quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

James Comey, o grande eleitor de Trump?

                    

         Dada a importância da matéria, ainda que seja para caracterização futura de procedimentos institucionais de dúbia legitimidade, semelha de toda importância que procure sumarizar o que fez o Diretor do Federal Bureau of Investigations (FBI), James Comey, quanto à situação jurídica do servidor particular de e-mails do computador da candidata democrata à Presidência, Hillary Clinton.
          Os leitores desta coluna já terão lido meus comentários sobre a questão. Agora me calo, para que se tenham presentes as observações de David Cole, articulista para questões jurídicas da New York Review, e Professor de Direito da Universidade de Georgetown, na cadeira de Direito e Políticas Públicas.
         A premissa do articulista é a seguinte: não importa o que se possa dizer sobre a recém-concluída eleição presidencial de 2016, uma coisa é certa: o Diretor do FBI James Comey desempenhou um papel de tamanho engrandecido e excepcionalmente fora de propósito.
          Com efeito, o seu anúncio altamente prejudicial, a 28 de outubro, a apenas onze dias antes da eleição, que ele tinha reaberto investigação sobre o servidor privado de e-mails do computador de Hillary Clinton, iria garantir que os últimos e críticos dias da campanha fossem tomados por insinuações e suposições desencadeadas pela ação do diretor do FBI.
           Então, quando Comey anunciou em cinco de novembro, a dois dias da eleição, que, de acordo com renovado exame da matéria, ele de novo não encontrara fundamento para acreditar que (a senhora) Clinton houvesse cometido algum crime, essa declaração apenas sublinhou o caráter fora de propósito do anúncio de 28 de outubro. Houvesse ele conduzido a análise em sigilo, como requerem as regras do Departamento de Justiça, a inteira questão teria sido resolvida sem qualquer interferência com a eleição. Como as coisas aconteceram, o seu anúncio de 28 de outubro alterou de forma dramática a trajetória da campanha, desviando a atenção dos consideráveis problemas enfrentados por Donald Trump, e inevitavelmente influenciou as escolhas de muitos votantes antecipados.
             Comey tornara pública a renovação da investigação contra a política e as regras do Departamento de Justiça, desrespeitando as objeções do Procurador-Geral e várias outras autoridades do Departamento de Justiça. Ele procedeu dessa forma, a despeito de não haver sequer visto as novas provas, e muito menos se tais provas acaso sugerissem  alguma ação delituosa de parte da senhora Clinton. O anúncio como era previsível caíu direto nas mãos de Trump, que de imediato aproveitou a ocasião  para repetir a sua acusação  de que Clinton deveria ser presa (locked up). Nada disso deveria ter acontecido; sob a prática desde muito estabelecida pelo Departamento de Justiça, Comey deveria ter mantido silêncio acerca do fato da ulterior investigação, em especial estando tão próximo da eleição.
               Se acaso a intervenção imprudente de Comey mudou o resultado da eleição presidencial, de toda maneira o prejuízo quanto a integridade de tanto os processos político quanto o criminal já tinha sido feito,.
                O processo criminal tinha sido politizado, e o processo político manchado pelo abuso do poder oficial.  A questão por resolver é o que deveria acontecer agora.  Minimamente pelo menos,  as normas políticas do Departamento de Justiça que Comey violou devem ser reforçadas e formalizadas de modo a assegurar que isto nunca mais ocorra.
                 A primeira regra - que Comey não levou em consideração - requer que as autoridades de implementação da lei (law enforcement officials)  devem evitar comentários públicos sobre investigações em curso.  As diretivas do Departamento da Justiça sobre "Revelação de Informação concernente investigações em curso" estabelecida no Manual dos Procuradores dos Estados Unidos, estabelecem que como disposição geral as autoridades "não devem responder a perguntas acerca da existência de uma investigação em curso ou comentar acerca de sua natureza ou progresso." A regra reconhece que acerca de "matérias que já tiveram substancial publicidade" ou quando a segurança pública o requer, "comentários a respeito ou confirmação de investigação em curso podem necessitar de ser feitos."
