quarta-feira, 4 de junho de 2014

CIDADE NUA VII


                             A  DAMA  DO   ELEVADOR

                                                X    X

 

                Yvone  consulta o visor do celular. Felizmente não há chamadas.

                “Tudo bem?”, pergunta ele, que com o canto dos olhos notara a espiada.

                “Tudo, meu amor...”

                “Ótima notícia...”

                Albano já se resolvera a fazer uma proposta para a sua namorada. Ainda não está seguro de seus contornos. Está certo de que deve tomar a iniciativa, mas estranhamente a ideia permanece informe, mal trabalhada. Se não tem dúvidas quanto à iniciativa, sente que lhe falta muito para encorpá-la, para que tenha pé e cabeça.

                Guarda-se, por isso, de levantar a questão, enquanto dirige para deixá-la em lugar bem perto, mas resguardado do edifício em que ambos residem.

                Como todo plano comum, para que vingue ele precisa de ser feito a quatro mãos. Para isso, eles vão precisar de muito diálogo, muita troca de impressões e experiências...

                Entrementes,  contempla, prazeroso, o seu troféu. A dizer verdade, não mais a vê como conquista, algo para contar vantagem em roda vadia. De quando em vez, se pilha, embevecido, na admiração da namorada. Que progressos fizera no passeio...

               Yvone se reclina mais no banco. Tem as vistas cerradas, mas desconfiava de que cochilasse. Como se estendesse languidamente, supõe que esteja apenas curtindo o momento, deixando que ele a leve em travessia serena, na atmosfera aconchegante em jornada de tão boas lembranças.

              Assim como os raios do sol se esmaeciam, com luzes menos invasivas, ele se banhava em repetidas e longas espiadelas, a deleitar-se no furto das visões da plácida beleza da companheira de jornada.

              E no processo nele se firma uma certeza. Logo que possa irá tratar do projeto. Até se espantara com a naturalidade que o cerca. Seria  desses desígnios que de repente nascem feitos.

              Pensava nos desenhistas que se comprazem em traçar quadros de intrincada complexidade que se tornam, à medida que o lápis vai ocupando a página, composições quase singelas, e de fácil compreensão.  Nesse contexto, o que pretende fazer já o tem delineado na cabeça.

             Sabe, contudo, que precisa de tempo. Para tanto, é imprescindível conversar com calma. Na realidade, é o que precisa: de muita calma e jeito.

              E por isso, nem pensar em levantar o assunto agora, quando se acercam do Rio e o tráfego, com a tardinha, só aumenta ao entrarem na Avenida Brasil.

              

                                                              X  X  I

 

                   Por sorte, no subúrbio, não pegou tráfego muito pesado. Os dois haviam encontrado o local discreto. Yvone não corria riscos de ser vista por alguém do prédio e ficar falada. Ambos não só querem, mas precisam do segredo. Por isso, trocam o longo beijo no último sinal, a um bom pedaço do ponto onde ela vai saltar.

                   “Meu amor,  deixa que te telefono, não sei se hoje ou amanhã. E, por favor, não me toca pro celular.”

                   Albano assente com a cabeça, enquanto acaricia a face da namorada.

                   Pouco depois, com o rabo do olho, a vê desaparecer na transversal seguinte.

                   Um quarto de hora depois, já está livre do carro. Mas ainda tem de passar  no supermercado para o lanche da noite.

                   Quando chega no prédio, há um folguista na portaria. Sorte, pensou, de não topar com o Zé Antônio. Sabia que o cupincha não era fofoqueiro, mas... Os porteiros são espertos e antenados... Podia até desconfiar da chegada escalonada...

                   Mais tarde, a solidão bate forte e sente vontade de falar com a namorada. Decerto não esquecera o pedido dela, e o modo quase suplicante com que o expressara. Por isso, apesar de querer entrar em algum contato com Yvone – e ouvir-lhe a voz já seria muito – acabou por convencer-se de que ela tinha razão. A prudência era necessária, e seria irresponsabilidade dele pô-la em risco... Vai que Eurípides tivesse chegado, não seria estúpido de sua parte reavivar a chama da suspeita e, o que seria muito pior, a desconfiança de que a sua terna companheira na excursão a Petrópolis estivesse mesmo traindo o ogro? 

                                                                *

                   “Oi, amor, ‘tou te acordando?”

                    Albano custa a atender. Olhou para o relógio e viu que eram seis horas.

                    “Minha querida...”

                    “Tou vendo que estavas dormindo...”

                    Era daqueles que leva tempo para despertar e dizer coisas conexas. Contudo, a sensação de que ela lhe chama e pelo celular o ajuda a superar rápido o torpor matinal.

                    “Meu amorzinho, que bom te ouvir... Algum problema?”

