O que fazer das alianças de Recip Erdogan e Vladimir
Putin? Há vários esqueletos ressoando em velhas sepulturas. Moscou e Istambul
(depois, Âncara) contam em séculos a sua histórica confrontação. Dominando os
estreitos, a Sublime Porta fechava a
saída das esquadras do Tzar para os mares quentes do Mediterrâneo e
adjacências.
Daí a confrontação entre Ocidente e
Oriente, na guerra da Criméia com o Império russo de um lado, e o Ocidente[1] e
o Império otomano de outro. Daí, a aliança do Homem Doente da Europa (e de Istambul) com os Impérios centrais[2] na
Grande Guerra, contra a aliança de Londres-Paris e Moscou. Nesse conflito, a
investida dos Dardanelos e o seu fracasso levaria à queda do ainda jovem Winston Churchill, que a apadrinhara
como Lord do Almirantado[3].
Virando a página do livro da História,
o novo governo em Âncara persistiria na sua aliança com o Ocidente, contra o
velho Kremlin. Daí, a participação da
Turquia também na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A contraposição entre Âncara e Moscou se
acirraria com o incidente em que fora abatida há oito meses atrás na fronteira
entre Turquia e Síria aeronave militar russa, com a morte do piloto russo.
Com
a drástica mutação do regime turco de Recip Tayyip Erdogan após o alegado putsch militar - de suposta inspiração
do clérigo Fettullah Gulan - e feita
pelo homem forte da Turquia a brutal instrumentalização da reação
castrense, não tardou que Erdogan
tratasse de "normalizar" as relações com Moscou.
Da noite para o dia o súbito
enrijecimento do regime turco, com onda de prisões e de expurgos (nas força
armadas, no governo e no magistério), fez com que Erdogan escrevesse para o colega
Vladimir V. Putin, com quem redescobria a comunidade de idéias e interesses.
Fê-lo cansado de esperar que se reabrisse a
porta de Bruxelas - Erdogan esperaria em
Canossa pelos sinais favoráveis da Comunidade Européia, o que, por série de
circunstâncias, não se consumaria.
Malgrado a sua condição de membro da
Aliança do Atlântico do Norte, que a põe
em outro campo no que concerne à sua vizinha Rússia, a súbita alteração da
atmosfera política - com a crescente rejeição de Bruxelas ao endurecimento à
direita do regime turco - de alguma forma Erdogan tem uma espécie de estalo de Vieira[4] na
estrada de Damasco que o leva a escrever para gospodin Putin, ao subito dar-se conta de sua proximidade
ideológica com o vizinho russo.
Restabelecido o autoritarismo de
Erdogan na Turquia semelha mais fácil entender - não obstante as contradições
nos pactos subscritos anteriormente - a conveniência da aliança com outro
autocrata na Região, v.g. Vladimir Putin.
A este último, redescobertos os traços comuns - o caráter autoritário do
regime e as acusações de corrupção[5] estão
expostos na obra de referência - convêm ter igualmente presentes as imputações
contra o homem forte da Turquia.
A velha estória da reversão de
alianças poderá repetir-se com a
metamorfose de Erdogan. Como anuncia o correspondente do jornal Estado de S. Paulo, Andrei Netto, "membro
da coalizão ocidental na Síria, liderada pelos EUA, a Turquia anunciou (a onze
do corrente) que propôs à Rússia a realização de uma ofensiva militar conjunta
contra o Estado Islâmico. A iniciativa foi revelada pelo ministro das Relações
Exteriores, Mevlut Cavusoglu, dois dias
após o encontro entre os presidentes Recep
Tayyip Erdogan e Vladimir Putin,
em São Petersburgo."
A proposta em tela está sendo
discutida entre Moscou e Âncara, e pode encerrar o antagonismo entre os dois
países acerca do regime de Bassar al-Assad. Por uma série de
circunstâncias, Erdogan vinha combatendo
o regime sírio.
Dessarte, se Moscou e Âncara se puserem de
acordo, então a Turquia - que hoje integra a coalizão liderada pelos Estados
Unidos - mudará de lado? Dentro do esquema atual, Ãncara fornece apoio
logístico - inclusive em bases aéreas próximas da fronteira norte da Turquia
- às esquadrilhas americanas de
bombardeios e caças atuantes no combate ao Exército Islâmico.
Como ficaria o acordo de Âncara
com a OTAN que não data de ontem?... Essa súbita mudança do homem forte da
Turquia será para valer? Implica em sair de aliança de muitos anos, fundada em
contraposições ideológicas, e jogaria isto para o ar, sob a base de nova
proximidade ideológica com o poder moscovita ?
O despacho do correspondente
Andrei Netto relata que segundo o Ministro Mevlut Cavusoglu, das Relações
Exteriores, uma delegação turca de três representantes das Forças Armadas, dos
Serviços Secretos e do Ministério das Relações Exteriores da Turquia, se
encontra em São Petersburgo, para debater a aproximação (sic) entre os dois
países.
"Vamos criar um
mecanismo tripartite com a Rússia no que diz respeito à Síria", confirmou
o Chanceler, revelando que deve encontrar-se com o seu colega russo, Sergei
Lavrov, nos próximos dias. "Compartilhamos os mesmos pontos de vista sobre
o cessar-fogo, a ajuda humanitária e a solução política".
Quanto aos tópicos em
desacordo com Moscou, o Ministro os enumerou, sublinhando, no entanto, a própria
disposição em superá-los. "Temos
ideias diferentes sobre a maneira de assegurar o cessar-fogo. Não queremos que
os civis sejam atingidos, achamos inoportuno que a oposição moderada seja
bombardeada e condenamos o cerco a Aleppo", afirmou Cavusoglu à agência turca Anatólia.
O que aproxima os dois
líderes - Vladimir Putin e Recep Erdogan seria a crítica ao Ocidente. A
normalização das relações russo-turcas verificou-se há oito meses do incidente
aero-militar na fronteira com a Síria, em que fora abatido, pelas baterias
turcas, um avião russo, morrendo o respectivo piloto russo.
A tônica agora, segundo
enfatizam as duas Partes, seria a da
conciliação. Nesse contexto, coube ao Ministro do Exterior turco, Mevlut Cavusoglu,negar que a mudança de posição de
Âncara represente ulterior recado de hostilidade ao Ocidente. "Nós o fazemos por nossos interesses e
os da região", sublinhou o Ministro Cavusoglu.
( Fontes: O Estado de S.
Paulo; Putin's Kleptocracy, de Karen
Dawisha )
[1] França e Grã-Bretanha.
[2] Império alemão e Império
austro-húngaro.
[3] Por força do malogro dessa
ofensiva, Churchill ficaria fora do gabinete.
[4] Tanto São Paulo quanto o
Padre Vieira teriam sido acometidos pelo "estalo" sofrido na estrada
de Damasco, que contribuíra para mudar-lhes a postura no pensamento.
[5] A obra básica na matéria é
o livro da prof.ª Karen Dawisha, "Putin's Kleptocracy".
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