A corajosa opção da Chanceler da Alemanha e a crise
que deverá enfrentar são duas vertentes do mesmo problema. A ameaça ao seu
gabinete, de muito transcende a situação política interna da República Federal,
e terá implicações para a União Europeia.
Anunciada desde muito, como já tive
oportunidade de assinalar no blog, é
consenso generalizado que, ao abrir as portas de seu país aos refugiados, ela
agiu não só conforme a própria consciência, mas também tendo presente a
respectiva biografia.
Cercado por anões na União Européia, se
ela cair não será apenas um desastre para a sua Alemanha, mas também Bruxelas
tenderá muito a perder para quem é hoje a respectiva grande timoneira.
Na mediocridade de seus supostos
iguais na Comunidade Européia, o dito de Orwell - posto que com sentido
modificado - aponta que ela não é igual aos demais. Na fábula do escritor
inglês, alguns dos bichos na fazenda eram mais
iguais do que outros.
Porventura alijada do poder, sua presença faltaria nos conselhos de Bruxelas, e
ausente sua influência, os efeitos não deixariam de ser sentidos, e as
consequências de tal lacuna - dada a própria capacidade e inegável liderança -
não deixariam de agravar-se.
Quando o jovem imperador Guilherme II
dispensou o Chanceler Otto von Bismarck, as consequências, de inicio para o
Reich alemão, e mais tarde para o concerto das potências européias, seriam
molestas e ao cabo catastróficas, com a tragédia da primeira grande guerra, que
não só varreu a época de grande prosperidade, mas foi sobretudo o vestíbulo para os horrores
do século XX.
Angela Merkel, pela personalidade,
firmeza e consciência europeia, tem sido líder respeitada e respeitável, em
meio às crises enfrentadas pela União Européia.
A questão dos refugiados e sua
resposta ética ao desafio apresentado pelo escândalo da guerra na Síria, o
indizível sofrimento humano provocado por esses cinco anos de conflito, a
inércia de muitas potências - e notadamente de Barack Obama - tem dado
oportunidade a que diversos flagelos tenham repontado na antiga república, com
indizível padecimento das populações envolvidas.
O enorme sofrimento dos sírios,
diante das diversas conflagrações que há cinco anos lhe martirizam o povo, não
pode estender-se sob a maligna influência de tantos fatores e de lutas
oportunistas para montar feudos sobre o padecimento da população civil e diante
da recusa de Bashar al-Assad de ter, por fim, a grandeza de retirar-se de uma
terra sobre a qual perdeu - a par dos apoios interesseiros de Vladimir Putin e
de Teerã - qualquer restante fímbria de autoridade moral para continuar em
Damasco.
O caos na terra da passagem não
serve decerto à população sacrificada pelos bombardeios, os diferentes
exércitos e grupos de guerrilheiros, o consequente desalojamento de boa parte
da população civil, em meio ao
pandemônio das lutas intestinas - sem contar a irrupção do ISIS que é um efeito
direto da malsinada guerra do Iraque, provocada por George Bush e seu grupo de
petroleiros e neoconservadores.
A reação da população - perseguida
por homens armados e pestes revividas - como a poliomielite - enfurnada em acampamentos sem qualquer
higiene - não poderia ter sido outra diante de conflagração sem sentido e sem
fim, que não fosse a fuga desesperada, através de extensões hostis e de
países que ao ver essa pobre gente síria
aproximar-se, cerravam-lhe os acessos nacionais.
Como foi indicado, não havia outra
saída - diante da inação do Ocidente, e em especial dos Estados Unidos - que
Frau Merkel, diante de seu passado, e de sua postura ética, abrisse as portas
da Alemanha para receber os refugiados da Síria.
É cerca de um milhão de pessoas. Há
duas considerações que esta situação impõe. O enorme peso transferido para um
país que, a despeito de ser a principal potência econômica européia, não tem
estrutura material nem de recursos humanos para abrigar tão descomunal
contingente.
Angela Merkel não é suicida
política, mas a inação de muitos - e aqui singularizo dois líderes - Barack
Obama por recusar-se a cooperar na solução de um problema no qual a sua grande
Nação tem descomunal responsabilidade, tanto no passado por Bush & Cia., e
no presente, pela recusa de atitude consentânea de pôr um fim a esse conflito,
como lhe fora recomendado pelos antigos chefes dos ministérios e agências encarregadas da defesa dos interesses externos
estadunidenses, com Hillary Clinton à testa; e Vladimir Putin, o autocrata
russo, e marinheiro em águas turvas, eis que ambiciona ter bases militares na
Síria de Bashar al-Assad, que ora virou seu vassalo. Por isso, o Senhor do Kremlin não trepida em
estender a guerra civil pelo tempo que for necessário para manter seu
vassalo em Damasco, e continuar os bombardeios oportunistas que a fraqueza de
Barack Obama tornara possíveis.
