X X
Yvone consulta o visor do celular. Felizmente não
há chamadas.
“Tudo
bem?”, pergunta ele, que com o canto dos olhos notara a espiada.
“Tudo,
meu amor...”
“Ótima
notícia...”
Albano já se resolvera a fazer uma proposta
para a sua namorada. Ainda não está seguro de seus contornos. Está certo de que
deve tomar a iniciativa, mas estranhamente a ideia permanece informe, mal
trabalhada. Se não tem dúvidas quanto à iniciativa, sente que lhe falta muito
para encorpá-la, para que tenha pé e cabeça.
Guarda-se,
por isso, de levantar a questão, enquanto dirige para deixá-la em lugar bem
perto, mas resguardado do edifício em que ambos residem.
Como
todo plano comum, para que vingue ele precisa de ser feito a quatro mãos. Para
isso, eles vão precisar de muito diálogo, muita troca de impressões e
experiências...
Entrementes, contempla, prazeroso, o seu troféu. A dizer
verdade, não mais a vê como conquista, algo para contar vantagem em roda vadia.
De quando em vez, se pilha, embevecido, na admiração da namorada. Que
progressos fizera no passeio...
Yvone
se reclina mais no banco. Tem as vistas cerradas, mas desconfiava de que
cochilasse. Como se estendesse languidamente, supõe que esteja apenas curtindo
o momento, deixando que ele a leve em travessia serena, na atmosfera
aconchegante em jornada de tão boas lembranças.
Assim
como os raios do sol se esmaeciam, com luzes menos invasivas, ele se banhava em
repetidas e longas espiadelas, a deleitar-se no furto das visões da plácida
beleza da companheira de jornada.
E no
processo nele se firma uma certeza. Logo que possa irá tratar do projeto. Até
se espantara com a naturalidade que o cerca. Seria desses desígnios que de repente nascem feitos.
Pensava
nos desenhistas que se comprazem em traçar quadros de intrincada complexidade
que se tornam, à medida que o lápis vai ocupando a página, composições quase
singelas, e de fácil compreensão. Nesse
contexto, o que pretende fazer já o tem delineado na cabeça.
Sabe,
contudo, que precisa de tempo. Para tanto, é imprescindível conversar com calma.
Na realidade, é o que precisa: de muita calma e jeito.
E por
isso, nem pensar em levantar o assunto agora, quando se acercam do Rio e o
tráfego, com a tardinha, só aumenta ao entrarem na Avenida Brasil.
X X I
Por
sorte, no subúrbio, não pegou tráfego muito pesado. Os dois haviam encontrado o
local discreto. Yvone não corria riscos de ser vista por alguém do prédio e
ficar falada. Ambos não só querem, mas precisam do segredo. Por isso, trocam o
longo beijo no último sinal, a um bom pedaço do ponto onde ela vai saltar.
“Meu amor, deixa que te telefono,
não sei se hoje ou amanhã. E, por favor,
não me toca pro celular.”
Albano assente com a
cabeça, enquanto acaricia a face da namorada.
Pouco depois, com o rabo do olho, a vê desaparecer na transversal
seguinte.
Um
quarto de hora depois, já está livre do carro. Mas ainda tem de passar no supermercado para o lanche da noite.
Quando
chega no prédio, há um folguista na portaria. Sorte, pensou, de não topar com o
Zé Antônio. Sabia que o cupincha não era fofoqueiro, mas... Os porteiros são
espertos e antenados... Podia até desconfiar da chegada escalonada...
Mais tarde, a solidão bate forte e sente vontade de falar com a
namorada. Decerto não esquecera o pedido dela, e o modo quase suplicante com
que o expressara. Por isso, apesar de querer entrar em algum contato com Yvone
– e ouvir-lhe a voz já seria muito – acabou por convencer-se de que ela tinha
razão. A prudência era necessária, e seria irresponsabilidade dele pô-la em
risco... Vai que Eurípides tivesse chegado, não seria estúpido de sua parte
reavivar a chama da suspeita e, o que seria muito pior, a desconfiança de que a
sua terna companheira na excursão a Petrópolis estivesse mesmo traindo o ogro?
*
“Oi, amor, ‘tou te acordando?”
Albano custa a atender. Olhou para o relógio e viu que eram seis horas.
“Minha querida...”
“Tou vendo que estavas dormindo...”
Era daqueles que leva tempo para despertar e dizer coisas conexas.
Contudo, a sensação de que ela lhe chama e pelo celular o ajuda a superar
rápido o torpor matinal.
“Meu amorzinho, que bom te ouvir... Algum problema?”
“Não, por enquanto... Precisamos conversar...”