                   Esta exceção é obviamente de caráter estreito.  A regra geral de "sem comentários" tem o objetivo  de impedir promotores e autoridades de aplicação da lei de usarem a própria autoridade para jogarem insinuações sobre as reputações dos cidadãos; o seu trabalho é o de conduzir investigações, e não expor avaliações públicas de caráter.
                     O pecado original de Comey nesse respeito foi a sua altamente inusitada conferência de imprensa em julho, na qual, ao invés de simplesmente reportar que ele tinha encerrado a investigação relativa aos e-mails, porque ele não encontrara qualquer indício de violação por Clinton de qualquer lei, ele foi além ao censurá-la como "extremamente descuidada". Ainda que o código penal federal seja por certo bizantino, a falta de cuidado não é um crime federal, e portanto, como Diretor do FBI a Comey não cabia em absoluto dar a respeito a sua opinião pessoal. A autoridade do investigador de maior hierarquia na aplicação da lei vem acompanhada pela responsabilidade de sopesar as próprias palavras e ações com todo cuidado; se algum reparo deva ser feito neste caso, foi Comey quem fora "extremamente descuidado".
                         Depois de violar uma vez a regra contra comentários públicos, Comey então foi em frente, valendo-se daquela violação para justificar outra infração.  Em e-mail para a sua equipe  ele defendeu o seu passo extraordinário de anunciar publicamente a retomada de uma investigação penal confidencial (closed), ao afirmar que ele tinha prometido manter o Congresso informado quando ele testemunhasse em julho acerca do encerramento da investigação.
                          A missão do FBI, contudo, não é proporcionar ao Congresso relatórios públicos de progresso  acerca de investigações penais, mas conduzir tais  investigações de forma confidencial,  ao menos e até que elas justifiquem uma incriminação ou fechamento (dismissal). E o "relatório" de 28 de outubro, uma breve carta para o Congresso, tinha tudo para ser enganoso ('misleading'). O anúncio se seguiu à descoberta de e-mails de uH   H    Huma Abedin, a chefe do staff da Senhora Clinton no Departamento de Estado, que estavam no computador de Anthony Weiner, marido já separado de Abedin, e que está submetido a investigação separada, por alegamente manter relações de "sexting" com menor de idade. Nem Comey, nem o seu departamento tinham na verdade lido  qualquer dos e-mails recentemente descobertos quando ele prontamente notificara o Congresso, e por isso não tinha qualquer base para acreditar que eles constituíssem prova de eventual delito. Sem embargo, esse anúncio, não obstante, lançou uma rajada de renovadas acusações contra Clinton.
                               A segunda política desrespeitada por Comey é ainda mais fundamental.  Tal política, que tem sido endossada por décadas pelos Procuradores-Gerais dos dois partidos, requer que as autoridades que se ocupam da aplicação da Lei evitem indiciamentos mesmo já completados contra candidatos a cargos públicos dentro de sessenta dias para a eleição.  Como, respectivamente, explicaram ao Washington Post, Jamie Gorelick e Larry Thompson, ex-vice-procuradores gerais nas administrações Clinton e George W. Bush:
                               Há décadas atrás, o Departamento decidira que no período de sessenta dias anterior à eleição, deve-se evitar indiciar indivíduos que estejam disputando um cargo eletivo, assim como sustar a divulgação de quaisquer medidas de investigação.  O raciocínio para tanto está na circunstância de que, por mais importante seja a aplicação da  Justiça, e por mais relevante seja para o público saber o que a Justiça sabe, diante da circunstância de que tais alegações não possam ser devidamente julgadas, por apresentarem essas ações ou revelações o risco de afetarem o processo político.  Um memorandum que reflete essa escolha tem sido regularmente expedido a cada quatro anos por muitos procuradores-gerais  e por um longo tempo, inclusive em 2016.
                                 Esta norma de ação é aplicada em todas as eleições, desde aquelas para simples juntas escolares locais, até àquelas destinadas ao mais alto cargo da Nação. Dentre dessa política, mesmo se o FBI  tivesse coletado provas suficientes para acusar Hillary Clinton formalmente pela transmissão consciente de informação confidencial ou sobre outro aspecto de violação da Lei penal, este fato não deveria ter sido tornado público até depois da eleição.        
