terça-feira, 31 de março de 2015

Lembrança de Paulo Francis


                                     

         Paulo Francis está fazendo falta. As suas notícias da Corte, com a peculiar verve, traziam visão crítica da realidade de então, matizada pela luz da ironia, que a iluminava com insinuantes lampejos.

         Uma figura que se sentira quiçá sem espaço em sociedade afeta pelo mal a seu tempo incurável do provincianismo, ele seria sempre o jornalista incômodo que aplicava os próprios critérios e o imanente anseio de mergulhar na arisca veracidade de ideias, fatos e sentimentos ao alcance da pena. Pensava traçar o retrato contemporâneo com os riscos impiedosos do colunista, sempre tingidos por compromissos com a realidade dos fatos. Ou então recorria à voz absurdamente empostada, que trazia das brumas de Manhattan uma realidade impregnada de sua interpretação crítica.

         A agressiva mediocridade do entorno lograria expulsá-lo para bem longe, ainda que, sob as regras do paradoxo a nortear-lhe a existência, o ‘exílio’ ele o desfrutaria na Atenas da pós-modernidade, na ilha de Manhattan, com os seus bons restaurantes e melhores conversas.

         Dessarte, as notícias da Corte seriam sempre tingidas por visão crítica, cujo compromisso mais se fundava no estro do jornalista, que preferia os caprichos dos voos solo, à rotina de esquemas de suporte.

         Ceifariam a vida do grande correspondente, seja a distorção cruel da então diretoria da Petrobrás, seja o tratamento médico inadequado. Francis pagaria preço demasiado alto pela sua franquia da crítica. Sob o olhar indiferente do então Presidente, os que se acreditavam acusados por malversação  de fundos, escolheram como foro a justiça de New York.

         O fora era impróprio e sobretudo inadequado.  Se  a transmissão do programa era rotineiramente gravada em Manhattan, ela não se destinava ao público americano e sim àquele do Brasil. Nenhum magistrado americano tinha por que conhecer do pleito,  eis que não concernia ao povo americano e sim ao brasileiro, para quem a Manhattan Connection era (e é) transmitida.

        Não foi decerto por acaso que essa peça seria pregada ao pobre panfletário.  Adrede escolhida, para investir o cavaleiro solitário, que nem Sancho Pança tinha para assisti-lo, a quem de repente se comunicou a absurda escolha, que solertes advogados fizeram valer para que conhecesse da ação  juiz distrital de New York, os especiosos pormenores de um programa que já se chamava Manhattan Connection !  De repente, a ele sozinho, o investe a portentosa maquinaria com os absurdos custos judiciais de um processo na ilha mais cara do Universo!

        Mais tarde, dos efeitos sobre a saúde já periclitante, os poucos meios cuidariam de fazer o restante do trabalho maldito. Sem recursos e com inadequado assistência médica, Paulo Francis seria triturado por um atendimento insuficiente.

        A amarga ironia que cercou o passamento do grande jornalista está em haver suspeito de grossas irregularidades, e de grandes fundos desviados na Petróleo Brasileiro S.A. Se o foram ou não, o que aconteceu com o posterior Petrolão, de marca petista,  não aclara se aconteceram ou não sob FHC. Com o seu tino jornalístico, Paulo Francis se adiantou a seu tempo. Uma frase que pensava inconsequente, faria pesados estragos. De qualquer forma, não envolveria a administração tucana, mas restaria a determinar a responsabilidade individual dos diretores de então. A par disso, como o deixa meridianamente claro o ótimo documentário Caro Francis, de Nelson Hoineff, quem matou o pobre Francis foi a armadilha de ação judicial no foro de New York, ideada por Joel Rennó e os diretores da Petrobrás, tornada possível pela placidez de FHC. Totalmente fora do solitário esquema de jornalista independente, a ação se transformou em verdadeiro Leviatã que lhe consumiria a saúde já frágil. Na entrevista filmada por Hoineff, o então presidente parece tudo observar com um sorriso ausente, com aqueles ares de Buda com que, por vezes, contemplava o que se lhe passava ao redor.

          Sem embargo, lhe bastaria um gesto quase de enfado para que a toda a armação se desmontasse, naquela cruel jogada que permitira aos diretores da Petrobrás castigarem o indômito jornalista com fundos que não eram seus.

          Infelizmente, por natureza ou não, FHC continuou a sorrir e, no caso em tela, nada fez, malgrado o pouco que tal lhe exigiria.

 

( Fonte:  Caro Francis, de Nelson Hoineff )

 

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