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Mal chegavam das compras, quando o celular tocou. Era o Dr. Américo.
“Albano? Aonde você está?”
“Ainda na rua, chefe. O senhor me desculpe se não chamei antes, mas...”
“Então, você
ainda está na rua?... Mas que diabos anda fazendo?!”
O timbre da voz estava alto, demasiado alto no que tange aos interesses
do funcionário. Ele precisava amansar o bicho logo, antes que as coisas saíssem
de seu controle.
“Meu caríssimo Chefe, o senhor não imagina o que estamos enfrentando...
Passamos quase toda a manhã na delegacia... o senhor com a sua experiência sabe
o que é lidar com essa gente... Ainda por cima o laudo do IML ainda não ficou
pronto e carecemos muito desse papel para tocar o assunto...”
“Onde vocês estão agora?”
Pelo ouvido sensível do subordinado, os decibéis continuavam caindo. O
que, para Albano, não era mau sinal.
“Estamos no centro,
Doutor Américo, mas infelizmente um pouco distantes da repartição...”
“Francamente, não estou entendendo...”
“Estamos retornando ao
IML, para ver se por acaso o documento ficou pronto. Sem isso, Dr. Américo, não
há nada a fazer...”
“Dá pra entender, Albano... Francamente, acho que não vai dar para você vir aqui...
Mas amanhã, cedo, estou lhe esperando... Temos de acertar os nossos
relógios...”
Respirou fundo. Por enquanto, não podia dispensar a boa vontade do
chefe. Teria de maneirar com o velho, senão...
“Entendido, chefe! Estarei aí na primeira hora. E muito obrigado pelo
apoio que nos vem prestando!”
Completada
a ligação, o casal se entreolhou. Ela parecia meio irritada com a encenação.
“Não dá pra entender a tua atitude...”
“Se
você não fosse tão verde compreenderia melhor...” E sem baixar a vista,
continuou: “Não podemos nos dar ao luxo de nos indispormos com ele. Do chefe,
tudo depende. Pode ser uma besta e um chato, mas é o chefe. Se não estou nas
boas graças dele, eu não valho nada e o que é muito pior não consigo nada. E não se esqueça nunca dona Yvone, nós precisamos dele! Por isso, seja simpática com
o Chefe, que não vai se arrepender!”
Yvone estranhou a
ênfase, guardando na expressão um ar algo cético.
“Então, você vai amanhã lá?”
“Que remédio, dona Yvone. Aliás, uma correçãozinha: amanhã nós
vamos na repartição.”
* *
Chegaram cedo no escritório, o que não desgostou Albano. A maioria das
mesas estavam vazias. Se conseguissem sair antes da entrada do mulherio, não
estaria mau, pensou. Não vendo Yvone, a fofoca não comeria solta, o que lhe
ajudaria com o chefe. Nada pior que se ele fosse envenenado pelo
disse-me-disse.
“Então essa é o
pivô da história?”, perguntou, piscando o olho, o Dr. Américo.
“Eu
não me referiria à questão nesses termos, meu caro Chefe. A Yvone foi
barbaramente agredida pelo marido. Ele deu mais crédito a uma acusação chula e
anônima, do que à palavra de sua esposa.”
Yvone não pôde deixar de lançar um olhar prazeroso para o
companheiro.
“E
posso saber qual o seu papel nesta questão ?”
“Não pude furtar-me a defendê-la. Estou certo de que o senhor agiria da
mesma forma, se fosse o caso.”
O
Dr. Américo, com a mão direita a envolver o queixo, o fitou com ar um tanto
cético. “Qual a sua relação com a moça ?”
“Por enquanto, de simples amizade. Mas está excluído que a relação
evolua.”
A
atitude do funcionário Albano até que o divertia. Estava achando aquilo muito
mal contado, mas não podia meter-se em questões pessoais, que não lhe dissessem
respeito. A menos que...
“Você sabe,
Albano, que procurei lhe dar uma força ontem, dada a excepcionalidade da
questão. Por isso, relevei as horas fora do expediente. Quem não sentirá pena
de pessoa que sofra agressão tão estúpida e descabida ? Nesse quadro, gostaria
de saber de suas intenções para com ela, e que afinal pretende de mim, tendo
presente que você trabalha sob as minhas ordens e que há limite pra tudo ?...”
“Dr. Abreu, o senhor tem sido um pai para mim, e por isso lhe serei
sempre grato. Estou consciente da minha situação, e é por isso, fiado no seu
sentido humanitário, que gostaria de pedir-lhe, encarecer-lhe mesmo, um favor
excepcional. Sinto que há muita coisa descosida no caso da Yvone, e que ela
sozinha não teria condição de atar e muito menos de resolver. Sinto que ela
precisa de mim tanto no IML, quanto na Delegacia. Estamos para ver também se é
caso de contratar advogado...”
“Vejo que as suas intenções são as melhores possíveis, e presumo que é
grande o seu envolvimento pessoal?”
