quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Significado da Reforma da Saúde Americana (II)

Segundo a estimativa do CBO 32 milhões de americanos passarão a ter cobertura do seguro de saúde através da expansão do Medicaid, de subsídios e das câmaras de seguro. Ao contrário das críticas de conservadores, a reforma diminuirá as limitações na assistência médica, na medida em que milhões de indivíduos até hoje sem seguro ganharão acesso a planos de saúde.
Por outro lado, ao regulamentar a indústria do seguro de saúde, com normas que proibem a discriminação na base de condições preexistentes, a lei implementa uma extensão da autoridade federal há muito tempo devida.
Não obstante, persistem ainda vastas áreas não cobertas entre os problemas do tratamento médico e as soluções para a sua ampliação, ensejadas pela nova legislação. Mesmo na hipótese da plena implementação das disposições da nova Lei, cerca de 23 milhões de pessoas ainda não terão cobertura médica em 2019.
Conquanto não seja possível saber-se exatamente quantas pessoas não disporão dessa assistência sanitária, os especialistas apontam para três grupos: imigrantes não-documentados; americanos que julgarão demasiado caro o seguro médico, mesmo com os subsídios, estando impedidos de valer-se do Medicaid por estarem acima dos níveis prescritos de pobreza; e indivíduos saudáveis que, embora possam pagar o seguro, se julgam em condições de se dar ao luxo de pagar as taxas de penalidade. De qualquer forma, os Estados Unidos, ao contrário da grande maioria das nações democráticas, permanecerá com larga parcela da população ainda não-assegurada.
Tampouco a nova legislação proporciona salvaguardas adequadas contra o crescimento abusivo dos custos médicos. Nesse quadro, muitos americanos cobertos pelo plano de saúde terão de enfrentar contas vultosas e crescentes.
Como demonstrado por uma primeira controvérsia sobre requisitos para a cobertura de crianças que sofram de males preexistentes, os asseguradores – com a margem de lucro ameaçada – irão provavelmente tentar valer-se de todos os meios para descumprir as novas exigências legais.De acordo com a nova lei, a Secretária da Saúde americana[1] deverá elaborar as milhares de páginas do regulamento indispensável para a sua aplicação. Esse trabalho do ministério da saúde estará sujeito ao exame acurado do Congresso e às gestões dos lobistas da indústria de assistência sanitária.
A par disso, o governo federal terá de incrementar os seus esforços para levar ao conhecimento da parte da população contemplada, não só a vantagem adquirida, mas também como poderá valer-se do direito de ter seguro de saúde.
Há muitas dúvidas quanto ao sucesso dos estados em estabelecer e operar câmaras de seguro de saúde para a parte da população atualmente não-assegurada. As dúvidas igualmente se estendem quanto ao número de estados que se disponham a fazê-lo autonomamente. As câmaras estaduais de seguro de saúde foram imposição de senadores democratas conservadores, que não aceitaram a opção pública para tal tarefa. Salta aos olhos que uma única agência federal para o plano de saúde disporia de muito mais força e credibilidade, não só para obter melhores condições da indústria de assistência sanitária, senão para garantir maior coordenação e unidade na implementação dos respectivos serviços. Terá sido sem dúvida essa característica que levou muitos senadores a preferirem as câmaras estaduais. O maior perdedor nesse campo foi obviamente o beneficiário potencial.
Se bem que parcialmente derivada dessa modificação da reforma – que decerto não a fortaleceu – a falta de controles confiáveis e abrangentes a todo o sistema para supervisionar a tendência incremental dos custos médicos depende de outros fatores. Sem embargo, esta deficiência da lei constitui um dos seus defeitos fundamentais. A legislação tem por escopo economizar cerca de quatrocentos bilhões de dólares nos gastos projetados do Medicare para a próxima década. Se o retrospecto do Medicare na contenção de despesas não é mau, semelha bastante previsível a resistência da indústria da assistência – v.g., os hospitais – eis que a sua concordância implicará em menores lucros para os anos vindouros.
Consoante os especialistas, a nova lei contém uma cláusula importante para restringir os custos – i.e., a chamada taxa Cadilac, aplicada a dispendiosos planos de seguro. Através da taxação desses planos privados de alto custo, os asseguradores e os patrões cortarão benefícios demasiado ‘generosos’, e os americanos tenderão – assim se espera – a recorrer menos a serviços médicos de baixa qualidade. Contudo, a entrada em vigor dessa controversa medida só está prevista para 2018, e não há qualquer garantia de que o futuro Congresso (e Presidente) estejam dispostos a implementá-la.
Quanto à contenção de despesas, a Secretária da Saúde e dos Serviços Humanos, Kathleen Sebelius disse que a lei inclui todas as ideias trazidas por economistas no campo da saúde. Posto que não se discuta a veracidade da assertiva, ela mostra uma característica americana que decerto não se limita ao domínio sanitário: os pesquisadores neste setor não dão muita atenção à experiência internacional.
A nova Lei se baseia precipuamente para tanto na utilização de registros médicos eletrônicos, ou no pagamento dos provedores médicos na base da sua relativa ‘qualidade’. As demais nações altamente industrializadas – com despesas agregadas muito inferiores no segmento sanitário – atingem tal objetivo mediante a adoção de metas orçamentárias para os gastos com a saúde, e pela estrita regulamentação de o que governos e asseguradores devam pagar a hospitais, doutores e outros provedores do atendimento médico. Excluido o Medicare, a presente reforma não prevê nenhuma desse gênero.
A Administração Obama, por confrontar a enorme oposição – precipuamente da direita americana, i.e., o Partido Republicano e o movimento de extrema direita Tea Party[2] - a respeito de qualquer proposta de alargar a cobertura do Plano, optou por deixar para mais tarde o ônus político do controle dos custos. Entretanto, a experiência do estado de Massachusetts – que adotou a sua reforma da saúde em 2006 – mostra que a questão não pode ser eludida por muito tempo. Conquanto as autoridades de Massachusetts estejam discutindo opções de controle de custo, ainda não impuseram até agora limites para valer ao incremento crescente dos custos.

