quarta-feira, 29 de junho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (XXII)

                             

        As memórias que guardo do tio Adolpho são de extensão vária. Ao abrir esse baú da recordação, ao remexer em mala esquecida em algum porão, se pode, claramente, mais do que intuir, aquilatar a perturbadora sensação da finitude de todas as coisas.
        E há várias maneiras de tentar não perdê-las. Por exemplo, filmar as comportadas aventuras nos foros romanos, levando pela mão dois meninos, um mal-saído das fraldas, e o outro com a ilusão de tudo explorar com as próprias pernas.
        Os pais, enquanto cuidam com muita atenção os dois filhotes, passam por antigas maravilhas sem ter tempo de dispensar-lhes a atenção devida, quem sabe até lograr um slide que depois mereça a sensação de que o passeio não fora em vão...
       Aí me lembro da terrível rocha Tarpeia, atrás do Capitólio, de onde lançavam os condenados. Como olhar para aquele vetusto rochedo, de que já leste do terror que inspirava aos fora da lei, diante da perspectiva de serem jogados ao abismo...
        Mas espera um momento. Será que essa rocha encolheu? Ou talvez seja a erosão... Porque existe aqui algo que não encaixa com as páginas sobre os gritos dos infelizes dali arremessados ou empurrados para a morte certa...
         Porque, se algo me impressionou, foi a contradição, entre aquele quase histórico barranco, com as execuções que nele foram realizadas... Nas visitas que fazemos a ruínas, seja na Grécia, seja na Itália, espanta sempre como as alturas podem ser relativas, e o que era um quase-abismo, não passa para nós, turistas da pós-modernidade, de um quase-barranco.
         Recordo-me aqui da minha visita ao Jardin de l'acclimatation. Não foi sem emoção que entrei nas estreitas vias do Bois de Boulogne, dirigindo o melhor carro que já tive - um Porsche 356-C - com a missão de mostrar a pequeno Simca cor roxo-escuro a localização de bar ao ar livre, onde se serviam - na sazão, é claro - os melhores morangos silvestres da velha Lutétia, também chamada Paris. Quem me acompanhava, com surpreendente direção segura, era um senhor recém-chegado do Brasil, e que trouxera também a esposa. No carrinho, e ao lado daquele que com mão firme, negociava as curvas no bosque, vinham também os Tios Adolpho e Lucy. Também estava no grupo, a senhora Sarah, a supracitada consorte.
           Era tarde primaveril, daquelas em que se sente prazer em conviver com a natureza, que faz pouco despertara das agruras hibernais.
            Mas a importância da ocasião, embora todos os acompanhantes a sentissem, tinha gosto especial para o jovem Segundo Secretário. Não é que ali estava formalmente descumprindo ordens? 
            O Ministro da época antecipara a vinda daquele senhor de bem-cortado terno azul marinho. Aos integrantes da Embaixada em Paris, situada no número 45 da Avenue Montaigne, determinara que deviam evitar todo contato social com aquele senhor simpático, que me seguia em modesto carrinho.
              A chamada gloriosa já submetera esse Senhor a várias indignidades, como interrogá-lo em intermináveis IPMs (Inquérito Policial-Militar) e até constrangê-lo a um breve exílio.
              Adolpho não era o mesmo quando estava na companhia de Juscelino Kubitschek. Sem exagero, mas com a firmeza do amigo - e que melhor atenção há de merecer o ex-presidente, reconhecido pelo Povo, e escorraçado por golpe militar - ele prodigava aquelas pequenas mostras de atenção e respeito que ornam as grandes amizades.
                De JK aprendi muitas lições. Vítima de várias ignomínias, ele não se queixava, talvez pela própria grandeza que não lhe permitia apequenar-se diante de gente menor.  Seguramente, não o fazia por soberba, mas com a postura natural de quem galgou alturas, sem mal dar a perceber. E quando dona Sarah, revoltada, aludia às vilanias, ele apenas esboça sinal, atencioso como sempre, mas que lhe insta a calar. Não valia a pena.
                  Muito mais tarde, quando Deus me permitiu estar presente na missa fúnebre na Catedral de Brasília, em que, no traço genial de Oscar Niemeyer, as mãos do Povo no cimento caloso se erguem, expectantes,  pude assistir às mais belas exéquias da minha vida. Em certa hora, quando os transidos oficiantes encaminham a homenagem, eis que principiam a rasgar aquele pedaço de céu que ali se concentra os brancos lírios do campo. Nas suas belas elipses, vindas de toda parte, tal anônima homenagem eles cruzam o céu do templo, descrevendo nos incertos arcos do transitório a funda, inexgotável comoção do Povo, que sabe distinguir o raro herói em meio ao cotidiano adverso. Ao partilhar da emoção, via naqueles caprichosos traços a firme certeza de o que ora se perdia para sempre.

                  Através de gesto na aparência singelo, toda aquela gente miúda e sem rosto, cresce imponente no próprio culto ao herói morto.  Lançados por centenas, aqueles lírios, tão magníficos quão modestos, adornam a mais bela cerimônia fúnebre, que Igreja alguma jamais logrará igualar. O amor do Povo ali está. Por toda a parte, na liturgia que cresce à volta, e nos parece imorredoura neste alvo arco iris, a que contemplávamos em silêncio, em hora grande e cava, em que mal se logra ouvir o plangente choro de  criança. 

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