Por série de reportagens,
complementadas por comentários esparsos, se reforça a impressão da falta de
segurança em alto mar. Esta insegurança não é, decerto, generalizada, mas está
presente em grandes zonas, notadamente no Oceano Índico.
Não me refiro, apenas, a essa antiga
praga de que o mar constitui o ambiente aparentemente propício. Com efeito, a
pirataria – uma atividade que o desenvolvimento das comunicações e da capacidade
naval moderna, se pensou, a tecnologia e o chamado progresso tornariam entre
obsoleta e impraticável – voltou a ser ameaçadora presença, sobretudo para os
que cruzem o Índico e adjacências.
Os piratas e a sua versão híbrida, vale
dizer aquele comissionada pelo Estado, como foram os corsários, carecem de mar
sem lei, ou com largos espaços deixados ao deus dará.
Por isso, o crime em alto mar constitui
espécie de epifenômeno desse largo espaço, desde que preencha condições
essenciais: a falta de policiamento dentro de determinado espaço marítimo e a
existência de base terrestre que proporcione refúgio aos piratas e que lhes
forneça os recursos indispensáveis para a respectiva atividade criminosa.
Desde a Antiguidade surge a pirataria,
quando atendidas tais condições. Nesse período, pela precariedade da navegação,
os piratas se valiam de áreas em que a presença de um Estado mais forte não se
assinalava. Também ocorria em fases marcadas por guerras intestinas, sem que se
formasse um papel mais incisivo do Estado. Dessarte, os chamados piratas da
Cilícia apareceriam em espaços no qual a eventual atuação mercantil de estados
mais fortes lhes permitia exercer incursões que podiam ser altamente
prejudiciais ao comercio e aos escambos da época. Com o reforço do Estado, no
caso Roma, tais atividades delituosas tenderiam a desaparecer, eis que o poder
preponderante cuidaria de destruir-lhes as bases de apoio terreste e as suas
incursões marítimas.
Nesse contexto, a pirataria – que muitos
pensavam extinta ou mantida precariamente em bases esparsas nos mares da China
– pôde reaparecer com força, sobremodo na costa da África Oriental. Foram aí
criadas as condições para a respectiva existência com a falência do Estado
depois da queda de Siad Barre, na Somália. Como lá não surgiu Estado sucessor com força suficiente para
dominar essa larga área na costa do Índico
- e como ali existe um tráfego naval considerável – foram colocadas as
pré-condições para que uma extensão substancial de terra pudesse gravitar em
torno de atividade criminosa, como é a pirataria – que tem dois ramos julgados
lucrativos: (a) o sequestro de tripulações e da respectiva carga desses navios;
e (b) o sequestro de iates e de barcos de turismo, com vistas a apossar-se de seus passageiros e
dos respectivos valores e carga, aí igualmente incluída a respectiva
tripulação. Além da tensão e do desgaste emocional e físico decorrente, o
aspecto de maior potencial de lucro com respeito a determinados passageiros
envolve processos cujo caráter deletério, sobretudo psíquico, não pode ser
minimizado, mormente pelos enormes riscos envolvidos.
Muito sofrimento foi imposto a inocentes
pessoas que terão sido surpreendidas por essa nova ‘atividade lucrativa’.
Assinale-se que grande parte da Somália,
que virou terra sem lei, ou quiçá em forma mais precisa sob o al-Shabab
(que é uma das variantes da al-Qaida) em que bestial crueldade integra o
sistema . Além disso, sob esquema de comissionamento de áreas, grupos de
pessoas ou quadrilhas se dedicam ao financiamento dessa atividade de rapina. Uma vez conseguido o domínio da nave se
iniciam os contatos para a cobrança do resgaste, tanto da carga, quanto das
pessoas. Como se verificou em casos determinados de apresamento de cargueiros
ou de outro tipo de embarcação, toda uma área da antiga Somália se dedica à
atividade de cobrança. Nessa economia de roubo e extorsão, como se há de
intuir, o respeito pela vida e incolumidade dos cativos é bastante relativo.
Pessoas havidas como em condição não-comercial – i.e., não suscetíveis de sustentarem pagamentos acreditados
compensatórios – ou são abandonadas à própria sorte ou eventualmente
eliminadas, se a sua sobrevivência for considerada um risco suplementar para a
organização pirata.
Como se há de supor a persistência deste
substancial incômodo – além de empecilho ponderável à normalização do comércio
e de outras atividades legais – representa obstáculo considerável ao comércio
internacional, a par de levar ao encarecimento dos fretes (é de imaginar-se que
os prêmios dos seguros de passageiros e de mercadorias que por aí passem sejam
assaz encarecidos).
Condições para o desaparecimento
desta atividade criminosa – a pirataria internacional – só podem ser dadas por
vontade plurinacional de extinguir-lhe os respectivos focos.
Uma pré-condição estaria na
reimplantação de um Estado na Somália. No momento, a autoridade lá existente é
sumamente débil, não conseguindo (ou não querendo) lidar tanto com a praga da
pirataria, quanto com a indispensável eliminação dos respectivos focos de
apoio.
Alternativa a isto, estaria em
coalizão naval internacional que destruísse as embarcações piratas, assim como
interviesse para que os intentos de apreensão de barcos e navios não se
consumassem. Na hipótese da ação continuada, a pirataria deixaria de interessar
aos respectivos agentes (e focos de apoio), pela falta de compensações (ou pela
brutal redução dos eventuais lucros). Uma ou outra linha de ação – ou as duas
conjugadas – tenderiam a apressar de forma considerável a eliminação, como
atividade lucrativa, da pirataria.
No entanto, esta coalizão
internacional, posto que ensaiada, não se fortaleceu. E a razão principal de
seu eventual desfazimento foram os altos custos da manutenção de força naval em
condições de atacar e destruir (ou neutralizar, através do apresamento) os
dispares barcos empregados pelos piratas somalis. Apesar de que a sua presença na prática
inviabiliza a atividade criminosa, esta última apelou para o velho expediente
dos mais fracos que por falta de alternativa não tem outra opção, senão a de
esperar. E, desafortunadamente, pelo menos por enquanto, tal antiquíssima atividade
criminosa logra manter-se pela simples conjunção de dois fatores: se ela se
mantém por falta de alternativa, a inação da parte mais forte lhe dá ulterior
motivação para persistir.
Salta aos olhos que a extirpação
da pirataria pressupõe a inabilitação de emprego de sua base de apoio. Para tal
há uma dupla opção: (a) criar condições para restabelecer um estado digno desse
nome na Somália; e (b) destruição sistemática das atuais bases de apoio da
pirataria e da eliminação de seus agentes. Em nenhum dos casos o desafio é
pequeno. Mas ele se afigura indispensável, se quisermos evitar para inúmeras
pessoas inocentes o martírio de longo e cruel cativeiro, condição que
de resto não exclui a presença do deus
tanatos[1], seja
por capricho de sádicos de plantão, seja
por falta de condições mínimas de subsistência.
A pirataria – que vem associada na
prática a instituições que se acreditavam em desuso, como a escravidão e a
servidão – como tantas outras plantas daninhas, nasce, reponta, cresce e se
dissemina no lodo da negligência e da hipocrisia internacional.
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