                    “Não, por enquanto... Precisamos conversar...”

                    “Ótimo...”

                    “Que tal nos encontrarmos no nosso barzinho?”

                    “Na hora habitual?”

                    “Tá bem, meu amor...”

                     Passa um instante de silêncio.

                     “Oi meu querido! ‘Cê tá acordado mesmo?”

                     “Claro, amorzinho... como é que vou dormir depois de chamada tua...”

                     “Então, tá combinado. Nos vemos hoje de tarde, como de costume.”

                                                                *

                      Naquele dia, o bar está menos cheio, mas continua ruidoso. Albano não desgosta daquele ruído surdo que paira sobre a freguesia. As vozes sobem e formam espécie de redoma sonora, em que as muitas conversas se fundem e dão um sentido de animação bastante carioca ao ambiente. Não se pode saber que diabo dizem, mas fica a impressão geral tanto de bulício e vivacidade, quanto da afluência  que extravasa nos fins de semana. Nos bares do Rio de Janeiro, em especial nos mais concorridos (porque melhores) impressiona a força do coro de vozes que traduzem a efusiva exuberância das happy hours e da participação regada a chope nesses alvorotados encontros  de fim de semana, de rodas de amigos e de apaixonados casaizinhos.

                     A animação dos grupos está presente em quase todos os botequins, tanto na Zona Sul, quanto no subúrbio. Na opinião de Albano, talvez a mais forte de todas esteja na rua João Linhares, no Leblon, em que o bar Bracarense se debruça na calçada, e a zoada de tantas conversas invade a rua na inconfundível  junção da farra boêmia e da irreverente camaradagem nos botecos, enquanto reinam nas pizzarias as reuniões semanais de famílias e casais, em ambiente tranquilo, quase burguês, e necessariamente muito mais ajuizado.

                     Ei-la, a esperada, que por fim surge a um canto, de entrada lateral e depressa vem ao seu encontro. Como não faz isso por primeira vez, quiçá seria modo discreto de insinuar-se no ambiente, por quem não deseja atrair demasiada atenção. Com o olhar macio que já de longe acaricia, ele a contempla. A paixão que traz consigo tem amplas liberdades de espaço. Por sua vez, como a antecipar o abraço apertado do amor em suas primícias, em que os mistérios se vão aos poucos, lentamente desvendando, brilha nas excitadas pupilas o calor da certeza do contato intenso. Os dois estão à vontade no ambiente que consideram como deles. A narrativa do casalzinho é feita por poucas lembranças, ainda que brilhe forte na intimidade carinhosamente guardada.

                     Ali, meninos, tudo começou, diriam ambos, meio que rindo, mas na verdade falando sério, como se estivessem contando para o futuro a estória do amor que sempre principia na entrega recíproca dos primeiros beijos, dados com o ardor da súbita descoberta da própria intimidade.

                     Para eles, que ainda não tinham casa, lá têm um refúgio aonde todas – ou quase todas – as suas fantasias se sentem à vontade, talvez pela singeleza em que o amor deles – e só deles – ali podia expressar-se, sem inquietar-se de o que pensa o vizinho de mesa, ou o grupo sorridente mais adiante, naquela alegre e confiante cercania dos botequins, em que a proximidade não sufoca nem estorva, mas envolve com olhos compridos e até cúmplices os casaizinhos que porventura  encontrem guarida na algo bagunceira jovialidade das mesinhas. Dir-se-ía que protege a liberdade dos casais invisível rede de biombos que existe apenas na comum tolerância dos grupos. Se podem até aplaudir o beijo de Yvone e Albano, como rito de iniciação, a ruidosa manifestação tende a ser rara e reservada para momentos excepcionais. Não lhes peçam, porém, que dêem uma de fiscal de costumes. E será nisso que mora o encanto do ambiente.

                                                               *

                  Desta feita, o beijo foi um pouco diferente. Se não tinha a intensidade do primeiro, mostrava mais segurança e conhecimento. E os dois se deram conta disso, e viram como mostra de afirmação e não de um ardor menor. Eles se conheciam mais. Que o gestual refletisse esta realidade era consequência do avanço na relação.

                  “Ele chega amanhã a noite.”

                   Sabe que a nova não é agradável, mas Yvone quer partilhá-la com o namorado.

                   Os dois já estão sentados na mesinha. Num reflexo natural,  aproximam as cadeiras.

                   “Minha querida, a notícia não é das melhores, mas algum dia tinha que vir, né ?”

                   Ela o olhou fundo. Na expressão, pairava misto de cansaço e resignação.

                   “Acho, no entanto, que temos uma saída.”

                   Yvone o encarou com um quê de dúvida no olhar.

                   “Francamente, não te entendo, amor. Saída ?”  

