terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Ângela Merkel e a Crise Humanitária


          

       A corajosa opção da Chanceler da Alemanha e a crise que deverá enfrentar são duas vertentes do mesmo problema. A ameaça ao seu gabinete, de muito transcende a situação política interna da República Federal, e terá implicações para a União Europeia.

       Anunciada desde muito, como já tive oportunidade de assinalar no blog, é consenso generalizado que, ao abrir as portas de seu país aos refugiados, ela agiu não só conforme a própria consciência, mas também tendo presente a respectiva biografia.

        Cercado por anões na União Européia, se ela cair não será apenas um desastre para a sua Alemanha, mas também Bruxelas tenderá muito a perder para quem é hoje a respectiva grande timoneira.

         Na mediocridade de seus supostos iguais na Comunidade Européia, o dito de Orwell - posto que com sentido modificado - aponta que ela não é igual aos demais. Na fábula do escritor inglês, alguns dos bichos na fazenda eram mais iguais do que outros.

         Porventura alijada do poder, sua  presença faltaria nos conselhos de Bruxelas, e ausente sua influência, os efeitos não deixariam de ser sentidos, e as consequências de tal lacuna - dada a própria capacidade e inegável liderança - não deixariam de agravar-se.

         Quando o jovem imperador Guilherme II dispensou o Chanceler Otto von Bismarck, as consequências, de inicio para o Reich alemão, e mais tarde para o concerto das potências européias, seriam molestas e ao cabo catastróficas, com a tragédia da primeira grande guerra, que não só varreu a época de grande prosperidade, mas foi sobretudo o vestíbulo para os horrores do século XX.

         Angela Merkel, pela personalidade, firmeza e consciência europeia, tem sido  líder respeitada e respeitável, em meio às crises enfrentadas pela União Européia.

         A questão dos refugiados e  sua resposta ética ao desafio apresentado pelo escândalo da guerra na Síria, o indizível sofrimento humano provocado por esses cinco anos de conflito, a inércia de muitas potências - e notadamente de Barack Obama - tem dado oportunidade a que diversos flagelos tenham repontado na antiga república, com indizível padecimento das populações envolvidas.

          O enorme sofrimento dos sírios, diante das diversas conflagrações que há cinco anos  lhe martirizam o  povo, não pode estender-se sob a maligna influência de tantos fatores e de lutas oportunistas para montar feudos sobre o padecimento da população civil e diante da recusa de Bashar al-Assad de ter, por fim, a grandeza de retirar-se de uma terra sobre a qual perdeu - a par dos apoios interesseiros de Vladimir Putin e de Teerã - qualquer restante fímbria de autoridade moral para continuar em Damasco.

           O caos na terra da passagem não serve decerto à população sacrificada pelos bombardeios, os diferentes exércitos e grupos de guerrilheiros, o consequente desalojamento de boa parte da população civil,  em meio ao pandemônio das lutas intestinas - sem contar a irrupção do ISIS que é um efeito direto da malsinada guerra do Iraque, provocada por George Bush e seu grupo de petroleiros e neoconservadores.

          A reação da população - perseguida por homens armados e pestes revividas - como a poliomielite - enfurnada em acampamentos sem qualquer higiene - não poderia ter sido outra diante de conflagração sem sentido e sem fim, que não fosse a fuga desesperada, através de extensões hostis e de países  que ao ver essa pobre gente síria aproximar-se, cerravam-lhe os acessos nacionais.

          Como foi indicado, não havia outra saída - diante da inação do Ocidente, e em especial dos Estados Unidos - que Frau Merkel, diante de seu passado, e de sua postura ética, abrisse as portas da Alemanha para receber os refugiados da Síria.

         É cerca de um milhão de pessoas. Há duas considerações que esta situação impõe. O enorme peso transferido para um país que, a despeito de ser a principal potência econômica européia, não tem estrutura material nem de recursos humanos para abrigar tão descomunal contingente.

         Angela Merkel não é  suicida política, mas a inação de muitos - e aqui singularizo dois líderes - Barack Obama por recusar-se a cooperar na solução de um problema no qual a sua grande Nação tem descomunal responsabilidade, tanto no passado por Bush & Cia., e no presente, pela recusa de atitude consentânea de pôr um fim a esse conflito, como lhe fora recomendado pelos antigos chefes dos ministérios e agências  encarregadas da defesa dos interesses externos estadunidenses, com Hillary Clinton à testa; e Vladimir Putin, o autocrata russo, e marinheiro em águas turvas, eis que ambiciona ter bases militares na Síria de Bashar al-Assad, que ora virou seu vassalo.iHi Hi Por isso, o Senhor do Kremlin não trepida em estender a guerra civil pelo tempo que for necessário para manter seu vassalo em Damasco, e continuar os bombardeios oportunistas que a fraqueza de Barack Obama tornara possíveis.

