quinta-feira, 9 de junho de 2016

Lembranças de meu Tio Adolpho (IX)

                       

        Para Adolpho, o palavrão quase constituía uma espécie de pontuação na própria linguagem.  Ao lado do evanescente sotaque da língua russa (o menino Adolpho chegara ao Brasil com treze anos de idade, junto com toda família de seu pai, o gráfico Joseph Bloch) e de algumas expressões que haviam sobrevivido à travessia, virando frases em português (não é verdade isto?), a ambulante prosódia de meu tio - hoje me dou conta - poderia ser objeto dos cuidados de um linguista, o que quiçá ajudaria ao eventual biógrafo...
       Dessarte, repontavam os palavrões, que com ele quase funcionavam qual espécie de conexão para o discurso, como se a respectiva inserção lhe permitisse ligar uma idéia a outra. Se agitado estivesse, tal se verificaria mais, pois a emoção pode atropelar o pensamento e, por conseguinte, a necessidade de - na forma do possível - lograr escandi-lo.
        Como a maior parte dos personagens deste episódio já se foram, posso permitir-me certas liberdades. A época do episódio já vai encontrar nosso herói  mais avançado em anos, mas ainda vigoroso.
        Não mais estamos nas estreituras dos tempos da Antonio Vieira, ou até mesmo da progressão no apartamento do Chopin,  onde vi grandes figuras da República serem recebidas com a simpatia de Adolpho e Lucy, mas também o respaldo da revista que sucedera ao Cruzeiro como o semanário de maior circulação nacional.
         O casal Bloch adquirira um senhor espaço na Granja Comary, e aí construira em madeira de lei - a mor parte em Gonçalo Alves - mansão que, nas vizinhanças de Teresópolis e ao sopé do Dedo de Deus, estivesse preparada para receber - e se fosse o caso abrigar - os comensais e convidados que desejassem, ou passar fim de semana, ou mesmo um dia, cercados pelo gosto de Lucy, e as atenções do anfitrião Adolpho, que já tinha a cuidar de muitas revistas, com o carro-chefe da Manchete à frente, seguido por diversas outras como Fatos e Fotos, Enciclopédia Bloch, Jóia,  a breve Manchete Esportiva (como explicaria Adolpho, como ter revista que só vende quando o Flamengo ganha, e fica nas bancas, quando ele perde?), e um vastíssimo (em geral rentável) etcetera.        
          Pois, para não alongar em demasia esta, num certo fim de semana, depois de negociação prolongada, Adolpho nos convidou para a mansão de Teresópolis, quando se daria um almoço para a família Ricci [1]. Bloch e talvez alguém da revista pensara em convidar o velho Ricci porque ele tinha duas belíssimas filhas. Esse tipo de ocasião nada tinha de inusitado, sendo bastante usual que Adolpho e Lucy tivessem à mesa jovens cuja formosura e elegância poderiam embelezar as páginas de Manchete.
          A despeito da resistência inicial do chefe da família, tudo parecia haver entrado nos eixos, com data e horário do almoço dominical acordados, quando alguém da grei Ricci cochichou à turma da Manchete que tudo bem, o velho comparece com as filhas, mas é bom que não se esqueçam que ele não admite palavrões.
           Imaginem-se os rodeios e os temores de quem teria de transmitir a mensagem ao dono da casa (aquele que achava estar fazendo uma piada, quando dizia, ao fim da refeição, para o mordomo:  l'addition, s'il vous plaît![2])
            Como alguém que atravessara as estepes do Império Russo para dar no Brasil, há de compreender-se que Adolpho via sempre com a ironia do self-made man[3], todos os manjares, bebidas e demais frescuras aí servidas. Daí a piada - que acreditava muito apropriada - de pedir a conta da lauta refeição por ele bancada...  É bem verdade que ele pensava pôr todos à vontade com o sorriso irônico com que vestia a sua frase ritual.
            No entanto, para aquele almoço do Velho Ricci com a mulher e as filhas, depois de muitas hesitações, a turma do apoio teve de transmitir a Adolpho o que seria para ele a parte intragável de tornar-se anfitrião de tal evento.
            Não sei quem passou o guizo no gato, mas pela cara de meu tio logo vi que a mensagem fora devidamente transmitida...
            Havia, portanto, compreensível expectativa e até certa ansiedade como a coisa iria se desenvolver. A dúvida inicial, bastante fundada, era se Adolpho aguentaria a provação. Caso negativo, qual seria a reação do principal convidado...
            Foi, por conseguinte, uma surpresa para os partícipes que o tio lograsse se conter. Uma que outra vez, sentiu-se que a coisa estava por um triz, mas Adolpho fez das tripas coração, e não disse aquelas palavras. As moças, na verdade, eram bonitas, belas até, e não só pela mocidade. Mas será que Adolpho aguentaria esse transe?
               E não é que ao fim e ao cabo, Adolpho Bloch passou com todas as cores a prova do velho Ricci?
              Disse, é verdade, uns bons e sonoros palavrões quando o velho, a mãe e as filhas já tinham partido.
              Mas ao perscrutá-lo, intrigado que estava, me dei conta de que ele, concluído o  teste, ficara satisfeito e até um pouco orgulhoso de ter vencido o desafio...
              E então entendi. A condição fora, decerto, salgada, mas no final de tudo ele lograra a façanha de tê-las à mesa. De certa maneira, mais uma vez  vencera...




[1] nome de fantasia.
[2] A conta, por favor!
[3] Homem que se fez por si próprio.

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