                   “Eu posso pedir licença de dois anos no meu trabalho...”

                   “Tou entendendo cada vez menos”, disse ela.

                   “A licença é sem vencimentos...”

                   “Albano, isto é humor negro? Com que vamos nos sustentar ?”

                   Leve sorriso perpassa-lhe os lábios. E com a mão meio levantada, como quem pede tempo, ele a fita longamente.

                   “Nunca falei mais sério na vida. Já pensaste que a solução depende só de nós?”

                   Com os olhos arregalados, ela o encara, entre desconfiada e irritada.

                   Erguendo um pouco mais a mão espalmada, ele encarece que Yvone espere antes de formar juízo.      

                  “Por favor, me deixa explicar...”

                  “Tá bem, Albano... Só que...”

                  “Meu Amor, me dá uma chance... Ouve, primeiro.”

                  Albano coloca - e com muito carinho - a mão sobre o ombro da namorada.         

                  A testa franzida, ela respira fundo e disse: “Tá bem.”

                  “Minha querida, a única saída – se queremos viver uma vida que seja nossa – será a fuga. Não gostaria, porém, que esta palavra – fuga – te assustasse. Nas grandes decisões existenciais, quem disse que se pode realmente escolher? Quando partimos de uma situação aberta, a gente pode realmente escolher. Será este o nosso caso? Não creio. Infelizmente, não o é. Na verdade, nós dois chegamos tarde demais para isso.

                  “Então, meu amor, temos que meditar e chegar a uma conclusão. Não seria factível que ficássemos no Rio – até, por absurdo, morando em meu apê alugado – pois sabemos com quem estamos lidando, e que certas coisas não seriam sequer imagináveis. Estaríamos evidenciando ou extrema burrice ou cavalar imprudência, o que vem a dar no mesmo.

                  “Encurtando a novela, Yvone, temos que partir para algo radical. E a fuga sempre foi a aliada dos casais apaixonados, que, por não terem outra saída, se colocam na contramão da sociedade.

                  “A vida é curta, meu Amor, mas nem eu, nem você, quer torná-la ainda mais breve partindo para a porralouquice do gênero de ficar no Rio, vivendo em outro apê. Eurípides nunca irá deixar-nos em paz se souber onde estamos. Dada a violência do tipo, dele se pode esperar tudo de ruim.

                  “Por isso, é que não é covardia sair do Rio, ir para longe, fugir. Estamos apenas sendo realistas, e tratando de nos organizar para uma existência feliz, serena.”

                   “Tou entendendo. O que me deixa inquieta não é o fato de sairmos do Rio. O Eurípides não vai permitir que eu suma um dia de seu apartamento, levando todos os meus pertences – pelo menos aqueles que possa carregar – e tudo fique por isso mesmo. Não podemos nos iludir neste campo. Pois isto NÃO É o meu marido! Como todo maníaco compulsivo, não vai descansar enquanto não nos rastrear e encontrar!”

                    Ainda que imaginasse o que vinha, Albano não pôde suprimir um suspiro. Sabia, contudo, que tinha de manter a calma e, especialmente, a paciência. Sabia o quanto ela tinha medo do marido.  Por certo, ele não tinha o direito de fazer pouco deste estado de espírito, que não surgira do dia p’ra noite.

                    Por isso, ele procura não perder a fleuma. Precisa convencê-la. E tal só será possível se transmitir convicção e segurança sobre a viabilidade do próprio plano. A persuasão tem de começar pela blindagem de quem toma a iniciativa.

                    Carecia de acreditar na capacidade do seu esquema de apagar, eliminar os rastros da evasão.

                    “Sei que há conotação negativa na idéia da fuga. Muitas vezes, quando se fala que alguém fugiu se passa a impressão de que lá existe algo de errado. Tá fugindo porque tem culpa no cartório, porque tem medo... E, no entanto, pode haver muitas razões por que se deseja escapar, razões que têm a ver com querer viver a sua vida com outra pessoa, ou porque não aguenta mais a situação injusta ou casamento infeliz. Quem é que casa pra sofrer? Que eu saiba, se for pessoa normal, quem é que vai querer se meter em fria ? E como estás em uma, não te parece natural, porque nos amamos, que pensemos em sair dessa ?...”     

                    Neste momento, Albano procura os olhos de Yvone. Ele a vê nervosa, exasperada mesmo. Sente que ela está no limite. E, no entanto, decide ir em frente, arriscar tudo.

                    “Agora, meu amor, só te peço uma coisa. Me dá a luz verde, o resto a gente decide depois.”

