sábado, 2 de janeiro de 2016

A questão dos Refugiados



          Michael Ignatieff,   professor universitário e articulista em The New York Review, escreveu em novembro último - e teve publicado com destaque pela aludida revista  - um seminal artigo sobre 'os Refugiados e a Nova Guerra'.

          Essa 'nova guerra' a que ele se reporta é o conflito na Síria que se arrasta há cinco anos, com consideráveis prejuízos e, sobretudo, perdas humanas entre os infelizes habitantes sob o tirano Bashar al-Assad.

          Enquanto o Ocidente e, em especial, Barack Obama preferiu na época negar armamentos aos sírios sublevados, Bashar teve os prognósticos de sobrevida política estendidos por especiais cortesias do Irã xiita - que não quer perder o apoio alauíta no seu permanente conflito com o Islã sunita, do também xiita Hezbollah, que é agente de Teerã. Tampouco, escafedeu-se do quadro o autocrata russo Vladimir Putin. Escorraçado dos conciliábulos das grandes potências, gospodin Putin continuou com as suas oportunas transfusões de soro, aeronaves e armamento para o ameaçado ditador de Damasco. Este último é talvez a última vítima da primavera árabe, só que Sua Excelência constitui vida política demasiado preciosa para que os seus aliados ideológicos e de oportunidade permitam que siga a trilha de Kadafi ou Mubarak.  Nesse contexto, máximo líder de o que Obama definiu como poder regional, Putin  poderia ser catedrático da matéria "como fazer o que bem entendo" e tempos mais tarde retornar ao círculo dos grandes, como se nada houvera. De qualquer forma, na cena internacional, logrou deixar na sombra a invadida Ucrânia,  enquanto os expertos  ainda trabalham em determinar  a atual ideologia  (ou postura) do Senhor do Kremlin.

           O Inferno de Dante é demasiado ordenado e os seus demônios bastante cônscios da hierarquia celestial para que cotejar-se  possa- não se falará sequer em comparar-se - com o que o ditador Bashar vem aprontando contra os infelizes que se acham, seja ao alcance de seus caças, seja nas suas próprias - se porventura contestadas por outrem - terras.

            Esse cadinho, alimentado pelos combates entre al-Nusra (parente de al-Qaida) e o preposto do Hezbollah, Hassan Nasrallah, os ataques do chamado Califado do Exército Islâmico, sem esquecer as incursões do bom Bashar que, por meio de sua aviação (que sobrevive graças a Putin)  se diverte em explodir as casas dos infelizes que ainda não fugiram da Síria (além de recorrer a pestilências e a manter bem viva a praga da poliomielite - a qual é julgada útil se direcionada contra os malditos rebeldes).

            Ignatieff começa seu artigo com a seguinte apósita sinalização: "Estrategistas lhe dirão que é um erro lutar em batalha que seus inimigos desejam que lute. Você deve impor-lhes a sua estratégia, e não deixar que eles lhe imponham a deles."  Assim, na argumentação de Ignatieff, o ISIS quer convencer o mundo da indiferença do Ocidente para com o sofrimento dos muçulmanos. Nesses termos, o Ocidente deve demonstrar o oposto.  Por outro lado, enquanto o E.I. deseja arrastar mais fundo a Síria para esse inferno, terminar a conflagração na Síria deve ser a primeira prioridade da Administração Obama, neste seu último ano que ora se inicia.

             Já está em andamento o processo de estabelecer cessar-fogo entre o regime Assad e seus opositores. Nesse sentido os primeiros acordos são assinados entre o Secretário de Estado John Kerry e o Ministro do Exterior Russo, Sergei Lavrov. A guerra na Síria ainda consume papel de imprensa e resta determinar se aproveitam a gospodin Putin tais acordos, eis que o conflito sírio já devorou muitas resmas de papel nas salas do Palais des Nations em Genebra, sem maior significado prático para o andamento das hostilidades.  Chamar Putin de aliado semelha otimismo excessivo. O presidente russo está sobretudo interessado em servir-se da fraqueza do aliado e hoje dependente Bashar al-Assad. Debilidade essa que está sendo posta a uso intensivo pelo bom Putin, como se depreende dos novos espaços abertos para a marinha e a aeronáutica russa no território da atribulada Síria.

             Como frisa Michael Ignatieff,  para que se deslinde a situação favorável ao ISIS. o objetivo  deve ser estabelecer um cessar-fogo entre o regime Assad e as oposições, para que se possa levar à sua conclusão a luta contra o E.I., e assim criar condições reais para que os deslocados sírios possam voltar para casa.                 

            "A destruição do projeto do ISIS de estabelecer um califado não porá fim ao niilismo jihadista, mas será um golpe determinante para a erosão do atrativo ideológico do ISIS."

            Dessarte, como assinala Gilles Kepel, especialista francês no Islã, se o ISIS busca provocar uma guerra civil na França, então o Estado francês não deve apelar para táticas e medidas extremas que lhe farão perder a lealdade de seus cidadãos mais vulneráveis e suscetíveis. Essa oportuna recomendação tática não vale apenas para desmontar a demagogia da líder de extrema-direita Marine Le Pen. Respostas truculentas similares - como a preconizada por outro demagogo, este americano, Donald Trump, líder na corrida para a nomination do GOP para Presidente - devem ser evitadas, pois fazem o jogo do ISIS.

