foi subestimado, havendo cerca de dois
mil turcos no ISIS.
Por sua vez, os europeus são
liderados pelas brigadas francesas (compostas por franceses e belgas de
descendência norte-africana), com cerca de 6% do total, seguidos pelos ingleses
com 4,5%. A par disso, as autoridades
australianas ‘ficaram chocadas ao saber’ que cerca de duzentos de seus co-nacionais tinham entrado no ISIS “tornando esse país o
maior exportador per capita de
jihadistas estrangeiros”.
Dado o
sigilo que cerca esse tipo de informação, há dúvidas pelo menos quanto às
fontes de financiamento do ISIS, conforme de resto assinalado no blog anterior sobre o ISIS. Segundo
Atwan, a maior fonte de renda para o Exército Islâmico é o petróleo. Essa fonte,
no entanto, foi prejudicada pela
reconquista em abril dos campos de Tikrit pelo Iraque.
Como
assinalado no capítulo anterior, os fundos do ISIS poderiam chegar até oito
bilhões de dólares. Em se tratando de organização monstruosa e clandestina, é
vã a tentativa de precisar os diversos valores movimentados pelas instâncias do
ISIS. Dessa maneira, em janeiro de 2015, os recebimentos gerais montaram a dois bilhões de dólares em todos os territórios controlados, com
saldo de 250 milhões somados aos
fundos acumulados.
Os
prejuízos causados pelos bombardeios aéreos americanos aos campos de petróleo
da Síria em Deir el-Zor foram compensados pela conquista de Palmyra (Tadmor)
que tem dois campos de gás natural, e uma mina de fosfato, que é a maior da
Síria. Sem falar das antiguidades
vendidas para o mercado paralelo ilegal, os resgates, as taxas nas
encruzilhadas, os roubos de bancos, e os ‘impostos’ cobrados dos estrangeiros a
comerciantes que vivam em áreas dominadas pelo ISIS, há também a Jizia, o imposto per
capita pago por Judeus e Cristãos (existente no Império otomano até o
século XIX) é hoje cobrada de não-muçulmanos, enquanto pilhagem e ‘bens de
guerra’ (incluindo mulheres capturadas e escravos) podem sem distribuídos
conforme prescrições corânicas.
Ainda
existe neste Estado pirata o valor dos bens de antigas civilizações, que é
vendido enquanto possa ser alienado. Como no mais que concerne o ISIS, as
limitações não são éticas, nem decorrentes de apreço (no caso inexistente) às
obras de arte das civilizações antigas. O que for fungível, e se o preço for
conveniente, o objeto de arte será alienado.
( Fonte: The New York Review of Books, nr. 12, 9 de julho de 2015, artigo
de Malise Ruthven, ‘Dentro do Estado Islâmico’ ).
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