segunda-feira, 27 de julho de 2015

O Crime em Alto Mar

                                      

         Por série de reportagens, complementadas por comentários esparsos, se reforça a impressão da falta de segurança em alto mar. Esta insegurança não é, decerto, generalizada, mas está presente em grandes zonas, notadamente no Oceano Índico.

         Não me refiro, apenas, a essa antiga praga de que o mar constitui o ambiente aparentemente propício. Com efeito, a pirataria – uma atividade que o desenvolvimento das comunicações e da capacidade naval moderna, se pensou, a tecnologia e o chamado progresso tornariam entre obsoleta e impraticável – voltou a ser ameaçadora presença, sobretudo para os que cruzem o Índico e adjacências.

        Os piratas e a sua versão híbrida, vale dizer aquele comissionada pelo Estado, como foram os corsários, carecem de mar sem lei, ou com largos espaços deixados ao deus dará.

        Por isso, o crime em alto mar constitui espécie de epifenômeno desse largo espaço, desde que preencha condições essenciais: a falta de policiamento dentro de determinado espaço marítimo e a existência de base terrestre que proporcione refúgio aos piratas e que lhes forneça os recursos indispensáveis para a respectiva atividade criminosa.

        Desde a Antiguidade surge a pirataria, quando atendidas tais condições. Nesse período, pela precariedade da navegação, os piratas se valiam de áreas em que a presença de um Estado mais forte não se assinalava. Também ocorria em fases marcadas por guerras intestinas, sem que se formasse um papel mais incisivo do Estado. Dessarte, os chamados piratas da Cilícia apareceriam em espaços no qual a eventual atuação mercantil de estados mais fortes lhes permitia exercer incursões que podiam ser altamente prejudiciais ao comercio e aos escambos da época. Com o reforço do Estado, no caso Roma, tais atividades delituosas tenderiam a desaparecer, eis que o poder preponderante cuidaria de destruir-lhes as bases de apoio terreste e as suas incursões marítimas.

        Nesse contexto, a pirataria – que muitos pensavam extinta ou mantida precariamente em bases esparsas nos mares da China – pôde reaparecer com força, sobremodo na costa da África Oriental. Foram aí criadas as condições para a respectiva existência com a falência do Estado depois da queda de Siad Barre, na Somália. Como lá não surgiu  Estado sucessor com força suficiente para dominar essa larga área na costa do Índico  - e como ali existe um tráfego naval considerável – foram colocadas as pré-condições para que uma extensão substancial de terra pudesse gravitar em torno de atividade criminosa, como é a pirataria – que tem dois ramos julgados lucrativos: (a) o sequestro de tripulações e da respectiva carga desses navios; e (b) o sequestro de iates e de barcos de turismo,  com vistas a apossar-se de seus passageiros e dos respectivos valores e carga, aí igualmente incluída a respectiva tripulação. Além da tensão e do desgaste emocional e físico decorrente, o aspecto de maior potencial de lucro com respeito a determinados passageiros envolve processos cujo caráter deletério, sobretudo psíquico, não pode ser minimizado, mormente pelos enormes riscos envolvidos.

          Muito sofrimento foi imposto a inocentes pessoas que terão sido surpreendidas por essa nova ‘atividade lucrativa’. Assinale-se que grande parte da Somália,  que virou terra sem lei, ou quiçá em forma mais precisa sob o al-Shabab (que é uma das variantes da al-Qaida) em que bestial crueldade integra o sistema . Além disso, sob esquema de comissionamento de áreas, grupos de pessoas ou quadrilhas se dedicam ao financiamento dessa atividade de rapina.  Uma vez conseguido o domínio da nave se iniciam os contatos para a cobrança do resgaste, tanto da carga, quanto das pessoas. Como se verificou em casos determinados de apresamento de cargueiros ou de outro tipo de embarcação, toda uma área da antiga Somália se dedica à atividade de cobrança. Nessa economia de roubo e extorsão, como se há de intuir, o respeito pela vida e incolumidade dos cativos é bastante relativo. Pessoas havidas como em condição não-comercial – i.e., não suscetíveis de sustentarem pagamentos acreditados compensatórios – ou são abandonadas à própria sorte ou eventualmente eliminadas, se a sua sobrevivência for considerada um risco suplementar para a organização pirata.

            Como se há de supor a persistência deste substancial incômodo – além de empecilho ponderável à normalização do comércio e de outras atividades legais – representa obstáculo considerável ao comércio internacional, a par de levar ao encarecimento dos fretes (é de imaginar-se que os prêmios dos seguros de passageiros e de mercadorias que por aí passem sejam assaz encarecidos).

            Condições para o desaparecimento desta atividade criminosa – a pirataria internacional – só podem ser dadas por vontade plurinacional de extinguir-lhe os respectivos focos.

            Uma pré-condição estaria na reimplantação de um Estado na Somália. No momento, a autoridade lá existente é sumamente débil, não conseguindo (ou não querendo) lidar tanto com a praga da pirataria, quanto com a indispensável eliminação dos respectivos focos de apoio.

            Alternativa a isto, estaria em coalizão naval internacional que destruísse as embarcações piratas, assim como interviesse para que os intentos de apreensão de barcos e navios não se consumassem. Na hipótese da ação continuada, a pirataria deixaria de interessar aos respectivos agentes (e focos de apoio), pela falta de compensações (ou pela brutal redução dos eventuais lucros). Uma ou outra linha de ação – ou as duas conjugadas – tenderiam a apressar de forma considerável a eliminação, como atividade lucrativa, da pirataria.

           No entanto, esta coalizão internacional, posto que ensaiada, não se fortaleceu. E a razão principal de seu eventual desfazimento foram os altos custos da manutenção de força naval em condições de atacar e destruir (ou neutralizar, através do apresamento) os dispares barcos empregados pelos piratas somalis.  Apesar de que a sua presença na prática inviabiliza a atividade criminosa, esta última apelou para o velho expediente dos mais fracos que por falta de alternativa não tem outra opção, senão a de esperar. E, desafortunadamente, pelo menos por enquanto, tal antiquíssima atividade criminosa logra manter-se pela simples conjunção de dois fatores: se ela se mantém por falta de alternativa, a inação da parte mais forte lhe dá ulterior motivação para persistir. 

             Salta aos olhos que a extirpação da pirataria pressupõe a inabilitação de emprego de sua base de apoio. Para tal há uma dupla opção: (a) criar condições para restabelecer um estado digno desse nome na Somália; e (b) destruição sistemática das atuais bases de apoio da pirataria e da eliminação de seus agentes. Em nenhum dos casos o desafio é pequeno. Mas ele se afigura indispensável, se quisermos evitar para inúmeras pessoas inocentes o martírio de longo e cruel cativeiro, condição que de resto não exclui a presença do deus tanatos[1], seja por capricho de sádicos de plantão, seja por falta de condições mínimas de subsistência.

               A pirataria – que vem associada na prática a instituições que se acreditavam em desuso, como a escravidão e a servidão – como tantas outras plantas daninhas, nasce, reponta, cresce e se dissemina no lodo da negligência e da hipocrisia internacional.

 
( Fontes: artigo em The New Yorker; ‘Captain Phillips’, filme estrelado por Tom Hanks e dirigido por Paul Greenglass)



[1] Divinização da Morte.

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