A Renúncia de Joaquim Barbosa
É difícil determinar se a
prematura saída do Ministro Joaquim Barbosa do Supremo Tribunal Federal terá
sido parcialmente causada pelas ameaças – inclusive de morte – por ele
recebidas.
Mensagens pelas chamadas redes sociais
– que nesse caso poderiam ser denominadas de veículos antissociais – teriam
igualmente revestido caráter agressivo. Há indicação de tentativa de contato
digamos inamistoso à saída de um bar ou restaurante. E, por fim, as ditas
ameaças de morte pelo telefone.
Conhecendo o personagem pela televisão
e a imprensa, e sem qualquer contato de ordem social, seria difícil formular um
juízo mais determinado sobre a possibilidade ou não de que tais atitudes tenham
participado do conjunto de causas que o motivaram a abreviar sua permanência no
Supremo.
Quero crer, contudo, que não. Quem leu
o meu blog de trinta do corrente, compreenderá mais facilmente essa minha
interpretação. De certa forma, Joaquim Barbosa terá entendido que a sua missão
estava concluída. Logrou o que nunca antes havia sido conseguido no Brasil –
mandar para a cadeia quem cometeu crimes que o tornavam candidato à condição de
réu e condenado. Não o fez sozinho, decerto. Contou com a colaboração de
ministros igualmente corajosos e dispostos a aplicar a lei, doa a quem doer.
Isso nunca fora feito em nossa terra, e que Joaquim Barbosa, como relator do
processo da Ação Penal 470, tenha estudado a fundo todos os seus maços, com
sessenta mil páginas. As razões de seu êxito, mestre Joaquim Falcão as
descreveu como ninguém: “Sua estratégia
jurídica no mensalão a todos espantou. Como toda boa estratégia, que nunca se
anuncia, só ficou evidente depois. Manteve o julgamento no Supremo. Dividiu os
acusados em grupos. Pareceu conhecer as sessenta mil páginas melhor do que seus
colegas. Capitalizou essa vantagem. Inovou nas doutrinas. Opôs a visão do todo,
aos advogados de cada réu. Focou no colocar na prisão, dispensou as condenações
sem pena. Evitou prescrições. Venceu.”
Quem conseguiu tal vitória, os
intentos dos que integram o grupelho dos eternos juízes próximos do poder –
qualquer que seja ele – não macularão a sua vitória, com a porta entreaberta
pela ressuscitação dos embargos infringentes, por um longuíssimo voto de
minerva do atual decano do STF, Celso de Mello, que no afã de tudo resguardar
em termos de recursos de defesa não quis ver que abria as portas para que um
mesmo tribunal conhecesse por segunda vez uma questão já decidida. Aplicando ao
Supremo jurisprudência só aplicável entre tribunais de instâncias diversas,
abriu largas as portas para a reapreciação da causa, o que por certo não terá
sido a sua intenção.
Com a consciência do dever cumprido,
Joaquim Barbosa se aposenta do STF. O seu papel na vida pública, no meu modesto
entender, longe está de havê-lo concluído. Outras praias o esperam e não serei
eu, como mero observador, que aqui estará a aponta-las.
Mas tais considerações me servem
para acrescentar o que penso acerca das ditas ‘ameaças’. Esse tipo de atuação sempre existiu, mas tenho para mim que
o entorno de certas militâncias muito terá contribuído para que tais métodos
fascistóides sejam empregados com tal desenvoltura e cinismo. Há um ar de
impunidade em tais indivíduos que não arrefecem caminho a ponto de chegar a
métodos e práticas que estão previstas no Código Penal.
Os órgãos competentes deveriam
tomar providências para que tais práticas não se repitam. E embora não creia
que o Presidente Joaquim Barbosa tenha interesse pessoal na individuação dos eventuais
suspeitos, para que no Brasil a intimidação não se transforme em recurso alternativo
para interferir fora das vias legais com procedimentos e as medidas competentes
dos órgãos judiciais, não creio que o atual Presidente do Supremo se oporia à
consecução de o que, por força de lei, deve ser feito.
Presidente Dilma Roussef e o Itamaraty
Lamento ter de escrever as linhas abaixo. Sem embargo,
os meus cinquenta anos de serviço diplomático na Casa de Rio Branco me obrigam.