            Como frisa Ignatieff - o seu artigo antecede ao histrionismo de Trump - seria estratégia desastrosa as detenções policiais, sem determinação judicial, deportações em massa, fechamento de fronteiras, interrogatórios no modelo Bush-CIA. No seu entender, campanha bem-sucedida contra o extremismo islâmico deveria aprofundar e não minar o compromisso com liberdade, igualdade e fraternidade entre os cidadãos muçulmanos.

            Ignatieff em seu longo artigo fala da tibieza da reação da administração Obama, mesmo depois da criança de colo síria que apareceu afogada em praia turca. O presidente americano aumentou a quota de refugiados sírios para dez mil, e então para quinze mil, sem satisfazer a ninguém. Na mesma linha de retração,  o governo polonês anunciou que não aceitaria a quota de nove mil refugiados que lhe fora alocada pela União Européia.

             Na Europa, até o momento, a Chanceler Angela Merkel se tem distinguido da geral fraqueza e reticência da posição européia. Ao falar do recuo da Administração Obama, pela mudança nas pesquisas de opinião da postura estadunidense depois do ataque contra o Bataclã,  os Estados Unidos passou a tratar a crise de refugiados na Europa como se fora simplesmente questão da responsabilidade da Chanceler alemã.

             Esta debilidade do governo Obama "é um erro político, assim como um engano moral. Se falha em oferecer um apoio tangível para a Chanceler Merkel pela sua atitude de acolher os refugiados, os Estados Unidos enfraquecem Merkel internamente, e apressam a sua queda." E expressamente assinala:"Ao tomar tão poucos refugiados - cerca de 1854 desde 2012 - enquanto os seus aliados europeus se debatem diante desse dilúvio humanitário, os Estados Unidos estão reforçando o sentimento populista da direita européia em um viés anti-americano, anti-imigratório e populista." Não ajudando a Europa, o presidente Obama dá ensejo a que líderes europeus orientais, como o Primeiro Ministro Viktor Orban se deixe levar para a órbita da Rússia e "disseminar a repugnante ficção de V. Putin de uma Europa Cristã assediada por hordas muçulmanas."

            E as consequências da inação americana, não param aí.  A administração Obama há de partilhar nas condenações, se crescer o poder de demagogos anti-americanos como Marine Le Pen.  Se os americanos podem achar que a crise dos refugiados  não é questão de sua responsabilidade, os europeus começam a ter a impressão contrária, assim como os próprios refugiados.

            Nesse sentido, enfatiza M.Ignatieff  "a fuga humana da Síria é um plebiscito da massa acerca do fracasso  da  política americana e do Ocidente para a Oriente Próximo.  O povo sírio chegou à conclusão de que a guerra por-procuração (proxy war) dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e dos Estados do Golfo para derrubar Assad fracassou; que o território sírio será queimado até o litoral mediterrâneo antes que o ditador deixe o país; que a paz não virá antes que seus filhos cresçam; e mesmo que a paz venha não haverá nada a esperá-los em Homs, Kobani e Aleppo.

             E sublinha o articulista: "Os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de que o fosso com a Alemanha cresça ainda mais. Os alemães têm boas razões para acreditar que enquanto eles suportam as consequências do colapso da Síria,  são os Estados Unidos que tem responsabilidade pelas causas. Até mesmo o ex-Primeiro Ministro inglês Tony Blair admitiu que o surgimento do ISIS e a desintegração da Síria devem figurar entre as catastróficas consequências da invasão do Iraque pelos EUA em 2003.

             Ignatieff enfatiza, no final de seu artigo, os desafios com que se deparam a Alemanha, os Estados Unidos, a China e a Rússia, entre outros. "Merkel se arrisca a cair se ela não puder demonstrar que tem as fronteiras sob controle".  Assim, "ao invés de estabilizar as sociedades fracassadas (failing societies) a reação dos Estados Unidos  tem sido de tornar mais difícil que os refugiados possam vir a ser admitidos." Nesse sentido, em vista de sucessos anteriores, M.Ignatieff sinaliza que a Administração Obama deveria aceitar o apelo da UNHCR para receber 65 mil refugiados. Se o fluxo de refugiados é de 4.1 milhões, tal seria visto, segundo o autor, como incentivo para outros aliados - Austrália, Nova Zelândia, Brasil, Argentina  - e outros países de imigração de fazerem a sua parte.

              Na sua cruzada de obter mais participantes no círculo de países que venham a  contribuir para dar condições ao programa amplo de admissão de refugiados, dispara Ignatieff: " É tempo para que os EUA venham a expor o blefe da China e da Rússia, também membros permanentes do Conselho de Segurança, e relembrá-los  de que se desejam ser levados a sério como líderes mundiais, eles devem contribuir com o que é por eles devido".

               Ao final, Ignatieff esboça um cenário tétrico, dentro da premissa de que os refugiados colocam tanto um desafio à segurança nacional, quanto crise humanitária.  Assim, se a Europa fecha suas fronteiras, se os estados na linha de frente não podem mais lidar com a situação, os Estados Unidos e o Ocidente terão pela frente milhões de apátridas, que nunca esquecerão que lhes foi denegado o direito de ter direitos.

              Ignatieff considera esta a mais alta prioridade da Administração Obama. O ruído do entorno até o momento pende mais para o silêncio.

              De qualquer forma, o bom senso recomenda prudência e dado o drama enfrentado por essa gigantesca corrente, parece impor-se uma solução que pelo menos torne manejável a crise.  Fazer-se de desentendido não vai resolver a questão.

 

 

(Fontes: Os Refugiados & a Nova Guerra, de Michael Ignatieff - The New York Review, nr. 020, Dante, La Commedia - Inferno )  

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