A DAMA DO ELEVADOR
X X I X
Depois de noite
maldormida, Albano deixou Yvone no quarto. Ao vê-la ressonando baixinho, preferiu não acordá-la.
João o
esperava na sala. Já engravatado, e com a camisa branca impecável, a provisória
dificuldade em que se achava fê-lo sentir um tantinho de inveja pelo aprumo do
amigo.
“Que
beleza ! Pode-se saber onde mandas lavar e passar tuas camisas ?”
João
mal logra dissimular um meio sorriso, diante da aparência de Albano.
“Tenho uma
diarista, que vem duas vezes por semana.”
E, como alguém que se lembra de algo importante, bateu de leve no
antebraço do amigo e acrescentou: “E por sorte, a empregada vem hoje, e chega lá pelas onze.
Falo com ela antes para que ajude a vocês em tudo que precisarem.”
“Obrigado, amigão. Aliás, teria uma chave pra me emprestar?”
“Ah!
que falta de cabeça a minha! Sim! já vou buscar.”
Em
instantes voltou, com molho de duas chaves.
“Uma
é da porta da frente, e a outra, maiorzinha, da de serviço. Por ora, vocês
poderiam ficar cada um com uma. E quanto à entrada do prédio, é o porteiro quem
abre. Vou avisá-lo que vocês são meus hóspedes.”
“Ótimo. Como vou me mexer muito, você tem o número do meu celular.”
Parou um momento, e viu que estava apressado. “Olhe, não se prenda por
nós...”
“Você
tem razão, Albano. Tenho que apanhar no quarto uma pasta e sair logo. Mas não
esquentem: vou chamar a Almerinda para avisá-la da presença do casal. E, por
favor, não façam cerimônia. Ela é muito boa gente.”
Parecendo afobado, João voltou em minutos, com uma pastinha e o celular.
“Qualquer coisa, me chamem, por favor.”
E com
um tapa nas costas do amigo – o que, por vezes, o assustava, pelo inusitado
vigor – em segundos batia a porta, rumo sabe-se lá a que compromisso urgente.
*
Tinha
de falar com o Dr. Américo. Pelas suas
últimas saídas, que o chefe via com desconfiança e crescente irritação, sabia
que vender mais esse peixe de, pelo menos, faltar naquela manhã ao expediente
não seria tarefa fácil. Descrever a sua tentativa de mais uma vez arrancar do
mal-humorado diretor outra permissão informal como factível, teria em certos
dias o carimbo de missão impossível. Estava consciente de que se desgastara com
o chefe algumas vezes por motivos tolos, que não justificariam o seu empenho.
Dessa
feita, no entanto, alimentava a esperança de que o Dr. Américo era uma pessoa
humana e se comoveria com os pormenores que motivavam a sua participação.
Devia, contudo, tomar extremo cuidado na apresentação do caso. Não ignorava que
para ter chance de êxito carecia de passar muito por cima o seu papel no que
motivara a violência contra Yvone.
E mais refletisse sobre a
situação, mais se convencia de que deveria ser muito elíptico quanto à razão de sua interveniência. De modo algum, o
velho podia suspeitar que se tratava de um triângulo sentimental.
À medida que se preparava para a
ligação, já internalizara a premissa de que a sua participação se impunha em
termos de relações familiares, eis que Yvone não tinha nenhum outro parente no
Rio.
Não
desconhecia, outrossim, que o Dr. Américo era dos primeiros a chegar na
repartição. Naquela primeira hora, o mais provável é que estivesse com bons
fluidos – ou, pelo menos, ainda não tivesse pela frente nenhum abacaxi. Por
isso, embora nervoso pelo que ouvira em passado recente do chefe, armou-se de
coragem para enfrentar a fera.
“Doutor Américo ? Aqui é o Albano...”
“Albano ! Vejo, pelo menos, que já acordou...”
O chefe da repartição
apreciava a ironia pesada.
Conhecendo muito bem a peça, ele foi em frente, como se nada houvesse.
“Dr.
Américo, se o assunto não tivesse urgência, não incomodaria o senhor a esta
hora...”
“Vamos logo, rapaz... diga ao que veio.”
“Tenho de levar hoje pela manhã cedo a senhora Yvone Souza à Delegacia
Especial de Atendimento à Mulher...”
