segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Putin: nova investida diplomática


 
           De Vladimir V. Putin, se pode dizer muitas coisas, mas não que lhe falte tenacidade (ou obstinação - que é a mesma característica, mas sem os atavios dos cortesãos à volta).

            Faz tempo a New York Review publicou artigo em que se ocupa da doutrina supostamente abraçada por gospodin Prezidént. Trata-se de uma composição a chamada doutrina eurasiana, que com elementos de pensadores da Direita (nazismo) e da Esquerda, nos apresenta o que o entorno de Putin quer fazer passar por maneira de ver própria das motivações de sua presidência.

            Não se pode negar que Putin é autêntico patriota - a princípio, funcionário categorizado na sede de Dresden (então República Democrática Alemã) do KGB. Sofreu bastante na fase terminal do governo de Mikhail Gorbatchev, quando o princípio das nacionalidades, desatado pelas forças da Peristroika e da Glasnost, desmantelava na prática o Império Soviético.

            E foi com mágoa no coração que ele queimou parte dos arquivos da Agência de Dresden, diante da audácia crescente dos alemães do leste, antes submissos diante dos representantes do serviço secreto soviético.

            A trajetória de Putin se assinala por grandes mergulhos em que pensa encontrar forças - e em geral as depara - para superar os desafios à sua suposta predestinação para restaurar, senão na integridade, pelo menos em boa parte, o antigo status da União Soviética.

            Na sua doutrina eurasiana - com os aportes supra-referidos - se deve vislumbrar um instrumento flexível, mas empregado de forma resoluta para levar à antiga grandeza da Rússia dos Tzares e da própria URSS no cenário mundial.

            Desde que na virada do século, assumiu o poder, que foi cedido mais pelo entorno oligárquico do que pelo próprio Boris Ieltsin, o que tem sido visto pela intelligentsia russa como um desastre.

            Como de resto se verifica nas obras significativas de duas mulheres - i.e., Masha Gessen, pela sua passagem (anos de aprendizado) como vice-prefeito em São Petersburgo, em que com o homem de frente Dmitri Medvedev ele forma o seu círculo de apoio, que inclui o ocasional recurso à mala vita; e mais adiante, em retrato sem retoques do livro "A cleptocracia de Putin" uma análise corajosa e precisa da formação do respectivo círculo de poder, pesquisado, aprofundado e preparado pela professora universitária americana  Karen Dawisha.

            É amarga ironia que o círculo de oligarcas do entorno de Ieltsin, diante da decadência física dessa personalidade, e da consequente (e para eles inquietante) forte baixa na popularidade, optou por entregar o governo de todas as  Rússias (pelo menos aquelas que sobraram à catástrofe Gorbachev) a um gerarca do KGB, com um turvo passado como vice-prefeito em São Petersburgo.

            Além da queda dos oligarcas, desapareceram os ares democráticos da agitada presidência Ieltsin. Mas não é aqui o lugar para refazer essa trajetória. Em resumo, a democracia, imperfeita mas real, sob Ieltsin, passou a ser roída pela turma do KGB, com o grupo de Putin à frente.

              Hoje, na Federação Russa se afirma um novo Tzar (embora o chamem de Presidente), com a Duma e o Senado com maiorias governistas. A antiga liberdade nos órgãos de comunicação agora se acha sob controle do Kremlin.  Há mortes estranhas, como a do Deputado e ex-Ministro Boris Nemtsov, que preparava, ao ser executado por um contract-killer, um comício pró-Ucrânia (no modelo russo que vem abatendo tantos personagens incômodos, como a jornalista Anna Politkovskaya, que se assinalara em reportagens corajosas sobre a guerra-colonial da Tchetchênia e foi abatida no saguão do modesto edifício onde morava), esse formato costuma ser o mesmo, o que tende a dificultar ainda mais a identificação dos mandantes.

             A menção da Ucrânia vem a propósito. A expedição contra a Criméia e a palhaçada encenada - tropas descaracterizadas, como se fora necessário divisas russas em seus uniformes, para desvelar segredo de Polichinelo. Putin terá subestimado a reação do Ocidente. Não contava com a artilharia das sanções certeiras dos cupinchas e bancos do círculo do poder putinesco, empregada por Barack Obama, e com menos intensidade, por Frau Angela Merkel. Continuam de pé sanções sobre voos aéreos de e para a Crimeia, e outros obstáculos, como no uso de cartões de banco. Talvez o nadir da ofensiva de Putin para 'castigar' a  Ucrânia, tenha sido no desastre aéreo da Malaysian Airlines, com a morte de todos os passageiros, abatidos por míssil de fabricação russa.