 

                                                             X  X  I  I

 

                   Havia tardes – e até mais do que as manhãs – que o consumiam em esperas especialmente irritantes.  As horas se arrastavam sem que nada acontecesse. Talvez porque o início do expediente sempre traz alguma novidade. Mas à medida que o tempo avançava, como que a jornada se descoloria ainda mais, e tudo se afundava na mesmice da rotina burocrática, sem nenhuma promessa de novidade.

                   Sabia muito bem quem criara aquela situação. Quiçá espicaçado pela surda resistência de Yvone, cometera a loucura de se entregar – de pés e mãos atados – à decisão da namorada.

                   Muito romântica a sua abertura. Acaso pensara que precipitaria as coisas se agisse daquela forma?  Mais pensasse e mais se conscientizava  de que tal precipitação não lhe servirá de nada.  Conhecendo-lhe a personalidade e o medo que sente de Eurípides, tinha que concordar consigo mesmo que fora até um pouco cretino com aquele lance. Forçar a barra daquele modo, agora tinha até dificuldade de entender. Ao perder a paciência e, de forma desastrada, buscar imprensá-la, esquecera que somente através de jeito, paciência e astúcia ele teria alguma chance de virar o jogo.

                   Precipitando as coisas, agira como um estúpido, um néscio... O que ele precisava ter feito era contemporizar... Sem cacife para forçar uma situação nova e radical, ele agira como o aloprado que se mete em fria, e se descobre de mãos abanando, sem munição nem credibilidade...

                                                                  *

                   No apartamento, depois do lanche da noite, Albano sequer se anima em ligar a televisão.  Pra quê? Ouvir as estórias de sempre?

                   Ali, sozinho na sala, só pensa na besteira que fez...

                   E que lhe adianta sonhar com ela?  Está literalmente a uns poucos metros de distância, mas quase tão bem emparedado quanto o personagem do conto de Allan Poe...

                                                                *

                   Foi com raiva que se levantou. Passara noite cachorra. E tinha o corpo moído pelas longas horas de insônia...

                   Depois da barba apressada e do banho de gato, veste a roupa da véspera e vai tomar média com pão na chapa em botequim da vizinhança.

                                                                *

                   Quando chega na repartição, o contínuo o olhou de viés.

                   “Oi, seu Albano... Que é que houve? Caíu da cama?”

                   Tipo confiado aquele! Mas não quer alimentar provocações. Por isso, responde com um gesto de deixa prá lá.

                    Sentado na escrivaninha, resolve dedicar-se aos expedientes atrasados. Há melhor terapia?            

                                                               *

                     No celular, o número do amigo João.

                     “Oi, Albano... faz tempo que não nos falamos, hein ?”

                     “Não tem jeito de negar... Ando meio enrolado...”

                      Nada contara a ele sobre o seu caso com Yvone.  Por mais de uma vez, em outra conversa, estivera a ponto de fazê-lo, mas acabara optando por não mencioná-lo. Isso o constrangia, porque o amigo não tinha segredos para ele. E pra seus botões dizia ‘na próxima, eu falo...’

                       Para evitar que os curiosos de plantão busquem saber o que não devem, ele se levanta – e a conversa junto – para o fétido banheiro.

                       “E se combinássemos um almoço pra amanhã?”

                        A resposta de João tarda um pouco.

                        “Acho que não vai dar, amigão.., Depois te explico.”

                        Por instantes, cogitara até da possibilidade de abrir-se com o seu camarada...

                                                               *

                         O dia termina como começara. Morno, inconclusivo.

                         Voltando para casa, no aperto do ônibus, chega a fantasiar encontro imprevisto com Yvone. Os dois entrando no prédio na mesma hora...

                          E não é que, devaneando, quase acredita em dar com ela no saguão e subirem p’ra casa com o elevador à disposição só deles?

                          Mas na portaria não há vivalma além do chato do Zé Antônio.

                          De relance, julga entrever no olhar do porteiro um jeitão meio esquisito, como se zombe dele...

                          Prefere, no entanto, não cair nessa esparrela. Como é que o Zé poderia ter alguma noção de o que está se passando?  Fazia tempos – e por motivos bem diferentes – que se fechara em copas com o conterrâneo. Porteiro é indiscreto por natureza – e se especializa em conhecer da vida dos condôminos...

                          Assim, passou a tratar o Zé com braço inglês. Às vezes, chegava a ter remorso. Mas não é louco de correr risco de tal ordem...

                                                               *

                            Chegando em casa, abre a caixa de mensagens do celular. Fizera aquilo maquinalmente por dias a fio. Virara costume para ele, mas como nada trazia, hesita sempre mais em cumprir o que se transformara, por todos aqueles dias, em rotina de solidão.

                             Por isso, lê e relê. Como se lhe custe acreditar no que está vendo.

                             “Amanhã te espero no bar. Tenho notícia pra ti.”

 

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