A situação do jogador brasileiro de futebol e, em especial, o verdadeiro tráfico humano de que é a mercadoria, constitui um desses escândalos que, estranhamente, subsistem, vistos de longe e de perto, como se fora algo inelutável.
O talento do brasileiro para o futebol, e o inesgotável manancial em que se transformou, sob pretensa liberdade comercial, esse traço distintivo de nossos atletas, tornou-se objeto de um mercado em que muitos ganham. O nominal beneficiário se descobre transferido a terras e países para ele desconhecidos e diante dos quais a sua reação e eventual adaptação se afiguram imprevisíveis.
Não faltará muito para que, na qualidade de semovente, o futebolista brasileiro passe a ser um ítem de nossa pauta de exportações, e venha a constituir bem negociável e da competência da Organização Mundial do Comércio.
Ao contrário do tráfico de mulheres e de dançarinas, que representa outra chaga de que padecem muitas de nossas conacionais, este comércio é realizado às claras, com a chancela de órgãos oficiais e esportivos, como se fora uma das muitas liberdades que passaram a ornar, nas últimas décadas, a chamada globalização do intercâmbio.
Até o dito ranço colonialista que reveste as transações em apreço, não reflete a sua real condição. As antigas colônias tinham relação de dependência com a metrópole, que era um país determinado. Nesses tempos obscuros, muito colono aspirava a transferência para a sede do império, dada a possibilidade de melhoria de vida. Não é o que ocorre agora. Os nossos potenciais jogadores são transladados para outros países, cujas economias muita vez dispõem de menos recursos do que a nossa. Nesse caso, parece difícil classificar como colonial a venda de nossos jovens para países como a Ucrainia, a Turquia, os Emirados Árabes e similares, que estão colocados bem abaixo na escala mundial dos PIBs.
Para as nossas autoridades, governamentais e esportivas, não terá sido acaso motivo de reflexão a desagradável impressão de que a Fifa foi forçada a criar regras para limitar o número de jogadores de origem brasileira inseridos em seleções de outros países, sob a diáfana cobertura de uma naturalização oportunista ? E, a despeito de tais providências, os certamens da Copa do Mundo, cuja importância para nós é transcendental, continuam a dar aos espectadores brasileiros a insólita experiência de ver tantos antigos nacionais jogarem sob as cores mais disparatadas ? E o que é ainda pior, o aparente orgulho que dessa circunstância semelham tirar os nossos locutores, como se participássemos vicariamente nos gols de mais de uma seleção ?
Essa operação comercial abrangente de que são objeto os jovens é vista como se fosse a coisa mais normal do mundo. Com efeito, são correntes os ‘contratos de gaveta’ em que adolescentes de quinze anos e até menos têm comprometido o seu futuro (ao completar a maioridade de dezoito anos) por empresários e clubes.
Esta normalização do absurdo vai a um ponto tal, que, quando um craque de seleção, como Neymar, não é transferido para algum time inglês, preferindo continuar defendendo o Santos, no Brasil, o fato é cercado de espanto, quase vizinho da desaprovação !
Mesmo sem entrarmos no escândalo que constitui o tráfico em si, a situação em que os clubes do Brasil, pacientes de uma eterna penúria, são os primeiros a se desvencilharem de suas jóias mais preciosas, tem várias outras consequências, igualmente nocivas.
Os campeonatos brasileiros são organizados em primeira, segunda e terceira divisões. Na verdade, o da chamada série A deveria, em realidade, ser rebaixado para B, e assim por diante, pois na hora de fazer a convocação para o scratch nacional – se o técnico designado deseja montar um time com a nossa força máxima[1] - a esmagadora maioria dos escolhidos estará jogando na Europa.
Essa peculiaridade de que a seleção brasileira seja formada na sua maior parte pelo que se denomina de ‘estrangeiros’, às vezes é motivo de preocupação para tais técnicos quanto à motivação e ao empenho de alguns atletas na defesa da malha auriverde.
Será nesse ponto que pela cobiça de muitos – em geral os intermediários -, o povo brasileiro se vê privado de seus melhores jogadores, a que só logrará ver jogar em partidas de seleção. Na velha e sovada imagem – em casa de ferreiro, espeto de pau – temos de contentar-nos com o que resta. Nada contra tais jogadores, mas se somos tão talentosos a ponto de prover as equipes europeias, não terá acaso passado pela mente tanto de nossas autoridades, quanto dos dirigentes clubistícos, que é mais do que tempo de dar um basta em tal estado de coisas ?
( a continuar )
[1] O que não é sempre a hipótese, como se verificou na última Copa.
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
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