quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Estado Bandido

Haverá outros estados bandidos (rogue states), mas a Coreia do Norte pode ser reputada o exemplo por excelência dessa categoria estatal na comunidade das nações.
Arnold Toynbee, na sua monumental obra ‘Um Estudo de História’, considerara o povo judeu, representado pelo estado de Israel, criado por Resolução das Nações Unidas em 1947, como um fóssil de civilização pregressa. Tal identificação causou na época não pouca celeuma. Em tal contexto, permito-me, no entanto, duvidar que classificação internacional da República Popular Democrática da Coreia como ‘estado bandido’ fosse provocar contestações generalizadas, se computarmos as usuais, minguadas e previsíveis exceções.
A Coreia do Norte é uma decorrência do último conflito mundial. Ao apagar das luzes da conflagração, Joseph Stalin declarou guerra ao Império do Japão. Enquanto perduraram as hostilidades com a Alemanha nazista, tanto Moscou quanto Tóquio cuidaram de não abrir mais uma frente. Derrotado o terceiro Reich, o camarada Stalin, de forma oportunista, resolveu estender as operações ao território japonês, que naquela oportunidade, militarmente já batido, se retirava em toda a ampla extensão em que a loucura imperialista da camarilha do gabinete Hideki Tojo lançara o Império do Sol Nascente.
Essa tardia investida das divisões soviéticas teria duas consequências que até hoje perduram: Moscou, como se já não tivesse terras bastante, se apossou das ilhas Kurilas. A par disso, invadiu a península da Coreia – que então os japoneses ocupavam – e forçou a divisão dessa nação em dois estados, a Coreia do Norte, integrada na área de influência comunista, e a do Sul, ligada politicamente ao Ocidente, por meio de sua ocupação estadunidense.
Tal partilha entre os dois impérios constituía a ‘solução’, de estampo salomônico, que foi igualmente aplicada a outras terras, como a vencida Alemanha, e, por período mais breve, para os restos da antiga Austria (que perdera a condição formal de país soberano ao ser anexada pelo seu co-nacional Adolf Hitler em 1938).
De qualquer forma, de todos os acordos ad hoc das potências aliadas, o único que sobrevive é o da divisão das Coreias. Enquanto a República da Coreia registra uma das maiores progressões econômicas, a sua irmã do Norte subsiste em condições precárias para a sua população. Esse fóssil da guerra fria é um país deveras peculiar. Sob certos aspectos, reedita a velha Prússia, na medida em que é dominado por uma burocracia militar. Essa comparação, contudo, deve ser contextualizada, eis que não é meu propósito ofender à nobreza junker, que tinha a sabedoria suficiente de dirigir a sociedade prussiana sem levar as demais classes à miséria e inanição.
Stalin comissionara Kim Il Sung para organizar a nova república democrática socialista no extremo Oriente. Após a morte de Kim (1994) acentuou-se a inserção como hiper-estrutura da dinastia Kim, na formação do Estado castrense da Coreia do Norte. O seu filho e sucessor, Kim Jong-il representou o segundo elo nesse esquema de poder, para o qual se prepara, como terceiro dinasta, Kim Jong-un, caçula do atual Líder. A suposta legitimidade da sucessão hereditária em potestade comunista também fragiliza a sua eventual continuidade, eis que na flamante burocracia militar norte-coreana a experiência nos ensina que não se afigura lícito descontar a crescente e humana probabilidade de aparecimento de candidato a empolgar todo o poder e não apenas parte dele.
Mas esta é outra estória, de que o resto do mundo, em data imprecisada, tomará conhecimento a posteriori.
Nos últimos tempos, ações militares violentas ainda que tópicas têm marcado a atuação internacional da Coreia do Norte. Depois do recente afundamento – por um torpedo – de nave militar da Coreia do Sul, de novo o governo de Kim Jong-il recorre a meios violentos nas relações com a Coreia do Sul (em termos internacionais, tem sido o único súcubo de Piongiang).
A Coreia do Norte deflagrou bombardeio contra a Ilha Yeonpieong (ocupada pela Coreia do Sul e contestada pela do Norte). Em resultado, matou dois soldados sul-coreanos e feriu outros quinze, além de dois civis. Dada a intensidade do ataque e da reação da artilharia sul-coreana, o Presidente Lee Myung-bak determinou que se atingiria a base missilística norte-coreana se o Norte desse qualquer “indicação de ulterior provocação”.
Diante da ação norte-coreana, cabe perguntar se foi provocada ou não. Como em tudo que concerne às conturbadas relações dos dois países – mantidos desde o fim da guerra da Coreia sob armistício simbolizado pela linha divisória do paralelo 38 – a argumentação não tem a insofismável clareza. A parte sul-coreana reconhece que as suas baterias deram os primeiros tiros, posto que, se acreditarmos na boa fé de seus militares, as explosões não se verificaram em território norte-coreano.
Nesse quadro, fica difícil não perguntar por qual razão a Coreia do Sul iniciou o tiroteio – mesmo que não alcançasse o chão norte-coreano, tendo a fortiori em mente a notória agressividade das forças da Coreia do Norte. Dessarte, se atiram ainda que não provocados, qual o motivo de fornecer-lhes o pretexto de responder à saraivada de obuses ?
Isolada internacionalmente, a Coreia do Norte conta apenas com o apoio da República Popular da China[1]. Como virtual grande potência, a China não pode abandonar à própria sorte o regime de Piongiang, por mais onerosa que tal assistência possa tornar-se. Esperada a reação de Pequim diante do último incidente, a sua única declaração oficial não deverá de certo surpreender, pois se cinge a recomendar contenção às duas partes em litígio.
Outro complicador no problema do comportamento errático norte-coreano, é que Piongiang, apesar de sua pobreza, não só dispõe de mísseis com autonomia para alcançar território japonês, mas também possui artefato nuclear. Malgrado progressos iniciais e suposta boa vontade do regime norte-coreano, não obtiveram êxito as intermináveis negociações no seio do grupo hexapartite que discutira meios e modos de viabilizar-lhe o desarmamento nuclear.
Assim, o regime dos Kim costuma alternar alegadas predisposições para o diálogo e a composição, com súbitos enrijecimentos. Em país tão fechado quanto a República Popular Democrática da Coreia, as motivações políticas de determinadas atitudes serão sempre um exercício de quase alvitre. Ao lado da opacidade norte-coreana, a antiga kremlinologia parece fundar-se em análises com maior conteúdo empírico. De qualquer forma, o recurso a métodos truculentos e a respostas sem qualquer proporção com a sua alegada causa muita vez tem o desígnio de mascarar crises internas. No seu auto-isolamento, Piongiang é um regime que se crê ameaçado. A sua maneira de exorcizar tais desafios, se se assemelha, infelizmente tende a ir além do rufar de tambores. Contra o inimigo fraternal, no caso a Coreia do Sul, este estranho esbravejar – onde os canhões chegam a participar do coro – não será desarrazoado lembrar , que o efeito demonstração do desenvolvimento do Sul nada mais é senão o cruel espelho do fracasso sistêmico do grande paraíso socialista do Norte.

( Fonte: International Herald Tribune )

[1] O apoio da Federação Russa é muito mais discreto, sendo mais uma consequência do antigo vínculo estabelecido pela URSS.

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