terça-feira, 9 de agosto de 2016

O ouro de Rafaela Silva

                            

        A sensação  é  a do sentir-se bem. Rafaela Silva não é só gente como nós, brasileiros todos. Faz bem, não é verdade, que de repente, por um milagre da Olimpíada, possamos ter, no lugar em que nós, brasileiros entronizamos a televisão, essa quase menina-moça que tal proeza precisou fazer para despertar-nos a atenção que merece.
        A luta, a ânsia, a dúvida, e depois aquela súbita surpresa, que nos acomete, como gostosa, inebriante emoção, pois a nós imbui um pouquinho da catarse que a nossa heroína - que, de repente, é toda sentimento e realização - de graça nos transmite a todos que primeiro a observamos, depois a olhamos transidos, e logo em seguida partilhamos com o povo brasileiro, onde é que se esconda, a imensa, desmesurada alegria que ela, pela própria conquista, nos vai transmitindo, até o momento em que a dúvida vira certeza, e aquele famoso complexo de vira-lata, de que nos fala Nelson Rodrigues, desaparece.
         Será para sempre? Não. Mas o minuto, a hora, a noite e o dia desse vago amanhã, são de todos nós, mas, sobretudo, de Rafaela.
          Não é gostoso ver nossa compatriota ganhar a primeira medalha de ouro do Brasil na Olimpíada? Essas verdadeiras jóias do esporte, para cada um e sobretudo para quem vem de onde veio Rafaela, esses mimos não cáem do céu.
           Nos seus olhos enevoados pela emoção, quando contempla a bandeira do Brasil subir lá no alto, acima de todos os outros pavilhões, nós pudemos até pensar que compartilhamos toda a carga da realização dessa nova deusa Rafaela.
           Não é que a gente da mídia sabe agora que ela vem da Cidade de Deus, uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro?
           Não é verdade, porém, que foi pela sorte do acaso, que ela está curtindo este momento. Pois o caminho trilhado, mesmo para os seus 24 anos, foi longo e sobretudo árduo. Teve de passar pelo dissabor do tropeço na Olimpíada de Londres, quando algum anônimo árbitro apressou-se em descobrir arcana transgressão à regra para barrar o avanço daquela desconhecida concorrente de Terceiro Mundo.
            Nascer nas favelas do Rio de Janeiro, não é destino nem purgação, mais parecendo perverso percalço de sorte madrasta, que aos fracos abate e aos fortes, também! Viver nesse submundo aonde a sociedade faz refugiar-se o crime e a droga - não necessariamente nessa ordem - se haverá aqueles e aquelas que, quase por descuido do destempero e da enraizada perversidade logrem vencer, não me parece seja motivo para festejar - à maneira dos arautos do sucesso - por mais que individualmente nos emocione a incrível vitória alheia.
             É o chamado efeito do sentir-se bem!
             Por isso, por agora, singularizemos o triunfo - pois, de triunfo e não simples vitória aqui se trata.
              Ninguém logra tal resultado, ainda mais sobre o peso de enorme handicap, se já não mostre condições de ultrasuperar-se.
              É o que me permitiria convidá-los a - enquanto perscrutam o riso, alegre e realizado, de Rafaela - de não esquecer que esta compatriota nossa, mais do que ajudar a nos sentirmos bem, a destravar a garganta para comemorar enfim uma vitória verdadeira - não é só isso.
              Na verdade, Rafaela é o grito que não vem do deserto, mas de favelas em que sobrepaira a lei da selva, o tráfico, a droga, e uma P.M. que por muitos é vista como conivente, mais com a repressão do que com a Lei - será justamente pela consciência, inda que confusa e por vezes alienada que o fato presente mais do que emocionar-nos, comove ?!
              Será que algum dia vamos abandonar este apartheid tão luso-brasileiro e tão congenitamente hipócrita, e trazer, empurrados pela maravilha do fato, todas essas Rafaelas para um porvir da oportunidade digna, para não submeter a imensa maioria da gente brasileira à existência que lhes é hoje reservada, com muita servidão, na pobreza da favela - que pode parecer até romântica nas apresentações virtuais das mensagens da mídia - mas é certeza de vida dura, na incerta companhia do tráfico, da milícia e dos P.Ms.
               Em outras palavras, Rafaela Silva não deve ser simples catarse de  sociedade que se sente culpada. Se ela, pelo próprio esforço e valor individual, transcende realidade ainda longínqua, de que é signo decerto promissor, o exemplo da lutadora Rafaela deveria empurrar-nos a construir sociedade mais honesta e partilhada.
                Esse trabalho longo e aturado precisa começar sem demora. Vamos deixar Pindorama para trás. Só no Brasil que ainda se pensa que a terra mágica - inventada pelos italianos - da Cuccagna ainda exista. Pasárgada de Manuel Bandeira é outra ilusão. Mas são enganos poéticos, muito menos cruéis do que o nosso dia-a-dia!


(Fontes de agradecido reconhecimento: Nelson Rodrigues, Luís de Camões, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, lembranças da Itália )

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