“Correto, Dr. Abreu.”
“E,
no entanto, Albano, você é meu funcionário, tem horário e assina ponto. Não
acha que está abusando?”
“Não, Dr. Abreu, porque o senhor há de compreender que esta moça foi
barbaramente agredida – e a vista dela já é suficiente para mostrá-lo – e que
estamos envidando uma série de providências legais
para resguardar os seus direitos e punir o agressor. Conto, por isso, com a sua
compreensão, se o senhor me concede mais dois dias para levar a cabo todas as
providências burocráticas cabíveis no caso... É uma questão de humanidade, para
a qual peço a sua compreensão de pai e de chefe. Estou envolvido nisso – e é no
bom sentido – até a raiz dos cabelos, e é por isso mesmo que me atrevo a
importuná-lo uma vez mais para rogar-lhe dar-me condições de defender essa moça
desvalida, para que ela tenha respeitados os seus direitos pela Lei Maria da
Penha...”
“Senhor Albano, tem estudos de advocacia, é, por acaso, solicitador?”
“Não, Dr. Abreu. Tenho o segundo grau completo, mas não fiz até hoje
curso superior.”
“Pois, olhe seu Albano. O senhor leva jeito. E é por isso que lhe vou
dar mais dois dias. Mas tenha presente que este é o seu limite.”
Na
saída, com leve sorriso nos lábios, Yvone o acariciou com a palma da mão.
“Estou orgulhosa de Você.”
“É,
minha querida, mas com isso sinto que esgotamos o nosso crédito. Ele chegou ao
seu limite de bondade.”
* *
O
casalzinho, espicaçado pela quase certeza de que Albano teria de consumir muito
em breve quase todo o seu tempo útil tocando o expediente na repartição, cuidou
de imprimir às suas andanças naquele dia
e meio restante um ritmo que nenhum dos dois pensara fossem capazes.
Quando chegaram no apê
de João, à tardinha, ambos estavam cansados, mas satisfeitos com a jornada.
Depois de apanhar o laudo no IML e se certificarem que o Dr. Pinho e Silva
colocara Eurípides em maus lençóis, acharam melhor procurar a defensoria
pública. Não tinham dinheiro para contratar advogado de categoria, e queriam
evitar despender com profissional inexperiente.
Nesse quadro, partiram para o defensor público, sabendo que também aí corriam
riscos. No entanto, já no primeiro contato viram que a moça tinha experiência e
boa vontade, o que para eles era um bom negócio.
Maria Felícia de Andrade era solteira, e o casal concordou em que as suas
chances de deixar de sê-lo pareciam muito pequenas. No entanto, a feiura não
interferia com a sua aparência simpática, como por vezes ocorre em casos
extremos.
Para preparar o caso, a Dra. Felícia pediu-lhes que não calassem sobre
nenhum aspecto do problema. Só não gostou de que tivessem forçado a gaveta
chaveada de Eurípides. No seu entender, aquilo podia criar dificuldades. Por
isso, como era aspecto desfavorável para a causa de Yvone, pediu-lhes que
evitassem qualquer referência. Se a outra parte a levantasse, então pensariam
na melhor saída.
* *
Ao
retornarem para o apartamento de João, se não os animava a maneira como estavam
aí arranchados, mas também principiavam a incomodar-lhes certas atitudes do
hospedeiro. Os horários do anfitrião eram imprevisíveis. Por isso, os dois com
piscares de olho torciam para que não estivesse em casa. E se por acaso ele
estivesse, não mostrava muito entusiasmo em vê-los. Não há negar que tivesse um
feitio casmurro, em que o sorriso seria rara aparição.
Albano já o conhecia faz tempo e
nunca duvidara de sua amizade. Mas são coisas bem diferentes praticar com o
amigo em situações eventuais e ter de coexistir com ele em apartamento pequeno.
Ficara muito grato a João por tê-los recebido sem pestanejar. No entanto, a
natureza do anfitrião principiava a tornar-lhes a companhia constante um pouco
mais sensível e, por vezes, mais pesada. Com o tempo lhes ia aumentando a quota
do desconforto, como se a sensação de continuarem juntos trouxesse a cada dia
um pequeno e ulterior desgaste que se acrescentava aos anteriores, assim como o
pingo d’água incessante deixa de ser um evento individual e desimportante, para
seguir no mesmo torturante e exasperante ritmo. Aos poucos, o casal sentia que
a sua presença – particularmente porque não tinha limites temporais aparentes –
ia perdendo a conexão com o momento do cotidiano para descambar em sensação
esquisita e incômoda. Assim, com o lento correr dos dias, quando os três se
sentavam na sala, ao fim de uma jornada qualquer, era quase palpável a
impressão de que a paciência e a boa vontade do dono da casa se estavam
esvaindo, lenta mas progressivamente, pelo ralo já meio entupido de
hospitalidade que não mais convivia bem com a circunstância de não ter limites
no horizonte.
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