Tenho comparado por muitas vezes gospodin Vladimir Putin a Signore Benito Mussolini, e não só pelo
vezo em mostrar-se de torno nu, de cavalgar brancos corcéis, de esmerar-se em
desforços atléticos, que mal correspondem à sua projeção de poder. Por sua
conta, e a fraqueza do Ocidente, tem atenazado a Ucrânia, de que arrancou (em
março de 2014) a península da Crimeia, como 'punição' pelo movimento do povo
ucraniano que, pela liberdade e a perspectiva de porvir melhor através de
acordo com a União Europeia, derrubara o presidente pró-Russia Viktor
Yanukovich A par disso, fala grosso com
os países do estrangeiro próximo -
que é o inquietante vezo do urso russo de tratar as infelizes nações que lindam
com o antigo Império dos Czares. Como o antigo Duce, gospodin
Putin fala grosso com os que supõe mais fracos. As suas passadas aventuras na
Abkazia do Sul e Georgia do Sul já o dizem bastante, se ele não estivesse agora
empenhado em megalômano projeto de poder, fundado na doutrina eurasiana (a qual
encarregou aos escribas da vez), mandando os seus velhos esquadrões aéreos
bombardearem hoje Aleppo, confiado em que o seu Ministro de Negócios
Estrageiros, Sergey Lavrov, dê depois um jeito, reunindo-se com o Secretário de
Estado John Kerry.
O grande contingente de refugiados na
Alemanha constitui um problema não só da
Chanceler germânica, mas também para as autoridades departamentais da RFA. Não
facilitou, de resto, essa aceitação o problema causado pelo assédio a mulheres
e moças alemãs no Carnaval de Colônia,
de uma parte desses refugiados. Após a
coragem da Chanceler, ao fazer o que nenhum outro país fez - i.e., dar acesso
irrestrito às vítimas da guerra na Síria - a maneira com que alguns grupos de
sírios agiu em relação a mulheres alemãs não poderia ter sido provocação mais
estúpida para abalar a frágil estrutura
que sustenta a boa vontade de Frau Merkel.
Nos próximos meses, há eleições
departamentais na Alemanha. Com a queda na popularidade da senhora Merkel - por
causa sobretudo dos abusos de Colônia, mas também com o temor de outros
problemas ligados com as sobrecargas do ingresso de um milhão de refugiados -
há inquietude quanto a desempenho abaixo do esperado da CDU (o partido da
Chanceler). Há outras inquietudes no ar decorrente da atitude corajosa da
Primeira Ministra, que tanto difere do baixo padrão dos demais líderes
europeus. Entre eles, o Premier David
Cameron, cuja mediocridade e consequente falta de visão fazem revirar na tumba a Edward Heath e tantos outros que batalharam pelo ingresso do Reino
Unido na antiga CEE (hoje União Europeia). Se esse senhor lograr o que, em
aparência semelha desejar, a velha Álbion
poderá ter, para seu horror, os próprios anseios atendidos. Cameron parece
encaixar-se no apodo célebre de Jean-Jacques Rousseau ao Abbé de Saint Pierre: des grandes idées, mas des petites vues[1].
Por fim, o ingresso maciço de refugiados na Alemanha semelha ter estufado
as velas de um partido de extrema direita, no modelo helênico do Aurora
Dourada. É de esperar-se que não logrem superar a barreira dos cinco por cento,
sem os quais a sua licença é cassada.
Aliás considerar, como o fez em má
hora o nosso Supremo, ao considerar inconstitucional a modesta cláusula de
exclusão que o Congresso desejara implantar, para livrar-nos dessa ridícula
proliferação partidária, que hoje beira os quarenta, com todos os privilégios
atinentes (livre propaganda obrigatória na tevê e no rádio, subsídios públicos,
e o que é pior, as legendas de aluguer, entre outros privilégios). Está mais do
que tempo de ab-rogar essa insensata decisão do Supremo, que veio dar guarida a
pretensos partidos políticos que, em fim de contas, só representam os
interesses dos respectivos donos, que a cada eleição ocupam um patético espaço
político para as suas representações nanicas... Como panegírico ao atraso e ao
subdesenvolvimento, nunca vi maior.
( Fontes: The New York Times, O
Globo )
Nenhum comentário:
Postar um comentário