sábado, 27 de novembro de 2010

Guerra Urbana (II)

Foi vencida a primeira fase do embate entre o Estado e o tráfico. A ocupação da Vila Cruzeiro, tornada possível pela ação do Bope, da P.M., e da Marinha de Guerra, com os seus blindados e fuzileiros, a sociedade, em todos os seus extratos, a saudou no entusiasmo dos aplausos às forças da ordem, em espontânea efusão que há muito não se via no Rio de Janeiro.
Das amplas tomadas da Rede Globo, talvez nada mais simbolize o ocorrido que a sucessão de imagens de bandidos do tráfico em desabaladas carreiras pelos caminhos de terra, em busca de refúgio no vizinho Complexo do Alemão.
Se a cena da debandada refletia o desmantelamento de suposta inexpugnável fortaleza, o quadro envolvido se nos afigura bem menos simples, se computarmos o que se pode divisar no acontecimento.
Como lembra Miriam Leitão em sua coluna, não é a primeira vez que favela terá sido investida e dominada. A visão de uns duzentos traficantes, jovens e armados, correndo do espectro da morte, rumo ao santuário do Alemão, provoca reações contrastantes. Por um lado, júbilo pela derrocada de falange do crime dito organizado. De outro, porém, incômodas dúvidas quanto às circunstâncias que lhes permitiram a fuga.
Assim a satisfação com a liberação da Vila Cruzeiro se mistura com certo desalento, porque paira sobre a vitória almejada a sensação da incompletude. Seria demais pedir que a numerosa escapada tivesse sido impossibilitada ? É indagação que a sociedade não tem condições de responder, malgrado não logre não pensar nesta possibilidade, com a redução de toda aquela horda.
Para ecoar um dito que se aplica a outras disciplinas, a aclamação generalizada deste sucesso se deve à convicção que desta vez será diferente. Com efeito, os triunfos pregressos na luta contra o tráfico e a bandidagem foram efêmeros, porque não se inseriam em programas estruturados de ação.
Desta vez, a despeito do inevitável ceticismo de alguns, há espaço para a esperança, na medida em que a tomada da Vila Cruzeiro não é batalha isolada. Se a operação não foi encetada com tal desígnio, o seu próprio êxito e a acolhida dispensada pela opinião pública forçou a mudança nos planos. Apesar das dificuldades envolvidas, máxime pela magnitude na respectiva implantação, assinale-se o correto reposicionamento do Governo do Estado e da Secretaria de Segurança, na revista decisão de enfrentar o desafio desta nova UPP. De nada serviria a vitória e o desbaratamento de um fortim do tráfico, se se repetisse o esquema policial de antes. Entrar e sair, no baldado voluntarismo das tarefas de Sísifo.
Por isso, todo o discurso da implantação da rede das novas UPPs, no contexto do combate contra o tráfico, sofreria pesado golpe, se tal magno esforço representasse na verdade mais uma investida contra os moinhos de vento. Muita algazarra e festejo, coberturas pletóricas na tevê, para depois tudo acabar como naquela marchinha de carnaval ?
Que as autoridades competentes não se façam, portanto, ilusões. O calendário das UPPs carece de ser reformulado, porque a tomada da Vila Cruzeiro é realidade demasiado importante para ser revertida.
Quanto à ação do Exército, no seu cerco ao Complexo do Alemão, pode implicar não em ação passageira, similar às operações anteriores ao paradigma da UPP. Se possibilitar a detenção de elementos daquele bando de trânsfugas já terá contribuído para minorar o descoroçoamento que muitos experimentaram ao contemplar a reedição de um movimento tão eterno quanto os conflitos, no tropel atabalhoado de indivíduos que buscam salvação. E na debandada reaparece a solidão do perdedor. No amontoado de criaturas, na confusa correria, se mostra apenas a desordem e o desespero de quem sabe que, naquele momento, o grupo nada lhe pode oferecer. Cada um só terá a acompanhá-lo a súplica de uma crença, seja perene ou reacesa pela súbita, insuportável incerteza na respectiva existência.

( Fonte: O Globo)

Nenhum comentário: