terça-feira, 23 de novembro de 2010

As UPPs e os Arrastões

Em uma série de ações criminosas – dez carros incendiados desde o fim de semana – os bandidos escolheram a Zona Sul para expressar o próprio desprazer do tráfico com a implantação das UPPs.
Em ataques que se dirigiam a áreas importantes em termos de circulação, e em que o objetivo privilegiava menos o roubo do que a impressão a ser produzida na sociedade, esta cadeia de arrastões orquestrados pelo crime organizado só pode ser interpretada como reação em escala mais violenta à política das UPPs.
Desperta estranheza que o Estado tenha demorado tanto para agir como representante que é da sociedade civil ameaçada pelos chefões do tráfico. Com efeito, só depois de uma dezena de carros queimados, de cidadãos roubados de seus pertences, e submetidos ao extremo desconforto de vir os seus projetos brutalmente interrompidos, é que o Secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, vem anunciar que a polícia fará operações em favelas, em busca dos autores das tropelias, a par de reforçar o patrulhamento em áreas mais vulneráveis.
Para quem não vive no Rio de Janeiro, convém precisar que muitas dessas ‘áreas mais vulneráveis’ se tratam na verdade de vias de grande circulação, como a Linha Vermelha, pela qual os veículos acedem ao principal aeroporto da cidade, as cidades serranas (Petrópolis e Teresópolis) e muitos outros destinos citadinos.
Por que, em verdade, os arrastões deste fim de semana, já tinha sido precedidos por ação análoga, na semana anterior, sem que os órgãos de segurança do Estado houvessem acenado qualquer medida preventiva ou punitiva. Na própria segunda-feira, as depredações continuaram, com incêndio do décimo veículo, além de mais assaltos.
Dentre as iniciativas de melhor recepção da administração Cabral está sem dúvida a implantação das UPPs. Durante a última campanha eleitoral, o candidato Fernando Gabeira procurou motivar o eleitorado mostrando a real situação da rede hospitalar estadual. Também o péssimo estado da educação no Rio de Janeiro – a despeito de cidade maravilhosa e que tais, o Rio é o penúltimo em aproveitamento escolar no Brasil – foi mencionado por Gabeira e outros candidatos ao governo do Estado.
Não é aqui o lugar para discutir-se acerca da lamentável incapacidade de Gabeira de vencer a enorme diferença nos percentuais de aprovação de Sérgio Cabral para os demais concorrentes.
Alguns candidatos nanicos tentaram desmistificar o fenômeno das UPPs, mas não lograram mudar a imagem da criação do governador. A UPP, iniciada no Morro de Santa Marta, é um inegável sucesso, na medida em que afastou o tráfico de diversas favelas. O êxito foi tal que a sua aliada, Dilma Rousseff, se apressou em prometer patrocinar outras UPPs por esses brasís afora.
Há, no entanto, um óbvio senão na textura socio-política da UPP. Antes de que venha a ser implantada mais uma congênere – e já há muitas, a maioria na Zona Sul -, os senhores do tráfico são informados, por noticiário, de forma a que se evitem confrontos, e a morte de inocentes.
Nem sempre tais saídas de cena são pacíficas, embora o tráfico haja preferido via de regra não entrar em confronto direto com o Bope[1] e os demais efetivos da P.M. Entretanto, muitos fios ficam desatados com a implantação de mais uma Unidade de Polícia Pacificadora. Não é incomum que cresçam outras modalidades delituosas após a expulsão do tráfico de uma área determinada, com o aumento de assaltos, sequestros relâmpagos, arrastões, etc.
Perdida a sua base territorial, a transferência para outra área nem sempre é possível ou rentável. Desprovido de seu instrumento habitual, não é preciso muita argúcia para imaginar que, dado o seu vezo criminoso, a atividade seguinte não será com toda probabilidade suscetível de inserir-se na faixa da legalidade.
Na Antiguidade Clássica, muita vez a expansão das cidades-estado gregas se fazia às expensas das vizinhas menos bem armadas. Cito esse exemplo porque, mutatis mutandis, as expulsões dos traficantes e clientela das favelas pela Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro guardam traços reminiscentes daquelas esquecidas contendas. As forças da cidade agressora – v.g., Esparta – constrangiam os habitantes de localidades menores a se levantarem e buscarem outros sítios mais afastados, aonde tivessem a presunção de não serem mais atacados.
No formato atual, a administração Cabral pede a área destinada a mais uma UPP e dá aos traficantes a possibilidade de levantarem acampamento, à cata de novas paragens. Não se fala, por enquanto, em prisão desses elementos antissociais. O próprio paradigma constitutivo da UPP não pressupõe que ela seja estabelecida, depois que o estamento dirigente anterior seja neutralizado.
Ora, até mesmo o sucesso dessa fórmula de reverter a histórica retirada do estado do terreno da favela – com as consequências bem conhecidas – tenderá a produzir, das vísceras de sua aceitação, um desafio para o governo estadual, na medida em que se fomentará a inchação de uma comunidade à margem da sociedade. É de esperar-se que o governo Sérgio Cabral, ou seus sucessores, na hipótese de que desejem manter a construção política da UPP já tenham meio preparada a resposta para tal situação, eis que a solução de fazer ‘levantar’ grupos não-absorvíveis poderia ser viável na Antiguidade Clássica, mas não semelha que tal fórmula seja possível nos dias que correm.

( Fonte: O Globo )

[1] A fama do Bope, esse batalhão de elite da PM carioca, não mais se circunscreve ao Rio de Janeiro e adjacências, sobretudo depois das duas películas Tropa de Elite.

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