Durante a corrente semana, o Supremo Tribunal Federal tomou outra decisão importante. Ela se insere dentro da linha de interpretação hiperliteral da Constituição, que já se fizera notar na presidência do Ministro Gilmar Mendes. Reporto-me à controversa sentença, aprovada por maioria de seus membros, de que os réus só deveriam ser recolhidos à prisão, quando esgotadas todas as possibilidades de defesa – isto é, a sua condenação pelas três instâncias regulamentares – ou quando a causa transitasse em julgado, por decurso de prazo.
Esta posição ultraliberal do Supremo, que assim crê ater-se ao que dispõe a Constituição de 1988, favorece aos réus que disponham de meios financeiros para contratar hábeis advogados, para dessarte assegurar-lhes a permanência em liberdade até que seja prolatada a condenação definitiva. Com a pluralidade de recursos que enseja a legislação em vigor – de que se augura a pronta substituição por códigos processuais mais afinados com a atualidade e suas demandas -, não se carece de exagerados poderes divinatórios para prever que tais réus sub judice disporão ainda de muito –quiçá demasiado - tempo em liberdade. Da oportunidade e da elementar justiça que caberia, tal jurisprudência do Supremo tem despertado estranhável assombro e até revolta, perante a manifesta latitude de permanecerem em liberdade indivíduos que em qualquer outro país civilizado estariam já servindo a pena que terão feito por merecer.
Escusado dizer que o caso clássico que vem à mente quando se menciona essa mui discutida postura do Supremo Tribunal Federal é o do assassino confesso, o jornalista Antonio Pimenta Neves. Sobre a sua permanência em liberdade, tão sobejamente do domínio público, semelha escusado delongar-me.
Chegou-nos nesta semana outra decisão do colegiado do STF que deverá ainda provocar muita perplexidade e incompreensão na sociedade civil. Aludo à sentença da Corte Suprema quanto à inconstitucionalidade de artigo da nova Lei de Drogas. A disposição inquinada de inconstitucional proibia expressamente os condenados por tráfico de entorpecentes de terem direito à conversão da pena privativa de liberdade em pena alternativa.
No julgamento de um habeas corpus, pedido pela Defensoria Pública, em nome de um condenado a um ano e oito meses de reclusão, após ter sido flagrado com 13,4 gramas de cocaína, o relator do processo, o Ministro Carlos Ayres Britto, no seu voto afirmara: “O princípio da individualização significa o reconhecimento de que cada ser humano é um microcosmo.” Por seis votos a quatro o Supremo acolheu a tese de Ayres Britto, no sentido de que o dispositivo da lei que veda a conversão da punição em casos de tráfico de drogas é incompatível com artigo da Constituição que garante a individualização das penas.
Os quatro ministros que votaram contra o pedido de habeas corpus reconheceram que o Congresso Nacional tem o poder de impor as sanções penais que julgar necessárias para enfrentar problemas do País, como o tráfico de drogas, desde que sejam respeitados os limites legais e constitucionais ( a Constituição, no seu entender, veda só penas de morte, perpétuas, de banimento e cruéis).
Estima-se que a decisão em tela, tomada pela maioria mínima pelo Supremo, libertará milhares de traficantes qualificados como pequenos.
Importa decerto distinguir entre usuário e traficante, a despeito de que essa divisão possa ser um traço na areia, muita vez de difícil determinação. A opinião pública bem sabe o que costuma significar a conversão de pena. O traficante, seja por alegado bom comportamento, seja por outra tecnicalidade, reivindica e obtém do juiz de execuções penais a ambicionada permissão para trabalhar fora, de dia, com a condição de voltar à noite. Só que, em confrangedora maioria dos casos, os ‘recuperados’ traficantes saem da prisão para recolher-se à ... clandestinidade. E tal decerto não se limita ao tráfico de drogas, como recentes decisões, no mínimo questionáveis, permitiram que pessoas irrecuperáveis para o convívio social a ele voltassem com as consequências deploráveis, comprovadas em mais de um caso.
A tal respeito, a decisão do Supremo quanto à liberal progressão da pena – a possibilidade de o condenado a longos periodos de reclusão possa sair com surpreendente desenvoltura do cárcere – se para tanto dispuser de um bom causídico – vem provocando muita celeuma na sociedade que, compreensivelmente não logra entender por que indivíduos condenados por crimes hediondos a trinta e mais anos de reclusão, possam voltar ao seio desta sociedade, em espaços de tempo de muito inferiores.
Diante do descalabro das libertações antecipadas – e o inegável perigo que colocam para a gente do bem, que constituem da sociedade a esmagadora maioria – o Senado aprovou projeto que altera o Código Penal para elevar de dois terços (cerca de 60%) para quatro quintos (80%) o tempo exigido de permanência na prisão, para condenados por crime hediondo, prática de tortura, tráfico de drogas e terrorismo estarem em condições de gozar do livramento condicional.
Importa, em verdade, pôr-se um termo à excessiva flexibilidade na liberação de facínoras e de outros criminosos de alta periculosidade. No momento, a sociedade civil convive com virtuais pantomimas como os julgamentos que levam a longos períodos de reclusão dos eventuais condenados pelos crimes acima assinalados. Confirmada a pena, divulgada pela imprensa a sua extensão, poderá a mesma sociedade sentir-se mais segura, se a tal longa detenção será transformada em prazo relativamente curto na liberal licença concedida pelo instituto da progressão de pena ?