           Tenho comparado por muitas vezes gospodin Vladimir Putin a Signore Benito Mussolini, e não só pelo vezo em mostrar-se de torno nu, de cavalgar brancos corcéis, de esmerar-se em desforços atléticos, que mal correspondem à sua projeção de poder. Por sua conta, e a fraqueza do Ocidente, tem atenazado a Ucrânia, de que arrancou (em março de 2014) a península da Crimeia, como 'punição' pelo movimento do povo ucraniano que, pela liberdade e a perspectiva de porvir melhor através de acordo com a União Europeia, derrubara o presidente pró-Russia Viktor Yanukovich  A par disso, fala grosso com os países do estrangeiro próximo - que é o inquietante vezo do urso russo de tratar as infelizes nações que lindam com o antigo Império dos Czares. Como o antigo Duce,  gospodin Putin fala grosso com os que supõe mais fracos. As suas passadas aventuras na Abkazia do Sul e Georgia do Sul já o dizem bastante, se ele não estivesse agora empenhado em megalômano projeto de poder, fundado na doutrina eurasiana (a qual encarregou aos escribas da vez), mandando os seus velhos esquadrões aéreos bombardearem hoje Aleppo, confiado em que o seu Ministro de Negócios Estrageiros, Sergey Lavrov, dê depois um jeito, reunindo-se com o Secretário de Estado John Kerry. 

           O grande contingente de refugiados na Alemanha constitui um  problema não só da Chanceler germânica, mas também para as autoridades departamentais da RFA. Não facilitou, de resto, essa aceitação o problema causado pelo assédio a mulheres e moças  alemãs no Carnaval de Colônia, de uma parte desses refugiados.  Após a coragem da Chanceler, ao fazer o que nenhum outro país fez - i.e., dar acesso irrestrito às vítimas da guerra na Síria - a maneira com que alguns grupos de sírios agiu em relação a mulheres alemãs não poderia ter sido provocação mais estúpida para  abalar a frágil estrutura que sustenta a boa vontade de Frau Merkel.

            Nos próximos meses, há eleições departamentais na Alemanha. Com a queda na popularidade da senhora Merkel - por causa sobretudo dos abusos de Colônia, mas também com o temor de outros problemas ligados com as sobrecargas do ingresso de um milhão de refugiados - há inquietude quanto a  desempenho abaixo do esperado da CDU (o partido da Chanceler). Há outras inquietudes no ar decorrente da atitude corajosa da Primeira Ministra, que tanto difere do baixo padrão dos demais líderes europeus. Entre eles, o Premier David Cameron, cuja mediocridade e consequente falta de visão fazem revirar na tumba a Edward Heath e tantos outros que batalharam pelo ingresso do Reino Unido na antiga CEE (hoje União Europeia). Se esse senhor lograr o que, em aparência semelha desejar, a velha Álbion poderá ter, para seu horror, os próprios anseios atendidos. Cameron parece encaixar-se no apodo célebre de Jean-Jacques Rousseau ao Abbé de Saint Pierre: des grandes idées, mas des petites vues[1].

           Por fim, o ingresso maciço de refugiados na Alemanha semelha ter estufado as velas de um partido de extrema direita, no modelo helênico do Aurora Dourada. É de esperar-se que não logrem superar a barreira dos cinco por cento, sem os quais a sua licença é cassada.

           Aliás considerar, como o fez em má hora o nosso Supremo, ao considerar inconstitucional a modesta cláusula de exclusão que o Congresso desejara implantar, para livrar-nos dessa ridícula proliferação partidária, que hoje beira os quarenta, com todos os privilégios atinentes (livre propaganda obrigatória na tevê e no rádio, subsídios públicos, e o que é pior, as legendas de aluguer, entre outros privilégios). Está mais do que tempo de ab-rogar essa insensata decisão do Supremo, que veio dar guarida a pretensos partidos políticos que, em fim de contas, só representam os interesses dos respectivos donos, que a cada eleição ocupam um patético espaço político para as suas representações nanicas... Como panegírico ao atraso e ao subdesenvolvimento, nunca vi maior.

 

( Fontes:  The New York Times,  O  Globo )




[1] Grandes idéias mas pequenas vistas (políticas).

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