             No momento, Putin aparece como virtual aliado do Ocidente na sua luta contra o ISIS. Os seus velhos caças, no entanto, também se empenham em fortalecer o poder do cliente Bashar al-Assad. É  filme que ainda não terminou.

             Com o despencar das cotações do petróleo, as finanças russas entraram em área de turbulência, mas o seu Presidente continua a exibir a costumeira arrogância. Esse 'castigo' imposto a Kiev pela derrubada de um presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovich pela revolução popular da Praça Maidan, ,  ainda não se sabe como vai evoluir, embora a atitude de Frau Merkel não tem configurado uma aliada de grande valia para a Ucrânia.  Este último país aproveitará ou não o compasso de espera desejado por Putin na guerra de Kiev contra os clientes da Rússia (as chamadas repúblicas separatistas fomentadas pelo Kremlin, em outro avatar da punição ao governo ucraniano ).

              Depois de declarar que a Rússia é agora uma potência continental (excluída, portanto, o cotejo com a URSS superpotência), Obama teve de aceitar a dúbia adesão das forças de Putin na guerra contra o E.I. Os fins do presidente russo passam por Damasco e pelo seu submisso aliado (que lhe tem dado presentes comoventes, como espaço para nova base aeronaval mediterrânea para melhor aproximá-lo das proverbiais águas quentes do Mediterrâneo).

             Será nesse contexto - toda parceria com Vladimir Putin é empresa arriscada, atendidos os objetivos do Senhor do Kremlin. Desde que tomou posse, ele vem estendendo o próprio poder russo na área que é ominosamente denominada de 'o estrangeiro próximo'. A desenvoltura de Moscou é tal nesse particular que há uma legislação paralela relativa aos pequenos países que lindam com o colosso russo. Não é uma posição deveras confortável. Nesse particular, não é demais enfatizar a relevância da Ucrânia. Se Putin, de maneira aberta ou não, lograr impor a Kiev a mesma sorte da Abkhazia do Sul, Geórgia e congêneres, não será uma perda apenas para os pobres ucranianos (já penalizados pela derrubada do presidente pró-Rússia Viktor), mas como muito bem assinalou George Soros, esse avanço do urso russo será desenvolvimento ominoso e inquietante para a União Européia, e para certos grandes países (como a Polônia, v.g.) que serão relembrados de forma demasiado manifesta de o que significa ter uma Rússia em processo de reconstituição como sua vizinha.

                Se a anexação manu militari da península da Crimeia recebeu apenas um puxão de orelha das Nações Unidas (eis que a Assembléia Geral, ao contrário do Conselho de Segurança, só pode emitir recomendações e nunca resoluções), não é demais relembrar que por decisão da Presidente Dilma Rousseff o pobre Itamaraty teve de abster-se na Recomendação. Com isso, ela infringiu a própria constituição, que proíbe ao Brasil guerras de conquista.

                Para nosso vergonha, prevaleceu por ora o rudimentar e confuso conhecimento diplomático da Rousseff.

                Agora, o ambicioso Vladimir Putin - que não mais quer aguentar as capitis deminutio de um país que não é mais super-potência - faz circular estranho e veleitário documento, no qual o bom Putin desnuda a sua não-pequena ambição, a par do desejo irrefreável de voltar a circular nos clubes do poder, como era a sua posição anterior quando foi expulso do G-8. Leiam essa jóia - que não se assemelha àqueles trabalhos de ouriversaria, os Ovos Fabergé, em que os grão-duques e o próprio Czar dispensavam bom dinheiro:

                " A Rússia está interessada na construção de uma parceria de pleno direito com os EUA, baseada em interesses comuns, incluindo os econômicos, tendo em vista a influência das relações russo-americanas sobre a situação internacional como um todo."

                Já diziam os nossos maiores que "pretensão e água benta" não enchem barriga, nem criam situações reais e concretas.

                Mais uma vez Putin mostra - e não só no seu histrionismo - a sua semelhança com Benito Mussolini, que agia com a teatralidade que é inegável talento do povo itálico. Mas não se deve, lá como cá, confundir postura e arrogância, com a concretude do poder.

               Nesse campo, quer se queira ou não, há presenças mais marcantes e mais bem firmadas, em termos de realidades e potencialidades. Como o Império do Meio, por exemplo.

 

( Fontes: The New York Review, Putin's Kleptocracy, de Karen Dawisha, and The Man without a Face, de Masha Gessen ).

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