“Que
é isso, seu Albano, o senhor virou despachante?”
Sem
perder o embalo, ele continuou:
“Até parece, Dr. Américo... mas a moça é de
família nossa conhecida no Nordeste, e não tem vivalma para ajudá-la no Rio...”
“O
que foi que houve?”
“O
marido dela é violento, muito violento.
Deu-lhe surra que a deixou muito machucada. Tive ontem de levá-la ao IML e daqui a pouco tenho de auxiliá-la
com o papelório na Delegacia Especial...”
“Hmm... só não estou entendendo porque o senhor tem de acompanhá-la...”
“Oh,
Doutor Américo! Não tenho dúvidas que o senhor agiria da mesma forma se moça
conhecida de sua família carecesse de sua ajuda...”
Interveio uma pausa, que Albano interpretou
como o espaço de tempo consumido pela reflexão do chefe, enquanto decidia sobre
a resposta.
“Albano, pelo que me diz – e não disponho de outro elemento de juízo –
você é o único apoio que a moça tem no Rio. Por isso, não seria correto de
minha parte criar empecilho para que venha a ajudá-la numa hora difícil. Sei
que essas coisas tomam tempo, mas, logo que possível, quero você aqui de
volta.”
Ele via que a estratégia estava
dando certo. Havia detalhes que omitira,
mas de uma certa forma não faltara com a verdade. Precisava, todavia,
carregar um pouco nas tintas, para que o dr. Américo não formasse expectativas demasiado otimistas quanto ao
horário de sua volta ao expediente.
“Gratíssimo, Dr. Américo! Vou procurar estar aí logo que possível, mas
não posso passar por cima da circunstância de que a jornada vai ser complicada.
O senhor não ignora a burocracia disso tudo... E ainda terei de passar no
Instituto Médico Legal, para apanhar com o Dr. Pinho e Silva o laudo...”
“Dr.
Pinho e Silva ?! Conheço ! Por estranho que pareça, já trabalhamos juntos em uma
ocasião... mas foi, é verdade, há algum
tempo...”
Albano engoliu em seco. A sua estória corria perigo se os dois se
falassem. Logo, no entanto, se acalmou. Pelo visto, desde muito que não
cruzavam. Não seria por aí que o chefe ficaria sabendo de sua relação com Yvone
e o realmente acontecera...
Aproveitando a deixa, ele tratou de encerrar a conversa, tomando cuidado
de não atar-se a compromissos que lhe diminuíssem o tempo. Tinha que ser
objetivo, para não dar muitas ilusões ao chefe quanto ao tempo da licença.
“No
correr do dia, Dr. Américo, prometo informar-lhe dos tempos que faltam e quando
me será possível retomar o expediente...”
“Epa,
rapaz! não estou gostando nada desse raciocínio...”
“Peço
ao senhor confiar em mim, Doutor Américo. Retomarei o trabalho tão pronto
quanto possível. Além disso, se me permitir, manterei contato com o senhor, mas
não quero abusar de seu tempo...”
“Não
se preocupe com isso, meu filho! Mantenha-me informado.”
Concluído o telefonema, o coração de Albano já não batia tão estugado.
Se não houvesse divulgação maior daquele fato policial, nutria a firme
esperança de que a sua mentirinha sobreviveria incólume.
* *
Pouco
depois, o casal saía do apartamento, rumo à delegacia. No ônibus, logo apareceu alguém que cedeu o
lugar a Yvone, decerto impressionado pelas marcas no rosto. Por sorte deles, o
tráfego não estava ruim, como de hábito.
Já no
centro, desceram perto da Praça Tiradentes, e rumaram para a Delegacia. O
pessoal de serviço reconheceu o casal, e em poucos minutos estavam no gabinete
da Delegada. Albano descreveu a passagem pelo IML e o exame de corpo-delito.
“Pretendo passar hoje por lá para apanhar o laudo.”
“Se
fosse o senhor, passava amanhã...”, disse a delegada. E vendo que Yvone se
quedava quieta, com ar distante, resolveu dar-lhe mais atenção: “Como se sente?
Algo lhe incomoda?”
Dando
a impressão de que saía de torpor, a moça custou a responder.