A Reação Republicana e Perspectivas.

Os republicanos – cujos representantes no Congresso, é bom que se repita, não deram um voto sequer nas votações definitivas dos projetos da Câmara de Representantes e do Senado, assim como na versão de conciliação das duas Casas, - ora realizam uma campanha para ‘reformar e repelir’ a lei. Vinte e um estados – vinte dos quais têm um procurador-geral republicano – estão processando a União federal para revogar a lei. O seu argumento básico: seria inconstitucional a cláusula que obriga os americanos a adquirir a apólice de seguro, ou pagar uma taxa à guisa de penalidade. Grandes autoridades em direito tributário concordam em que existam amplos precedentes legais para essa competência federal. Nesse sentido, tais processos tendem a ser vistos como parte da corrente reação Republicana para “desacreditar a reforma da Saúde”. Sem embargo, como esse litígio judiciário acabará chegando à Suprema Corte, os prognósticos carecem de ser reservados. Como se verificou no recente estudo do blog sobre ela, o seu colegiado pende para uma postura conservadora, eis que o voto de Minerva, em geral atribuído ao juiz associado Kennedy, tende mais para a direita do que para as teses progressistas dos quatro juízes liberais.
No entender dos articulistas, todavia, o desafio político para a reforma da saúde seria mais sério do que o judiciário. A nova lei não colheu o apoio da maioria dos americanos – como nós brasileiros também sabemos nem sempre as decisões majoritárias se fundam em razões válidas – e as próximas eleições legislativas intermediárias tenderão a produzir um Congresso mais pronunciadamente hostil à reforma. Se as atuais prévias se confirmarem – os comícios são na primeira semana de novembro – há forte possibilidade de que o G.O.P. recupere a maioria na Câmara de Representantes. Se os republicanos lograrem – o que me parece menos provável – votar e aprovar legislação revocatória da Reforma da Saúde, o Presidente Obama a vetaria. Pela Constituição americana, para derrubar um veto é necessário uma maioria de dois terços, o que torna esta hipótese altamente improvável.
A situação mudará de forma dramática se Barack Obama – cuja popularidade despencou para 43% de votos favoráveis – não conseguir a reeleição em 2012. Se esse desastre democrático for acompanhado de maiorias do G.O.P. nas duas Câmaras do Congresso, o destino da Reforma da Saúde estará então em maus lençóis.
Se a maior parte das normas da Reforma só passarão a vigorar a partir de 2014, o partido democrata, para reforçar o atrativo político da lei, inseriu algumas medidas de efeito imediato: desconto em remédios de prescrição médica para os beneficiários do Medicare; créditos fiscais no seguro de saúde para os pequenos empresários; a proibição às companhias de seguro de negar cobertura a crianças com males preexistentes; e o requisito de que os seguradores permitam aos pais manter seus filhos nos planos de saúde até a idade de vinte e seis anos. Sabemos que os republicanos são o partido dos ricos e das classes favorecidas, mas lhe será bastante difícil revogar disposições como as acima citadas, que deverão atrair o apoio popular.
Não obstante, as principais medidas adotadas pela Reforma – incluindo a expansão de Medicaid e subsídios federais para auxiliar os não-assegurados a participar do seguro – só deverão começar a ser aplicadas em 2014. Se o virtual prazo de carência de dez anos facilitou a aprovação da lei – com as previsões favoráveis em termos de custos do Bureau Orçamentário do Congresso (CBO), e a consolidação de uma maioria de democratas liberais e conservadores – nele está embutido um alto risco. Se Obama tornar-se como Jimmy Carter presidente de um só mandato, uma Administração republicana e o Congresso (no caso de também ser de maioria republicana, o que é possível, mas não é a regra) poderiam revogar ou substituir medidas políticas básicas, hoje voltadas para a ampliação da cobertura do seguro.
A estratégia republicana poderia visar as medidas menos populares da legislação, v.g., as obrigações impostas a indivíduos e empregadores, ou até mesmo os cortes na curva de crescimento das despesas de Medicare, que são cruciais para o financiamento da expansão futura da cobertura do seguro.
Dentre os desafios do curto prazo, na sua luta defensiva contra os esforços para derrubar a lei, os reformistas carecem de esclarecer melhor os benefícios da reforma para o público, o que não é tarefa fácil, dada a extraordinária quantidade de desinformação que tem sido difundida nos últimos dois anos. O conhecimento público de muitas das boas iniciativas da lei é por ora limitado. É questionável se as organizações que promoveram esse meritório trabalho de esclarecimento continuarão a dispor de recursos para continuá-lo no futuro mediato. Já as companhias de seguro médico e outros grupos que representam a indústria da assistência sanitária não encontrarão maior dificuldade financeira em prosseguir com as suas campanhas.
Em um prazo médio, tais desafios podem ser ainda mais pesados. Talvez o mais relevante seja a influência da reforma da saúde na sorte do partido democrata nas três eleições que se realizarão até 2014: duas legislativas e uma presidencial. Em consequência, não é um exagero afirmar que existe uma enorme incerteza acerca de como evoluirá (ou involuirá) o conglomerado de reformas na saúde aprovadas e sancionadas em 2010.


( Fonte: The New York Review of Books )

[1] Kathleen Sebelius.
[2] A denominação Tea Party (Festa do Chá) é, como se sabe, reminiscente das primeiras reações dos colonos da Nova Inglaterra contra as taxas consideradas abusivas, impostas pelo Parlam ento inglês. Análises e observações deste movimento hodierno indicam que aí se detém qualquer outra semelhança com os grupos precursores da independência americana. Pela postura ideológica, estão mais próximos da John Birch Society e outras associações do século XX da ultra-direita estadunidense.

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