Li estarrecido a reportagem do
jornal “Folha de S.Paulo”, de autoria de Patrícia Campos Mello, hoje publicada,
fls. A16 e 18, seção Mundo.
Ainda voltando aos meus dez
lustros de Itamaraty, tive oportunidade de servir durante a minha carreira a
vinte ministros titulares das Relações Exteriores, e nunca me deparei com o infortúnio de que a instituição, nos diversos degraus do serviço diplomático, sofresse de problema como o
presente.
A situação a que o MRE está
sendo submetido não tem qualquer antecedente na sua longa trajetória. Nem o
regime militar ousara agir de forma similar.
Os nossos generais-presidentes, oriundos de carreira de Estado, souberam
respeitar a tradição, a competência e os bons serviços da Casa, seja no
Império, seja na República. Por ater-se à diplomacia de Estado, e não de
partido – como hoje ocorre amiúde - o
Ministério dos Negócios Estrangeiros e, posteriormente o Ministério das
Relações Exteriores sempre foi respeitado pelos estados-irmãos
latino-americanos, assim como pelas demais potências, malgrado os poderes
respectivos e as eventuais liberdades então permitidas a muitas grandes potências.
Se estivemos livres da chamada diplomacia das canhoneiras e similares,
devemos tanto à exação do próprio Estado imperial e mais tarde republicano,
quanto a serviços como o de Duarte da
Ponte Ribeiro, no Império, e do Barão
do Rio Branco, surgindo no tardo império e pontificando na República, até a
sua morte às 9:10hs da manhã de dez de fevereiro de 1912.
O nosso eterno Patrono junta-se à magna figura do
grande Precursor, Alexandre de Gusmão, moço de escrivaninha d’el rei D. João V, que apesar da aparente relativa modéstia da posição, foi o
negociador do Tratado de Madri que deu a conformação do Brasil moderno. Tanto
com Rio Branco, nas suas vitórias nos laudos arbitrais, quanto com Alexandre de
Gusmão, não houve lugar para o improviso. Tudo se baseou em estudos e medidas
precursoras, que lançaram as bases das realizações posteriores (entre essas, e
através dos séculos, colônia, reino, império e republica se deram as mãos, por
meio dos padres matemáticos e os mapas segredos de estado, os bandeirantes e as
entradas, o minucioso trabalho cartográfico, o estudo dos maços e da tradição
diplomática de estado).
Que me perdoem se me lanço ao
passado para contrapô-lo ao presente. O que distinguia a diplomacia brasileira
de tantas outras de países vizinhos, era o apego ao Estado e não ao ir-e-vir
das oportunidades de partido, que acometiam a tantos serviços diplomáticos dos
países vizinhos. Daí a eventual falta de coerência e de linha segura, que
atendesse não a conveniências de partido – sempre contingentes e mutáveis – mas
aos interesses do Estado do Brasil, conforme constante do trabalho de
chancelaria de tantos servidores, com seu conhecimento e respeito às contribuições
de seus maiores. Não foi ignorando a labuta dos antecessores que Rio Branco
construiu os êxitos que tanto aproveitaram à Nação brasileira. No século XVIII,
o santista Alexandre de Gusmão, o nosso
grande Precursor, soube valer-se do apoio real para apontar aos pósteros um
caminho similar, em que a inovação poderia existir, mas sempre baseada nos
antecedentes e no trabalho dos anônimos agentes do Reino de Portugal, que por
ser pequeno entre as potências – como já o sentira el-Rei D. João III –
tinha de valer-se do conhecimento dos velhos mapas, da argúcia e da adequada
utilização dos parcos recursos para levar avante uma obra de séculos, que tanto
pesava sobre os ombros da pequena Lusitânia.
Mas viremos a página para defrontar-nos com
a realidade hodierna. Como tenho afirmado mais de uma vez, Dilma Rousseff não
sabe que a obra de grande presidente – como foram Getúlio Vargas e Juscelino
Kubitschek - não é empresa solitária,
construída sem atenção à realidade circundante, e sobremodo com desrespeito às
instâncias de estado que abraçam a sabedoria técnica. Um Chefe de Estado no
regime presidencialista conhece a arte
de governar, com todos os seus matizes. Não vou adentrar aqui em matérias de
política interna, embora o seu menosprezo ou inexperiência não se coadunem com
a circunstância de quem seja o Primeiro Servidor do Estado. Nem Getúlio nem JK
alcançariam o que fizeram menosprezando tais campos.
