quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Guerra Urbana

Infelizmente, devo voltar a esse tema. No momento, o Rio de Janeiro assiste a distúrbios graves. Depois de um período de negação, ou de apego à esperança de que se tratasse de um surto passageiro, como os violentos temporais do verão carioca, o Secretário de Segurança José Mariano Beltrame e todos os homens da Polícia Militar, inclusive o festejado Bope, tiveram de descer as ruas e subir os montes, para tentar prender os responsáveis e neutralizar as incursões de magotes de foras-da-lei contra trabalhadores, carros, vans e ônibus.
O governador Sérgio Cabral e sua administração recebeu, como todo governante da antiga Cidade Maravilhosa, um legado maldito, costurado pela prevaricação de muitos, irresponsável demagogia, e um quadro pluridecenal, composto pela negligência e corrupção, decorrente do crescimento do chamado crime organizado e da porosidade dos controles em nossas fronteiras.
Malgrado as promessas eleitorais – e as tivemos, com suas doses maciças de cinico menosprezo pela inteligência do cidadão, a mancheias durante os comícios de outubro – a segurança citadina, e não só nas noites do retorno ao lar e no ermo das madrugadas – se transformou em sinistro deboche de incêndios de viaturas e de outras tropelias, impostas por facínoras à solta em logradouros despovoados da gente uniformizada que é suposta cuidar da ordem pública, essa criatura enjeitada, que o cidadão morigerado não costuma sentir à sua volta.
Como se as hordas de meliantes que vieram para o asfalto houvessem pisado em secreto alarma, os meios de comunicação nos reportam a algazarra de jornais europeus quanto à inquietante insegurança da terra da Copa do Mundo (2014) e da Olimpíada (2016). Se há um ingrediente de Schadenfreude[1] no noticiário, o perpassa igualmente a recôndita veleidade de, por nosso desgoverno, anular a votação em que as suas metrópoles foram vencidas pela megalópole do hemisfério sul.
Ironicamente, se Sérgio Cabral não está isento de falhas – e os seus adversários, em diversos debates e pela propaganda gratúita buscaram explicitá-las – será na segurança que a sua atuação reúne os traços mais favoráveis. Nesse particular, o carro-chefe da Administração Cabral se acha nas Unidades de Polícia Pacificadoras, as celebradas UPPs, a ponto de já terem sido objeto de imitação na propaganda da candidata oficialista à presidência.
De toda maneira, já me ocupei em suficiente detalhe no blog de terça-feira, 23, As UPPs e os Arrastões, do caráter incompleto deste instrumento na luta pela reimplantação do poder público nas favelas do Rio e o seu processo de comer pelas bordas a área sob o domínio dos traficantes. Basta, por conseguinte, retomar o fio para demonstrar que por visar apenas à prática do tráfico em determinados locais – e evitar, sempre que possível, o confronto direto com os esquemas ilegais desalojados – será forçoso reconhecer que a reação dos prejudicados poderia tardar, por conveniência de seus cabecilhas, mas que, mais dia menos dia, esses afastados tratariam de reagir, pela única forma que conhecem, que é a da violência.
Nós latinos temos um certo fraco pelas terminologias. A crer pelo tom grandiloquente de algumas, pode-se até pensar que as utilizamos como maneira vicária de resolver complexos problemas. Veja-se, e.g., os decantados presídios de segurança máxima. Como explicar a constrangedora suspeita de que a ordem para declanchar esta operação das facções unidas do tráfico haja saído dos cabeças dos traficantes, encarcerados no presidio de segurança máxima de Catanduva, no Paraná ?
Se até da sinistra prisão de Alcatraz, um punhado de presos haja logrado escapar, não nos é lícito deixarmo-nos embalar pela crença na tecnologia e na sofisticação das barreiras, para que não admitamos a possibilidade de que os empecilhos não possam ser contornados. Recordo-me, a propósito, da frase de colega meu que tornou írrita a argumentação de um delegado sul-americano a respeito de regra draconiana brasileira: no subdesenvolvimento, não há segurança. Em nossos quatro presídios de segurança máxima – e o de Campo Grande (MS) semelha ser o de melhor imagem – o progresso da técnica e das obras civis só produzirá os efeitos colimados por seus autores se conjugados com o fator humano.
Mas voltemos ao drama carioca. Agora os incêndios de veículos – pela maior presença da força pública nas Vias Amarela e Vermelha, e na Zona Sul - se concentraram na Zona Oeste. Somente na noite de 24/24 de novembro, trinta veículos foram queimados: dezoito carros de passeio, duas vans, dois caminhões, e oito ônibus. Os coletivos foram atacados de manhãzinha e ao cair da noite. Em certos casos, o nervosismo dos bandidos afetou a incolumidade dos passageiros, dada a inexistência de prazo para que os usuários abandonassem as viaturas.
Na Zona Sul, muita preocupação cercou a duas caixas de madeira. Uma delas apareceu na Praça N.S. da Paz, no centro de Ipanema, e no primeiro momentos, antes que se dessem conta do perigo, foi cercada pela curiosidade dos transeuntes. Tinha as dimensões avantajadas de uma mala de porão de navio, obra artesanal de madeira cor marfim, com fechadura respeitável à distância, e aspecto de obra bem cuidada. Outra congênere também apareceria no mesmo bairro. O grupamento especializado da P.M. – nossa versão do Hurt Locker[2], de Hollywood – teve de explodir uma delas. Mais tarde, a verdade entraria em cena: tratava-se de pacífica jogada publicitária de alguma agência, que, pelo visto, não soubera escolher o dia e a hora da operação...
As forças de segurança do Estado, nas ruas em seu número pleno, com as licenças revogadas e suspensos os desvios para atividade burocrática, entraram em 28 favelas, o que resultou na morte de dezoito pessoas e 41 detidos. A par do auxílio da Polícia Rodoviária Federal, o governador Cabral pediu apoio logístico à Marinha, que fornecerá blindados e equipamentos.
O escopo será dominar a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão. São enormes favelas em área próxima à avenida Brasil, para onde migraram os bandidos expulsos das comunidades ocupadas pelas UPPs. São justamente os traficantes que foram forçados a levantar acampamento dos antigos núcleos do tráfico no morro de Dona Marta (Botafogo), nas comunidades da Cidade de Deus, morro do Borel, Salgueiro e Formiga (Tijuca), favelas do morro da Babilônia e Chapéu Mangueira (Leme ), Pavão-Pavãozinho e Ladeira dos Tabajaras e Morro dos Cabritos, e por fim Morro da Providência (Centro).
Como assinalei acima, o objetivo do Bope e dos efetivos da PM será investir o bunker do tráfico na Penha, em que se teriam instalado os traficantes expulsos de suas bases nos morros ora ocupados pelas UPPs acima citadas.
Esta ofensiva, que se prevê para a corrente jornada, não promete ser fácil. O próprio famoso Bope teve de recuar, diante da intensidade da artilharia. O carro blindado que lhe servia de apoio teve um princípio de incêndio, provocado por dois artefatos de fabrico caseiro, além de dois pneus furados. A retirada do veículo, dada a falta de visibilidade, se tornou imperativa, e no dizer de um dos elementos do batalhão especial, só foi possível pela habilidade do motorista.

( Fontes: O Globo e Folha de S. Paulo )

[1] Alegria com a desgraça (alheia) .
[2] Hurt Locker, filme de Kathryn Bigelow, vencedor do Oscar de melhor filme em 2009.

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