“Ótimo...”
“Que tal nos encontrarmos no nosso barzinho?”
“Na hora habitual?”
“Tá bem, meu amor...”
Passa um instante de silêncio.
“Oi meu querido! ‘Cê tá acordado mesmo?”
“Claro, amorzinho... como é que vou dormir depois de chamada tua...”
“Então, tá combinado. Nos vemos hoje de tarde, como de costume.”
*
Naquele
dia, o bar está menos cheio, mas continua ruidoso. Albano não desgosta daquele
ruído surdo que paira sobre a freguesia. As vozes sobem e formam espécie de redoma
sonora, em que as muitas conversas se fundem e dão um sentido de animação bastante
carioca ao ambiente. Não se pode saber que diabo dizem, mas fica a impressão
geral tanto de bulício e vivacidade, quanto da afluência que extravasa nos fins de semana. Nos bares do
Rio de Janeiro, em especial nos mais concorridos (porque melhores) impressiona
a força do coro de vozes que traduzem a efusiva exuberância das happy hours e da participação regada a
chope nesses alvorotados encontros de fim
de semana, de rodas de amigos e de apaixonados casaizinhos.
A
animação dos grupos está presente em quase todos os botequins, tanto na Zona
Sul, quanto no subúrbio. Na opinião de Albano, talvez a mais forte de todas
esteja na rua João Linhares, no Leblon, em que o bar Bracarense se debruça na
calçada, e a zoada de tantas conversas invade a rua na inconfundível junção da farra boêmia e da irreverente camaradagem
nos botecos, enquanto reinam nas pizzarias as reuniões semanais de famílias e
casais, em ambiente tranquilo, quase burguês, e necessariamente muito mais
ajuizado.
Ei-la, a esperada, que por fim surge a um canto, de entrada lateral e depressa
vem ao seu encontro. Como não faz isso por primeira vez, quiçá seria modo
discreto de insinuar-se no ambiente, por quem não deseja atrair demasiada
atenção. Com o olhar macio que já de longe acaricia, ele a contempla. A paixão
que traz consigo tem amplas liberdades de espaço. Por sua vez, como a antecipar
o abraço apertado do amor em suas primícias, em que os mistérios se vão aos
poucos, lentamente desvendando, brilha nas excitadas pupilas o calor da certeza
do contato intenso. Os dois estão à vontade no ambiente que consideram como
deles. A narrativa do casalzinho é feita por poucas lembranças, ainda que
brilhe forte na intimidade carinhosamente guardada.
Ali, meninos, tudo começou, diriam ambos, meio que rindo, mas na verdade
falando sério, como se estivessem contando para o futuro a estória do amor que
sempre principia na entrega recíproca dos primeiros beijos, dados com o ardor
da súbita descoberta da própria intimidade.
Para eles, que ainda não tinham casa, lá têm um refúgio aonde todas – ou
quase todas – as suas fantasias se sentem à vontade, talvez pela singeleza em
que o amor deles – e só deles – ali podia expressar-se, sem inquietar-se de o
que pensa o vizinho de mesa, ou o grupo sorridente mais adiante, naquela alegre
e confiante cercania dos botequins, em que a proximidade não sufoca nem estorva,
mas envolve com olhos compridos e até cúmplices os casaizinhos que
porventura encontrem guarida na algo
bagunceira jovialidade das mesinhas. Dir-se-ía que protege a liberdade dos
casais invisível rede de biombos que existe apenas na comum tolerância dos
grupos. Se podem até aplaudir o beijo de Yvone e Albano, como rito de
iniciação, a ruidosa manifestação tende a ser rara e reservada para momentos
excepcionais. Não lhes peçam, porém, que dêem uma de fiscal de costumes. E será
nisso que mora o encanto do ambiente.
*
Desta feita, o beijo foi um pouco diferente. Se não tinha a intensidade
do primeiro, mostrava mais segurança e conhecimento. E os dois se deram conta
disso, e viram como mostra de afirmação e não de um ardor menor. Eles se
conheciam mais. Que o gestual refletisse esta realidade era consequência do
avanço na relação.
“Ele
chega amanhã a noite.”
Sabe
que a nova não é agradável, mas Yvone quer partilhá-la com o namorado.
Os
dois já estão sentados na mesinha. Num reflexo natural, aproximam as cadeiras.
“Minha querida, a notícia não é das melhores, mas algum dia tinha que
vir, né ?”
Ela o olhou fundo. Na expressão,
pairava misto de cansaço e resignação.
“Acho, no entanto, que temos uma saída.”
Yvone o encarou com um quê de dúvida no olhar.
“Francamente, não te entendo, amor. Saída ?”