                               Não obstante, James Comey decidiu torná-lo público, a apenas onze dias antes da eleição presidencial, mesmo sem dispor de base para acreditar que as "novas" provas que lhe chegaram às mãos eram realmente novas, sem falar de não ter qualquer prova de qualquer crime.
                                Não só tinham os funcionários do FBI não tinham revisto os e-mails no computador de Weiner quando do anúncio de Comey a 28 de outubro. Eles não tinham sequer ainda recebido qualquer autorização judicial para examiná-los (a autorização foi obtida no domingo seguinte). Assim, o FBI não dispunha de nenhuma base para acreditar que os e-mails ensejavam qualquer prova de conduta criminosa da parte da senhora Clinton. De fato, como agora sabemos, eles não ensejavam nenhuma prova incriminante, e muitos eram simples duplicatas de e-mails anteriormente já revistos.
                                   Por importante e largamente aceita que seja a política contra interferência no que tange a uma próxima e imediata eleição como se verifica dentro do Departamento de Justiça, essa política não está formalmente refletida  em qualquer regra escrita. O memorandum que Gorelick e Thompson citam se refere somente a investigações de "crimes eleitorais", e não a outros crimes. E a regra dos sessenta dias também não está refletida no memorandum.  É "costume", como foi dito a David Cole. Mas se nós devemos evitar a repetição deste grande erro, a norma  política deveria ser colocada por escrito e integrada nos códigos competentes.
                                  Alguns observadores asseveraram que  Comey violou a Lei Hatch, ao tornar pública a renovada investigação, mas David Cole não vê prova que embase esta acusação.  A Lei Hatch torna crime para funcionários federais  utilizar a sua "autoridade oficial ou influência com o objetivo de interferir com  ou afetar o resultado de uma eleição". O anúncio de 28 de outubro certamente afetou os resultados da eleição de 2016, mas não há prova de que ele tomou tal ação com esse objetivo, e na falta de tal motivação, a Lei Hatch não está implicada.
                                 Com efeito,Comey se orgulha de ser independente.  Enquanto servia como vice-Procurador Geral sob o Presidente George W. Bush, ele enfrentou bravamente o Conselheiro da Casa Branca Alberto Gonzales, que esta procurando pressionar o hospitalizado  e sedado  Procurador-Geral  John Ashcroft a aprovar um programa da NSA (Agência Nacional de Segurança)  cuja legalidade muitos funcionários do Departamento de Justiça tinham questionado.  Mas a independência pode ser levada muito longe.  Como disse outro antigo vice-Procurador Geral para George W. Bush, George Terwilliger, comentando a respeito das recentes ações de Comey: "Há uma diferença entre ser  independente e voar solo." Há fortes razões  para regras que limitem comentários públicos sobre investigações criminais em andamento, e também interferência em eleições muito próximas.  Um sentido elevado de sua própria "independência" não dá excusas para quebrar essas regras.
                                  Comey estava sem dúvida preocupado em que, não houvesse ele informado o Congresso das novas provas, e que fosse depois da eleição sabido que ele as deixara de lado sem mencioná-las - e presumindo que os e-mails fossem de alguma importância - ele poderia ter sido objeto de críticas por seu próprio Partido Republicano, e também de parte de Donald Trump. Mas tais críticas constituem um dos fardos que um funcionário governamental responsável  deve suportar.  Seguir as regras era a coisa certa a ser feita, mesmo se tal redundasse em algum custo para a reputação de Comey no seu próprio partido.  Ao alçar a respectiva preocupação com a sua reputação acima das regras, Comey será para sempre lembrado como o diretor do FBI que abusou do poder de seu cargo ao interferir sem qualquer base em uma eleição presidencial iminente.

(Fonte: The New York Review. 8 de dezembro de 2016. David Cole: o que James Comey Fez.)



[1] O título do artigo em inglês de David Cole  é  "O que James Comey fez"

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