Porque quem despacha no Palácio do
Planalto, como seus grandes antecessores o fizeram no do Catete – JK foi o
primeiro em Brasília – deve ter a noção de que dispõe de um Estado a servi-lo.
Não me refiro ao seu aparelhamento com gente de similar filiação partidária,
mas sim funcionários com provada
experiência e conhecimento das respectivas atribuições. Tal ciência não é
arma, nem maneira de ganhar as graças da máxima autoridade, mas de ajudá-la e
assessorá-la, no que couber, nunca com intuito de atender a desejos do(a) Chefe
de Estado, mas sim ao interesse do Brasil, que é o que deve igualmente mover a
atuação presidencial.
Creio relevantes tais premissas,
porque, com todo respeito, Senhora Presidente, não dá a impressão no caso de
havê-las tido tão presentes como devam
ser.
No caso em tela, vejo apenas um
diplomata, Eduardo Saboia, que cumpriu o seu dever, mostrando conhecer a
Convenção de Caracas sobre Asilo Diplomático, de 28 de março de 1954.
Bastaria o seu conhecimento para
evitar todas as impropriedades que, com a devida vênia, devo colocar à sua
porta, Senhora Presidente.
É sobejamente claro que a concessão
do asilo é privilégio do Estado asilante, devendo tão só comunicar ao Estado
territorial que decidiu abrigar dentro de sua missão diplomática, que goza de
exterritorialidade, um nacional desse estado por julgá-lo em perigo. O Direito
de Asilo, cujos institutos precursores estão nos templos da antiga Grécia,
sempre foi considerado sagrado, e aquelas potestades e até heróis que o
transgrediram foram submetidos ao opróbio da sociedade de então. Se mais se
entranhou em tempos modernos na América Latina, pelas peripécias do Continente,
a sua serventia se estende a outros continentes, como o está a provar o longo
asilo concedido ao Cardeal Jozef
Mindszenty (1956-1971) pela Legação estadunidense em Budapeste, na então
Hungria comunista.
Também o conhecimento da Convenção bastaria para colocar nos devidos
limites as ingerências de Evo Morales.
Por que falharam no seu dever de
informá-la das realidades do direito do asilo do diplomático os altos
funcionários do Itamaraty, a começar pelo então Ministro Antonio Patriota ?
Não será porque a Senhora os habituou a conformar-se não com a praxe e com
o direito, mas sim com que a Senhora quer?
Agindo nesse patamar a Presidente
do Brasil se deixou equiparar à visão acanhada, mas matreira de Evo Morales.
Não devemos erigir a ignorância militante como o nosso Norte. Pelo simples
estudo dos maços e dos documentos, que é incumbência do Itamaraty, alguns fatos
irretorquíveis lhe poderiam ser levados ao devido conhecimento, com todo o
respeito à Vossa Excelência, mas também aos deveres do ofício, que nos
distinguem de repartições em que o interesse pessoal ou de partido prevaleça, as
seguintes circunstâncias:
(a) Além de ser direito privativo do Estado asilante, a
condição da residência do asilado é
competência exclusiva desse Estado, que não deve – e nem pode – submeter-se a
ingerências do Estado territorial quanto a eventuais restrições nos direitos do
asilado (com isso se cortaria de saída tantas intromissões descabidas de Evo
Morales. A Senhora no caso desconheceu a Convenção de Caracas, mas também o
ditado ‘que assombração sabe para quem aparece’);
(b)
O Chefe de Estado – e me releve a
circunstância de ter de lembrar-lhe – não carece de descer a pormenores, nem a
discutir com autoridade estrangeira as condições do asilo. Elas já estão
determinadas por um tratado internacional. Diante da ignorância, proposital ou
não, de seu homólogo boliviano, o que caberia era dizer-lhe que como estava
cumprindo um direito latino-americano e uma Convenção, agradeceria que fizesse o
mesmo. Quaisquer outros detalhes, caberia remetê-los aos funcionários técnicos,
que são competentes na matéria;
(c)Se
o Senhor Evo Morales não sabe o que é diplomacia, nem os direitos dos Ministros
do Estado, nem as aeronaves que os transportam, já é tempo de informá-lo e de
condicioná-lo a cumprir com os procedimentos usuais nesse caso. Esse
desrespeito de Evo Morales às normas internacionais explicam e muito os
desconfortos a que foi recente submetido, por falta de autorização de pouso de
seu avião presidencial, provocada, ao parecer, por uma observação imprudente
sobre um outro asilado internacional.
