terça-feira, 2 de novembro de 2010

Suprema Felicidade ?

O filme de Arnaldo Jabor principia com a comemoração pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Há o boneco do judas como Adolf Hitler e um princípio de carnaval, em rua de bairro carioca de classe média.
Começa então a girar o carrossel da vida do menino Paulinho. De sua cama ele ouve os gemidos de gozo da mãe, na cena de amor com o pai, que o cúmplice silêncio da noite transporta até seu quarto.
Na primeira parte, o colégio de padres, as largas batinas, o formalismo do beija-mão, a divagação em altos brados de um sacerdote (Ary Fontoura) que mexendo no pote da sexualidade e da repressão perde o controle da classe. Irrompe então o padre reitor, com a violência necessária para restabelecer o instável equilíbrio, e recolocar, por um instante, na garrafa o gênio do desafio da libido.
Aos poucos, a eterna felicidade do pai (Dan Stulbach) e da mãe Sofia se vai esgarçando diante dos olhos do menino. Como em filme de Ingmar Bergman ou de Fellini, o espetáculo se desenrola através de jovens retinas.
O pai é um aviador da Fab, mas a despeito do seu gosto pela profissão, não parece progredir. Admira os jatos de longe, obrigado a voar no que chama de teco-teco. A mulher, sonhadora, pensa compartilhar com o esposo a alegria de ter um emprego, para o qual se sente preparada. Mas o machismo de época lhe contraria a vocação, e a obriga a ficar em casa, ‘para cuidar do filho’.
Mesmeriza Paulinho a figura do avô, com quem ele tem a intimidade e o companheirismo que não encontra no pai. Com o seu terno de linho branco, Noel é um sambista da antiga cepa dos malandros cariocas. Homônimo do grande compositor da Vila, o personagem de Marco Nanini é a presença alegre e receptiva, que não só cativa o neto, mas também encarna o vetor daquela exaltada felicidade que prescinde da riqueza.
Se o diretor por vezes – a exemplo de suas crônicas – vai um pouco além dos invisíveis limites, como nas tomadas do casarão e do personagem de Maria Flor, com os seus ectoplasmas, contudo a narração escorreita e os quadros do bairro nos levam a quase esquecer tais deslizes.
Há personagens que saltam de velhos albuns, como o do comprador de papéis de Emiliano Queirós, o pipoqueiro – figura indispensável na cercania das escolas -, com a sua verve e garrulice, na hábil esgrima do duplo sentido. Também há a homenagem na pessoa do decrépito padre de Jorge Loredo, o que nos recorda de resto a quase sufocante presença clerical daqueles tempos.
No rito de formação do jovem Paulinho, há a visita a um bordel, na via única da iniciação sexual em sociedade repressiva. Deparamos nessa passagem duas fugas, a do amigo e a de Paulo, que terão motivações diversas. A do amigo talvez a alternativa de uma outra sexualidade, ainda não admitida. Na de Paulo, a simples reação a um ritual desprovido da sinuosa intimidade que faça redespertar o mistério da sensualidade.
Perseguidos pelos leões-de-chácara do randevu, vemos surgir Noel em outra faceta. O avô intervém com a economia de gestos, mas a firmeza indispensável para proteger o neto e seu amigo dos agentes cobradores.
Interessante esse personagem que abraça, com as imagens da sua juventude e das carretas repletas de cadáveres na epidemia da gripe espanhola, toda uma progressão da vivência pequeno-burguesa das pessoas que habitam aquele bairro carioca.
Por fim, a história avança até a mocidade de Paulinho. Breve visão de um dos bailes dos anos cinquenta, com os vestidos brancos das meninas-moças girando nos assoalhos encerados, nos braços de seus engravatados pares.
Acentuam-se os problemas mentais da mãe Sofia e as saídas noturnas do pai. Querendo desvendar o enigma paterno, Paulo o segue até um cabaré. Ali descobre a outra mulher, de que Sofia sempre suspeitara. Na verdade, essa mulher é apenas miragem, uma visão de strip-tease anos cinquenta, que o pai, como um velho babão, paga de bom grado.
Será através dessa jovem, de nome Marilyn, que o círculo se completa. O jovem Paulo substitui o pai na posição de espectador lúbrico.
No entanto, sua mocidade e a reprimida sexualidade da jovem levarão ao mútuo conhecimento, nas amuradas que devem ser da Urca, com a vista noturna do Rio de Janeiro à beira mar.
E não nos surpreenderá que Paulo e Marilyn reproduzam, no carrossel da existência, no banco de trás de um carro, o encontro de gemidos que é o símbolo imorredouro da vida.
Na confirmação da ronda, o filme poderia ter terminado aí. Sem embargo, Jabor julga preciso uma ulterior homenagem ao avô Noel, de que Marco Nanini se desincumbe com o estro e a leveza do velho sambista, a despedir-se da sua gente na gradual dispersão das imagens, em que luz e escuridão se entrelaçam.

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