“Eu
posso pedir licença de dois anos no meu trabalho...”
“Tou entendendo cada vez menos”, disse ela.
“A
licença é sem vencimentos...”
“Albano, isto é humor negro? Com que vamos nos sustentar ?”
Leve sorriso perpassa-lhe os lábios. E com a mão meio levantada, como
quem pede tempo, ele a fita longamente.
“Nunca falei mais sério na vida. Já pensaste que a solução depende só de
nós?”
Com
os olhos arregalados, ela o encara, entre desconfiada e irritada.
Erguendo um pouco mais a mão espalmada, ele encarece que Yvone espere
antes de formar juízo.
“Por
favor, me deixa explicar...”
“Tá
bem, Albano... Só que...”
“Meu
Amor, me dá uma chance... Ouve, primeiro.”
Albano coloca - e com muito carinho - a mão sobre o ombro da namorada.
A
testa franzida, ela respira fundo e disse: “Tá bem.”
“Minha querida, a única saída – se queremos viver uma vida que seja
nossa – será a fuga. Não gostaria, porém, que esta palavra – fuga – te
assustasse. Nas grandes decisões existenciais, quem disse que se pode realmente
escolher? Quando partimos de uma situação aberta, a gente pode realmente
escolher. Será este o nosso caso? Não creio. Infelizmente, não o é. Na verdade,
nós dois chegamos tarde demais para isso.
“Então, meu amor, temos que meditar e chegar a
uma conclusão. Não seria factível que ficássemos no Rio – até, por absurdo,
morando em meu apê alugado – pois sabemos com quem estamos lidando, e que
certas coisas não seriam sequer imagináveis. Estaríamos evidenciando ou extrema
burrice ou cavalar imprudência, o que vem a dar no mesmo.
“Encurtando a novela, Yvone, temos que partir para algo radical. E a
fuga sempre foi a aliada dos casais apaixonados, que, por não terem outra
saída, se colocam na contramão da sociedade.
“A
vida é curta, meu Amor, mas nem eu, nem você, quer torná-la ainda mais breve
partindo para a porralouquice do gênero de ficar no Rio, vivendo em outro apê.
Eurípides nunca irá deixar-nos em paz se souber onde estamos. Dada a violência
do tipo, dele se pode esperar tudo de ruim.
“Por
isso, é que não é covardia sair do Rio, ir para longe, fugir. Estamos apenas
sendo realistas, e tratando de nos organizar para uma existência feliz, serena.”
“Tou entendendo. O que me deixa inquieta não é o fato de sairmos do Rio.
O Eurípides não vai permitir que eu suma um dia de seu apartamento, levando
todos os meus pertences – pelo menos aqueles que possa carregar – e tudo fique
por isso mesmo. Não podemos nos iludir neste campo. Pois isto NÃO É o meu
marido! Como todo maníaco compulsivo, não vai descansar enquanto não nos
rastrear e encontrar!”
Ainda que imaginasse o que vinha, Albano não pôde suprimir um suspiro.
Sabia, contudo, que tinha de manter a calma e, especialmente, a paciência.
Sabia o quanto ela tinha medo do marido.
Por certo, ele não tinha o direito de fazer pouco deste estado de
espírito, que não surgira do dia p’ra noite.
Por isso, ele procura não perder a fleuma. Precisa convencê-la. E tal só
será possível se transmitir convicção e segurança sobre a viabilidade do
próprio plano. A persuasão tem de começar pela blindagem de quem toma a
iniciativa.
Carecia de acreditar na capacidade do seu esquema de apagar, eliminar os
rastros da evasão.
“Sei que há conotação negativa na idéia da fuga. Muitas vezes, quando se
fala que alguém fugiu se passa a impressão de que lá existe algo de errado. Tá
fugindo porque tem culpa no cartório, porque tem medo... E, no entanto, pode
haver muitas razões por que se deseja escapar, razões que têm a ver com querer
viver a sua vida com outra pessoa, ou porque não aguenta mais a situação
injusta ou casamento infeliz. Quem é que casa pra sofrer? Que eu saiba, se for
pessoa normal, quem é que vai querer se meter em fria ? E como estás em uma,
não te parece natural, porque nos amamos, que pensemos em sair dessa ?...”
Neste momento, Albano procura os olhos de
Yvone. Ele a vê nervosa, exasperada mesmo. Sente que ela está no limite. E, no
entanto, decide ir em frente, arriscar tudo.
“Agora, meu amor, só te peço uma coisa. Me dá a luz verde, o resto a
gente decide depois.”