Sabemos bem o quão importante é o meio termo. Os excessos, tanto para um lado, quanto para outro, devem ser evitados. Demasiado permissivismo só é interpretado como frouxidão pelos fora da lei, com as consequências de novo impostas a uma sociedade que, malgrado as contínuas promessas, continua a viver em ambientes inseguros, onde os morigerados são passíveis das penas informais, cuja crueldade por vezes não chega aos altos ouvidos de Suas Excelências.
Os piores criminosos e seus facundos representantes vestem alvos mantos de cordeiro quando na aula dos tribunais. Não é assim que nós, os que vivem na planície, os entrevemos, quando em algum logradouro antes sereno eles investem, agora mais desenvoltos e temíveis, eis que livres da cândida indumentária com que se mostram em sua hora e vez de prestarem contas aos representantes da Sociedade.
( Fonte: O Estado de S. Paulo )
sábado, 4 de setembro de 2010
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3 comentários:
Lido o texto, pergunto-me: o Brasil tem leis? Como interpretá-la hiperliteralmente? (ou hiperliberalmente para o blogueiro – será que ele quer dizer hiper neoliberalmente?). Sem discordar da revolta sobre os efeitos, há que se por a culpa sobre quem é responsável, e levar o debate aonde ele poder ser útil, fugindo da esparrela da ideologia. Respondendo: o Brasil tem lei. Pode ser ruim, detalhista demais, e mesmo injusta, mas é preciso cumpri-la. Interpretações de circunstância são tão perigosas quanto uma "democracia judicial", que supostamente que ouve a "voz das ruas". É a receita da insegurança e do totalitarismo - coerentemente, os partidários dessa visão não têm escrúpulos em patrulhar o Supremo, caminho mais curto para suas metas do que buscar uma mudança da lei. No fim, é mais uma forma de jeitinho.
O simplismo será sempre uma senda enganosa em qualquer atividade humana. Também o resultado não há de diferir no caso em tela, se se pensa que bastaria a ele recorrermos para solucionarmos os problemas colocados na aplicação da lei. Primo, há que distinguir qual o objetivo a ser atingido na interpretação da lei. Secondo, há que determinar-se que instrumento legal desejamos interpretar. Um princípio que não deve jamais ser esquecido - e que é básico no estudo do direito e, por isso, se insere dentro da análise da parte introdutória da ciência jurídica - reza da seguinte forma: in claris not fit interpretatio (em tradução livre, se o texto é claro, a interpretação é dispensável).Esse suposto princípio é enunciado para ser teoricamente invalidado. Em outras palavras, em qualquer campo do direito,a interpretaçãp é indispensável.Raciocinando por absurdo, na era tecnológica das máquinas, poderíamos deixar a árdua,penosa tarefa do julgar a um computador ? Nem se provido com todos os programas, jamais poderíamos deixar essa tarefa à uma máquina. O que, de resto, pode ser facilmente comprovado se for intentado, à guisa de mock exam, como um exercício demonstrativo de tal impossibilidade. Outro elemento que deve ser tratado com cuidado é o termo 'lei'. Outra vez o simplismo pode pregar-nos uma armadilha. No caso em tela, versamos juizo do Supremo Tribunal Federal, a nossa Corte Constitucional, que examina as leis ordinárias para verificar se são, no todo ou em parte, admissíveis à luz da Carta Magna. Neste caso, cada ministro coteja o enunciado da lei ordinária e verifica se se adequa, no seu entender, com o que dispõe a Lei Magna. Por isso o automatismo judicial é uma falácia, pois os juízes sempre lerão a Constituição informados dos princípios que se deseja implementar, à luz das ideias da sociedade civil em que vivem. No caso da Constituição Cidadã, se estamos bastantes próximos ainda do espírito que a presidiu, nem por isso a ênfase tenderá a ser a mesma nas miríades de aplicações que confrontam o magistrado. Então, o que dizer da Constituição Americana, que no seu famoso laconismo dos próprios artigos, e das emendas aditivas, ainda permanece em vigor ? Acaso ousaremos dizer que basta aplicá-la,preocupando-nos apenas com o significado que lhes teria sido dado pelos pais da Constituição Americana ? Não direi que inexistam juizes associados na Supreme Court de hoje que procurem seguir a linha literalista. O nome de Clarence Thomas nos vem prontamente à memória. Sem embargo, afigura-se forçoso reconhecer que o indicado pelo Presidente Bush senior é um mediocre sucessor do grande juiz a quem sucedeu, o também afro-americano Thurgood Marshall. Thomas pode pensar que aplica a lei como o desejavam os seus redatores setecentistas, mas as suas posições transmitem apenas o que há de mais conservador e em certos casos até mesmo reacionário na formação das sentenças da Corte americana. No seu comentário, Mauro aponta para inúmeras aporias que tratam de problemas reais da legislação brasileira e de sua aplicação. Já em blog anterior, a que me dedicara ao legado das Ordenações Filipinas, se busca mostrar esse caráter discursivo que muita vez pensa substituir-se à realidade. Em muitos aspectos, ainda não a transcendemos, e por decorrência dessa causalidade perversa, subsistem na atualidade muitas das dificuldades a que alude com oportunidade o comentarista.
A justiça deveria buscar a coerência e a previsibilidade - o que pode ser chamado de simplismo sem desmerecimento. Parece-me que o blogueiro se contradiz, pois por definição seria impossível uma interpretação hiperliteral. (O hiperliberal, ele ainda não explicou.) O mero aludir a um suposto extremo de literalismo já mostra a possibilidade de decisões diferentes conforme circunstâncias não-fundamentais - não é o que se espera da justiça que forma o alicerce da democracia. As circunstâncias etéreas demais para serem aprisionadas pela letra da lei normalmente inspiram justiça apenas para os poucos que as sonharam. (I brace myself for the blow).
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