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X X I
Pensavam que poderiam distrair-se no dia seguinte, o último da ‘licença’
concedida pelo Dr. Abreu a Albano. Ambos sentiam o peso das andanças pela
burocracia. Por sugestão de Yvone, e com o dia ajudando, resolveram ir à praia.
Assim, ela preparou o farnel para a jornada, e com o traje de banho por baixo
da roupa, tomariam o ônibus e depois o metrô, para desembarcarem na estação
General Osório. Dali, seguiriam a pé para o Arpoador.
A
perspectiva de uma folga da rotina cotidiana, toda centrada na ação pública da
Lei Maria da Penha, a animava sobremaneira e por dupla razão. Por um dia,
ficariam longe do tugúrio em que estavam metidos. Além disso, Yvone já
prelibava o dia, e a oportunidade de tomar o banho de sol e quem sabe de mar
naquele famoso recanto da Zona Sul. Desde muito, abrigava desejo quase infantil
de conhecer o famoso lugar. O chato do
marido, recorrendo a vários pretextos, nunca a deixara realizar o projeto.
Agora, portanto, iria tirar a sua forra.
Quase como uma criança, ela se preparara e se postara junto da porta, no
aguardo de que Albano afinal se aprontasse.
Quando o telefone tocou, um pensamento ruim lhe passou na mente. De
supetão, gritou ‘não atende!’, mas já era tarde. O namorado, num reflexo –
estava ao lado do aparelho – o levou ao ouvido. Disse depois que nem pensara.
São tantas a chamadas de tele-marketing...
No
entanto, para desconsolo de Yvone, era a Dra. Felícia, que os convoca a
audiência com o juiz. Os lábios dela se contraem num rictus. Tem ganas de
gritar com o azar, mas se cala. Só na postura e no olhar turvo, deixa entrever
a raiva que sente. E, por isso, Albano lhe evita o olhar, porque intui a reação
da namorada, e o lorpa que fora ao levantar o fone.
“Pra que hora está marcada a reunião?”
Irritada, ela fizera a pergunta sem sequer fitá-lo.
“Pras duas.”
“Ótimo, então. Assim nos arrebenta com manhã e tarde…”
* *
A
audiência começa com atraso às duas e quarenta. Yvone e Albano, acompanhados da
defensora, aí esperavam, quando afinal entra o juiz.
“Que
entre o acusado.”
Incontinente, junto com o advogado, Eurípides, saindo de outra porta,
vem sentar-se do outro lado da mesa. Está na companhia de advogado.
Ao
aceno do magistrado, a dra. Felícia toma a palavra: “Excelência, aqui lhe
passo, para os devidos fins, o documento de corpo de delito, firmado pelo
legista Dr. Pinho e Silva, do I.M.L.,
que comprova as sevícias sofridas
pela representada, senhora Yvone Souza.”
Enquanto a vítima mantém os olhos baixos, evitando qualquer contato
visual, de soslaio Albano observa Eurípides. Cabisbaixo, aparentando humildade
que ele jamais antes entrevira quando dos breves encontros em elevador e no
saguão, o acusado é a própria imagem do compungido abatimento.
* *
“Quanto
tempo ainda para este processo terminar, doutora ?”
“Em
uns dois meses, no máximo, isso acaba.”
A
defensora não estranhou que fosse Albano e não Yvone quem indagasse. A
princípio, a timidez das mulheres a incomodara. Depois, se acostumou. Apesar de
tudo, elas continuavam a ceder a vez. Era um fato cultural, que só o tempo
poderia corrigir.
No
entanto, naquela tarde mesmo, ao passarem pela Defensoria, onde Yvone tinha de
assinar uns papéis, a sua cliente a surpreenderia.
“Doutora
Felícia, o Euri quer falar comigo. A senhora tem objeção?”
“Isso só você pode decidir. Agora, se quer a minha opinião pessoal, se
estivesse no seu lugar, não concordaria. A propósito, seu namorado está
sabendo?”
Albano tinha ido ao banheiro.
“Então
ficamos assim. E que isso fique entre nós, o.k.?”, murmurou Yvone.
“O.k.”, disse a dra. Felícia,
enquanto remexia nos papéis. “Mas não se esqueça de que eu a avisei.”
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