X X
I I
Havia tardes – e até mais do que as manhãs –
que o consumiam em esperas especialmente irritantes. As horas se arrastavam sem que nada
acontecesse. Talvez porque o início do expediente sempre traz alguma novidade.
Mas à medida que o tempo avançava, como que a jornada se descoloria ainda mais,
e tudo se afundava na mesmice da rotina burocrática, sem nenhuma promessa de
novidade.
Sabia muito bem quem criara aquela situação.
Quiçá espicaçado pela surda resistência de Yvone, cometera a loucura de se
entregar – de pés e mãos atados – à decisão da namorada.
Muito romântica a sua abertura. Acaso pensara que precipitaria as coisas
se agisse daquela forma? Mais pensasse e
mais se conscientizava de que tal
precipitação não lhe servirá de nada. Conhecendo-lhe
a personalidade e o medo que sente de Eurípides, tinha que concordar consigo
mesmo que fora até um pouco cretino com aquele lance. Forçar a barra daquele modo,
agora tinha até dificuldade de entender. Ao perder a paciência e, de forma
desastrada, buscar imprensá-la, esquecera que somente através de jeito,
paciência e astúcia ele teria alguma chance de virar o jogo.
Precipitando as coisas, agira como um estúpido, um néscio... O que ele
precisava ter feito era contemporizar... Sem cacife para forçar uma situação
nova e radical, ele agira como o aloprado que se mete em fria, e se descobre de
mãos abanando, sem munição nem credibilidade...
*
No
apartamento, depois do lanche da noite, Albano sequer se anima em ligar a
televisão. Pra quê? Ouvir as estórias de
sempre?
Ali, sozinho na sala, só pensa na besteira que fez...
E
que lhe adianta sonhar com ela? Está
literalmente a uns poucos metros de distância, mas quase tão bem emparedado
quanto o personagem do conto de Allan Poe...
*
Foi com raiva que se levantou. Passara noite
cachorra. E tinha o corpo moído pelas longas horas de insônia...
Depois da barba apressada e do banho de gato, veste a roupa da véspera e
vai tomar média com pão na chapa em botequim da vizinhança.
*
Quando chega na repartição, o contínuo o olhou
de viés.
“Oi, seu Albano... Que é que houve? Caíu da cama?”
Tipo confiado aquele! Mas não quer alimentar
provocações. Por isso, responde com um gesto de deixa prá lá.
Sentado na escrivaninha, resolve dedicar-se aos expedientes atrasados. Há
melhor terapia?
*
No celular, o número do amigo João.
“Oi, Albano... faz tempo que não nos falamos, hein ?”
“Não
tem jeito de negar... Ando meio enrolado...”
Nada contara a ele sobre o seu caso
com Yvone. Por mais de uma vez, em outra
conversa, estivera a ponto de fazê-lo, mas acabara optando por não mencioná-lo.
Isso o constrangia, porque o amigo não tinha segredos para ele. E pra seus
botões dizia ‘na próxima, eu falo...’
Para evitar que os curiosos de plantão busquem saber o que não devem,
ele se levanta – e a conversa junto – para o fétido banheiro.
“E se combinássemos um
almoço pra amanhã?”
A resposta de João tarda um pouco.
“Acho que não vai dar, amigão.., Depois te explico.”
Por instantes, cogitara até da possibilidade de abrir-se com o seu
camarada...
*
O dia termina como começara. Morno, inconclusivo.
Voltando para casa, no aperto do ônibus, chega a fantasiar encontro
imprevisto com Yvone. Os dois entrando no prédio na mesma hora...
E não é que, devaneando, quase acredita em dar com ela no saguão e
subirem p’ra casa com o elevador à disposição só deles?
Mas na portaria não há vivalma além do chato do Zé Antônio.
De relance, julga
entrever no olhar do porteiro um jeitão meio esquisito, como se zombe dele...
Prefere, no entanto, não cair nessa esparrela. Como é que o Zé poderia
ter alguma noção de o que está se passando?
Fazia tempos – e por motivos bem diferentes – que se fechara em copas
com o conterrâneo. Porteiro é indiscreto por natureza – e se especializa em
conhecer da vida dos condôminos...
Assim, passou a tratar o Zé com braço inglês. Às vezes, chegava a ter
remorso. Mas não é louco de correr risco de tal ordem...
*
Chegando em casa, abre a caixa de mensagens do celular. Fizera aquilo
maquinalmente por dias a fio. Virara costume para ele, mas como nada trazia,
hesita sempre mais em cumprir o que se transformara, por todos aqueles dias, em
rotina de solidão.
Por isso, lê e relê. Como se lhe custe acreditar no que está vendo.
“Amanhã te espero no bar. Tenho notícia pra ti.”
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