Se não é minha intenção delongar-me
nessa matéria, creio, s.m.j., que a Senhora se teria poupado muitos dissabores
se houvesse considerado a possibilidade de, uma vez concedido o asilo, uma vez
atendidas as ponderações da Embaixada em La Paz, e verificada pelo Presidente
local a nossa firmeza, a questão poderia
resolver-se de modo mais de adequado, e conforme à praxe diplomática.
As instruções descabidas, as
ingerências indevidas gestaram esse monstro que foi o absurdo e inumano
prolongamento de um asilo que a potestade local conseguiu transformar em
suplício ainda superior às próprias condições de residência de um asilo normal,
regrado pela letra e os princípios da Convenção. Como a Senhora deve saber,
tudo isso surgira por conta do interminável confinamento a que foi submetido o
peruano Haya de la Torre.Tal fato demonstrou a necessidade de redigir-se uma Convenção em que estivesse presente a
necessidade de tratamento humano para o asilado.
A Senhora me dispensará decerto relembrar-lhe as sugestões feitas ao asilado,
inclusive em forma de carta enviada pelo Itamaraty, suponho que com seu
conhecimento, para Roger Pinto, perguntando-lhe o que nunca poderia ter
perguntado, vale dizer : ‘Você concorda em abrir mão de seu asilo enviando uma
carta à presidente Dilma Rousseff? Está disposto a embarcar em um avião com
destino a um terceiro país não especificado ?’
A ignorância, desejada ou não, cria
problemas onde existem soluções. A firmeza nessa exação é um requisito
fundamental. Como já disse antes, evita problemas e, permita-me acrescentá-lo,
agiliza soluções.
Sempre com a devida vênia e o
respeito que o meu ofício me ensinou, recomendaria que se voltasse aos canais
competentes. Em primeiro lugar, concluiríamos essa interminável ‘sindicância’,
que foi entregue, segundo informação do jornal, a funcionário da Presidência,
e não a um servidor do Itamaraty, com hierarquia superior à do funcionário ´sob
exame’. Outra novidade deplorável na
história dessa velha instituição diplomática. Como creio seja de geral
conhecimento, as sindicâncias, no Ministério das Relações Exteriores, tem
alçada menor e são comumente muito breves. Porque não é de sua atribuição
determinar punições ou o que valha, que são incumbência das Comissões de
Inquérito, presididas por funcionário competente na Carreira, e com hierarquia
superior àquele que se faz passar pelo Silas e Caríbdes desse colegiado.
Se o meu colega Eduardo Saboia teve
de recorrer a um procedimento inusitado, qualquer juiz sem prevenção admitiria
que o fez por um direito humanitário e por hombridade profissional. Não o vejo
como acusado, mas como pessoa com coragem, acompanhada de muita paciência e
determinação.
Gostaria que a atual
Administração tivesse a grandeza de admitir que cometeu um erro – errare humanum est – e grandeza ainda
maior, pondo fim a esse suplício chinês.O Brasil, por se curvar a caprichos de
tiranetes, não semelha folhear o livro da diplomacia brasileira, que até o
presente não pretendera punir funcionários por atos de consciência, em que
procuraram respeitar a letra das Convenções internacionais na matéria, até que,
in extremis, assumiram a responsabilidade pessoal de fazer um ato de justiça, a
que Vossa Excelência e os seus prepostos, pelo visto, denegavam com uma
obstinação que só é atribuível ao desconhecimento.
Pelo que fez, Eduardo Saboia terá
o reconhecimento futuro. A senhora mostraria grandeza se abreviasse os
prolegômenos e pusesse fim a essa agregação de injustiças.
(Fontes: Folha de S. Paulo;
obras de Jaime Cortesão – Tratado de Madri – Plano Negociador de Alexandre de
Gusmão; Relatórios do Ministério das
Relações Exteriores; Rio-Branco,
Alvaro Lins; Enciclopédia
Delta-Larousse).
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