“Fora
a minha cara que ainda assusta as pessoas, a violência do Euri não me incomoda
tanto...”
Albano não conseguia dissimular a irritação com o hábito de Yvone de
referir-se ao marido por um apelido doméstico.
“Gostaria
de saber, doutora, quando poderemos ir ao apartamento para retirar os pertences
dela...”, perguntou.
“Leva
tempo a burocracia formal. Precisa de
advogado para conseguir a medida de segurança do juiz, dispondo sobre o
afastamento do marido-agressor da vítima. Mas talvez a informalidade pudesse
adiantar as coisas... Mandei intimação
para o Sr. Eurípides Souza e fiquei sabendo que está viajando.”
“Ele é caixeiro-viajante”,
disse Yvone num suspiro.
“E
parece que só volta ao Rio daqui a dois dias...”, disse a delegada. “Foi o
porteiro que informou o meu agente.”
Ao ouvirem isto, Albano e Yvone se
entreolharam.
“Bem,
a senhora tem o meu celular. Por ora, estamos arranchados no apê de amigo
meu...”
Levantando-se da
cadeira, sinalizou com a cabeça para a namorada que era hora de mexer-se.
* *
“Cê
tá com a chave do apartamento, né ?”
“Estou.”
Yvone
logo entende de que apartamento se trata. Albano, com um sorriso, afastou os
temores da namorada. Ali perto, havia loja com boa oferta de malas.
Pouco
depois, já munidos de duas, seguem para
o prédio onde moravam até a véspera.
Lá chegam por volta das onze. Para
ganhar tempo, apesar do dinheiro curto, foram de taxi.
A
cara que fez o porteiro Zé Antônio era daquelas que ficam gravadas nos
porta-retratos da memória.
“Tens notícias do
Eurípides? Sabes quando volta ?”, perguntou Albano.
“Como
de hábito, não me disse nada. Mas ouvi de morador que voltaria amanhã à
noite...”
“Vejo que a barra tá limpa...
qualquer coisa, me avisa pelo interfone.”
“Vocês vão ficar no teu apê ?”
“Por
enquanto, não. Tamos só de passagem”, disse ele, com um meio-sorriso.
O
casal sobe direto para o apartamento de Yvone. Aberta a porta, e as malas na
sala, Albano sente que precisa ficar ao lado dela no primeiro momento. Diante
do palco dos horrores por que passara, ela parecia transfixada, incapaz de
qualquer movimento. De pronto, deixa para depois a sua passagem pelo próprio
apartamento.
Hirta, como estátua de sal, ela se cinge, por uns bons minutos a
choramingar, enquanto contempla a bagunça na sala.
Mais
do que a impressão, ele tem a certeza de
que Yvone se sente diante do cenário da agressão sofrida. Como cruel série de deixas naquele palco de
instantes transidos de medo e dor, Albano pode imaginar o que tudo aquilo faz
por reviver momentos que ela precisa esquecer.
Dessarte, ele se interpõe entre ela e a cena congelada que está diante
deles. Assim, enquanto a envolve com carinho em longo abraço, a beija, seguida e ternamente, tanto
na boca, quanto nas faces. Nos intervalos,sussurra aos seus ouvidos :
“Amorzinho, reage. Não deixa que essas cenas de filme ruim figurem na sua memória. Isto que está aí é
passado. Não permita que ele tenha guarida nas tuas lembranças.”
Transcorrido um tempo, Yvone entendeu o propósito do namorado e se
deixou levar pelas carícias. Aninhou a cabeça no regaço do companheiro e
pareceu mergulhar em realidade bem diversa
da que padecera naquele ambiente.
Então, Albano sentiu chegado o momento de por fim às memórias ruins.
Envolvendo-a nos seus braços, quase num suspiro, murmura no seu no ouvido: “É
hora de virar a página, minha querida. Vamos nos mexer, amor meu. Que tal a
gente ir em frente, passar para o
quarto, e lá Você começar a escolher o que vale a pena levar.”
O
jeito e a paciência do companheiro acabaram por vencer o trauma de Yvone e o
consequente enrijecimento. Desse modo,
quando começa a jogar vestidos, roupas e demais pertences na mala, por um
átimo, ela lhe dá a impressão de descambar rápido para o estado oposto, como se
da virtual paralisia corresse o risco de tombar em um oposto frenesi. Para
evitar que amontoe coisas inúteis, ele se apressa em dizer que não há condição
de carregar tudo o que, em primeiro relance,
ela vai separando para levar.
