A
sensação é a do sentir-se bem. Rafaela Silva não é só gente como nós, brasileiros
todos. Faz bem, não é verdade, que de
repente, por um milagre da Olimpíada, possamos ter, no lugar em que nós,
brasileiros entronizamos a televisão, essa quase menina-moça que tal proeza
precisou fazer para despertar-nos a atenção que merece.
A luta, a ânsia, a dúvida, e depois
aquela súbita surpresa, que nos acomete, como gostosa, inebriante emoção, pois a
nós imbui um pouquinho da catarse que a nossa heroína - que, de repente, é toda
sentimento e realização - de graça nos transmite a todos que primeiro a
observamos, depois a olhamos transidos, e logo em seguida partilhamos com o
povo brasileiro, onde é que se esconda, a imensa, desmesurada alegria que ela,
pela própria conquista, nos vai transmitindo, até o momento em que a dúvida
vira certeza, e aquele famoso complexo de vira-lata,
de que nos fala Nelson Rodrigues,
desaparece.
Será para sempre? Não. Mas o minuto, a
hora, a noite e o dia desse vago amanhã, são de todos nós, mas, sobretudo, de
Rafaela.
Não é gostoso ver nossa compatriota ganhar
a primeira medalha de ouro do Brasil na Olimpíada? Essas verdadeiras jóias do
esporte, para cada um e sobretudo para quem vem de onde veio Rafaela, esses mimos
não cáem do céu.
Nos seus olhos enevoados pela
emoção, quando contempla a bandeira do Brasil subir lá no alto, acima de todos
os outros pavilhões, nós pudemos até pensar que compartilhamos toda a carga da
realização dessa nova deusa Rafaela.
Não é que a gente da mídia sabe agora que ela vem da Cidade
de Deus, uma das favelas mais violentas do Rio de Janeiro?
Não é verdade, porém, que foi pela
sorte do acaso, que ela está curtindo este momento. Pois o caminho trilhado,
mesmo para os seus 24 anos, foi longo e sobretudo árduo. Teve de passar pelo
dissabor do tropeço na Olimpíada de Londres, quando algum anônimo árbitro
apressou-se em descobrir arcana transgressão à regra para barrar o avanço
daquela desconhecida concorrente de Terceiro Mundo.
Nascer nas favelas do Rio de
Janeiro, não é destino nem purgação, mais parecendo perverso percalço de sorte
madrasta, que aos fracos abate e aos fortes, também! Viver nesse submundo aonde
a sociedade faz refugiar-se o crime e a droga - não necessariamente nessa ordem
- se haverá aqueles e aquelas que, quase por descuido do destempero e da
enraizada perversidade logrem vencer, não me parece seja motivo para festejar -
à maneira dos arautos do sucesso - por mais que individualmente nos emocione a
incrível vitória alheia.
É o chamado efeito do sentir-se bem!
Por isso, por agora,
singularizemos o triunfo - pois, de triunfo e não simples vitória aqui se
trata.
Ninguém logra tal resultado,
ainda mais sobre o peso de enorme handicap,
se já não mostre condições de ultrasuperar-se.
É o que me permitiria convidá-los
a - enquanto perscrutam o riso, alegre e realizado, de Rafaela - de não
esquecer que esta compatriota nossa, mais do que ajudar a nos sentirmos bem, a
destravar a garganta para comemorar enfim uma vitória verdadeira - não é só
isso.
Na verdade, Rafaela é o grito que
não vem do deserto, mas de favelas em que sobrepaira a lei da selva, o tráfico,
a droga, e uma P.M. que por muitos é vista como conivente, mais com a repressão
do que com a Lei - será justamente pela consciência, inda que confusa e por
vezes alienada que o fato presente mais do que emocionar-nos, comove ?!
Será que algum dia vamos abandonar este
apartheid tão luso-brasileiro e tão
congenitamente hipócrita, e trazer, empurrados pela maravilha do fato, todas
essas Rafaelas para um porvir da oportunidade digna, para não submeter a imensa
maioria da gente brasileira à existência que lhes é hoje reservada, com muita
servidão, na pobreza da favela - que pode parecer até romântica nas
apresentações virtuais das mensagens da mídia - mas é certeza de vida dura, na incerta
companhia do tráfico, da milícia e dos P.Ms.
Em outras palavras, Rafaela
Silva não deve ser simples catarse de sociedade
que se sente culpada. Se ela, pelo próprio esforço e valor individual,
transcende realidade ainda longínqua, de
que é signo decerto promissor, o exemplo da lutadora Rafaela deveria empurrar-nos
a construir sociedade mais honesta e partilhada.
Esse trabalho longo e aturado
precisa começar sem demora. Vamos deixar Pindorama
para trás. Só no Brasil que ainda se pensa que a terra mágica - inventada pelos
italianos - da Cuccagna ainda exista.
Pasárgada de Manuel Bandeira é outra ilusão. Mas são enganos poéticos, muito
menos cruéis do que o nosso dia-a-dia!
(Fontes de agradecido reconhecimento: Nelson
Rodrigues, Luís de Camões, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade,
lembranças da Itália )
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