As ditaduras podem mudar de plumagem, serem mais ou menos sofisticadas nos métodos repressivos e/ou disporem de maior ou menor poder suasório internacional. Se admitirmos a boa fé do eventual observador, todos os diversos espécimes desta obnóxia categoria são facilmente identificáveis, seja até pelo seu mais bronco habitante.
A própria sabedoria popular nos dá indicadores, na aparência corriqueiros, mas que apontam para juízos entranhados nesta ou naquela sociedade. Assim, em democracia de antanho, se lhe batessem à porta, pelas seis da manhã, o morador pensaria que certamente se tratava do leiteiro; já em tiranias, inevitável seria o temor de que os esbirros de alguma polícia especial viessem em busca dele.
Sabedores de que a imagem de tais regimes de força lhes é sobremodo negativa, os déspotas têm nos tempos que correm a preocupação do disfarce. Elaboradas fachadas são montadas para camuflar a realidade. As chamadas democracias adjetivadas – que remontam à irrupção do bolchevismo, mas que possuem a vida longa das máscaras - representam talvez o exemplo mais comum.
No entanto, as fantasias costumam mais revelar do que esconder dos que delas se servem. Não surpreende, por conseguinte, que o mesmo fenômeno ocorra entre os ditos regimes autoritários.
Tome-se, v.g., o caso da República Popular da China. Assistida pelo seu crescente poderio econômico e financeiro, a R.P.C. é useira e vezeira de valer-se de supostos compromissos com diversas liberdades – como a sua adesão à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos – para circular mais à vontade nas associações abertas para os países democráticos.
Tal contradição se mostra em cores gritantes no tratamento dispensado a Liu Xiaobo, condenado a onze anos de prisão pelo ‘crime’de ser um dos líderes de declaração pró-democracia de 2008. Nesse contexto, a concessão do Prêmio Nobel da Paz foi vista pela arrogância dos gerarcas chineses como provocação inadmissível. Fundados nas suas particulares razões, atenazam a pequena Noruega, por vício de origem, e a própria esposa de Liu, confinada em casa, depois de transmitir ao esposo a boa nova do Prêmio Nobel da Paz, quiçá para evitar maior contágio da sociedade.
O vírus da democracia, contudo, sói ser pernicioso para tais regimes. Por mais que se empenhem em erradicá-lo, reaparece sempre e com reprochável e inextinguível obstinação.
Tampouco as ditaduras refugam alegados novos instrumentos para dispor dos irritantes e incoercíveis impulsos de punhado de seus habitantes em questionar a injustiça em todas as suas formas. Chega-nos agora a notícia da internação psiquiátrica de Xu Lindong. Confinado por quatro anos no Hospital Psiquiátrico Zhumadian, o agricultor ali estava não por problemas mentais, mas por dirigir série de queixas contra o governo regional. As autoridades locais, irritadas com a insolência do labrego, o trancafiaram no hospital psiquiátrico, junto com a forjada assinatura do irmão.
O que foi infligido a Xu Lindong é tristemente previsível, dada a pouca originalidade que caracteriza o que antes, quiçá mais adequadamente, se denominava hospício.
Os ativistas de direitos humanos na China – uma vocação meritória, posto que perigosa – apontam para a curva ascendente de internações em instituições psiquiátricas. Os funcionários distritais se acham sob pressão para cortar eventuais distúrbios sociais. A saída para a dificuldade – já não lhes é tão fácil jogar no cárcere os ‘criadores de caso’ – seria o recurso ao confinamento psiquiátrico. A seu ver, a orientação teria a sua lógica, eis que não pode ser bom da cabeça quem se indispõe com as autoridades no velho Império do Meio.
O aparecimento do hospital psiquiátrico no arsenal da repressão não constitui, por outro lado, desenvolvimento novo. Quem terá acaso esquecido, na fase terminal da gerontocracia soviética, o emprego repetido dos velhos hospícios para tratar da grave incidência da dissensão na sociedade da URSS ? E que melhor remédio para curar tais insuportáveis indivíduos de suas alucinações democratizantes ?
A propósito, a mentira do definhamento do Partido Comunista na China vai progressivamente sendo exposta. Se se acreditava no passado que o PC se aferrava ao poder, como um núcleo que o ‘progresso’ e a abertura econômica chinesa estivessem lenta, mas inexoravelmente erodindo, a realidade semelha ser bastante diferente.
O controle e a presença do partido estão em toda parte. A própria abertura econômica, ela se realiza sob a tutela de representantes do PCC, com a preocupação perene de manter o controle de todas as atividades. Por quanto tempo isto será possível, é outra estória.
Por enquanto, as coisas estão mais para a turma de Li Peng[1] e o seu distante sucessor Hu Jintao,[2] do que para Zhao Ziyang[3]. Mas como o futuro a Deus pertence...
( Fonte: International Herald Tribune )
[1] Primeiro Ministro em 1989 (Praça de Tiananmen) e líder da corrente conservadora.
[2] Atual Presidente da República da China.
3 Secretário-Geral do Partido Comunista, deposto por seu apoio aos estudantes nas manifestações da Praça Tiananmen. Morreu em prisão domiciliar (janeiro de 2005). Por enquanto, nos padrões orwellianos, o seu nome não consta da história oficial da China comunista.
sábado, 13 de novembro de 2010
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Um comentário:
Artigo inspirado!Porque a idéia de governar para ser bem sucedida pressupõe controlar, controlar tudo?
Está comprovado que não é possível controlar a diversidade das mentes humanas.O vírus da democracia é algo impossível de irradicar.
No caso da China os lúcidos são classificados de loucos.
Tenho medo dos chineses quando se diz que vão invadir o Brasil.
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