“Pega tudo o que quiser. O que a gente não puder levar pra casa do
João, deixamos no meu apê. Assim, você se garante, e não larga nada aqui de que
mais tarde possa se arrepender de haver deixado com ele.”
Yvone
gostou da sugestão, que simplificava o processo, e lhe dava uma segunda chance
antes de desfazer-se de suas coisas. Por isso, deu-lhe um beijo mais comprido e
ensaiou o primeiro sorriso.
A
função correu rápido. Ao vê-la dar sinais de que não restava muito por fazer,
lembrou-se de providência que ela ainda não tomara.
“Onde
estão os teus documentos?”
Surpresa, ela o encara: “Toda razão. Tinha me esquecido por completo!
Estão na escrivaninha do Euri!”
Guiados por Yvone, entram em cubículo, que o marido transformara em
escritório.
“A
gaveta está fechada a chave!”, exclamou.
Sem
hesitar, Albano força a fechadura.
Em
seguida, a namorada se põe à obra. Depois de conferi-los, separou os seus
documentos e o pouco restante que existia de pessoal dela. Ao dar com envelope com dinheiro, olhou para
o namorado.
“É
teu ou não?”
“Não. Isto é dele.”
“Então, deixa aí.”
Cerca
de duas horas depois do começo, com as cenas da altercação e das covardes
sevícias enfim jogadas na lata de lixo, Yvone
de novo o encara.
“Tudo
em cima?”, pergunta Albano.
“Sim.
Acho que não me esqueci de nada.”
“Então, querida, me dá, só pra checar, uma repassada em todo o
apartamento.”
Cerca
de cinco minutos depois, ela volta, sem nada nas mãos. Excluídas as marcas da
sanha bestial e enfurecida que ainda trazia no semblante, dir-se-ía que estava
de cara lavada, livre das sombras de uma
hora má.
“Pudemos carregar o que é seu para o meu apê?”
“Só
usamos o elevador para o que for pesado. Pro resto, eu levo pela escada!”
Dizendo que não era aleijada e podia ajudar, Yvone começa a travessia.
* *
Como
Yvone era jeitosa, conseguiram arrumar as roupas com um pouco de ordem. Por
outro lado, os adereços, objetos de toucador e os estojos de maquiagem, ela os
separou entre um mínimo indispensável, que levaria consigo, e o restante, que
dispôs como pôde no apê bastante menor de Albano.
Assim, lá pelas duas, quando a fome bateu, ele já cuidara de trazer tudo
o que ela desejava guardar, fosse vestuário, objetos vários e uma que outra
peça de mobília. Por sorte – e muito por
conta da hora – não topou, no corredor e nas escadas, com vivalma.
Desse
modo, ao cerrar o apartamento, checando janelas, luzes e torneiras, ele levou
tão só dois porta-retratos, que na correria a namorada deixara para trás: a
foto dos pais (falecidos) de Yvone, no dia do casório, e o retrato dela, muito
jovem ainda, sorridente e solteira.
A
caminho de botequim da vizinhança, onde serviam um aceitável bife com fritas,
passaram pela portaria. Ali estava, atento como um cérbero, o conhecido Zé
Antônio. Pensando menos na violência de Eurípides e mais nas confusões e
maçadas do casalzinho – de que temia algumas
pudessem sobrar para ele – o porteiro sequer os cumprimentou, servindo-se
daquele olhar esgazeado que nada parece ver enquanto tudo registra.
* *
A
tarde passou rápido. Depois do almoço, em que a fome lhes fez limpar o prato,
deram um pulo no apê de Albano para pegar o que tinham separado. Ainda não
faziam ideia do tempo que passariam na casa de João. Pela falta de conforto,
esperavam que fosse breve... Por isso e para facilitar o transporte, procuraram
limitar ao máximo o que carregariam.
Lá
chegados, depositaram as coisas e logo saíram. Havia mercadinho por perto, onde
pretendiam fazer um rancho. Os dois bem se lembravam da noite passada, e não
tinham a menor intenção de passar fome outra vez.
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