Sentados à mesa, a moleza
do sofá fazia com que os quadris se tocassem. Como não sentisse de Yvone
qualquer reação à aproximação física dos corpos, em pouco tempo o seu braço lhe
envolve a cintura. A extrema proximidade tem
dinâmica própria. Assim, não há de tardar muito - e antes mesmo da vinda
do maître com o menu – que o casal vá trocar o beijo que sela a reconciliação.
Se não
dura muito, tampouco lhes escapa a intensidade. Ambos se entregam com o ardor
da dupla que sabe chegada a hora do mútuo abandono. Caída a barreira da
querela, os dois se abraçam com o gosto e enlevo, que sucede às brigas
intempestivas.
A
partir deste momento, os pratos encomendados viram acessórios, pois os seus
desejos levantam a cabeça na ânsia do amor bruscamente reprimido. E embora não
enjeitem as iguarias, a redescoberta química do casalzinho se vai consumir em
outras prioridades.
Comeram com apetite o frango à
caçadora que estava nas especialidades da casa.
Sem
concertar-se, o casal, no entanto, preferiu ser frugal na refeição. Albano o
explicou pela estrada a enfrentar na volta ao Rio. Assim, ficou no expresso,
que Yvone, com muxoxo, recusou.
X
V I I
Saíram
do restaurante sorridentes e de mãos dadas. Após entreolhar-se, não lhes foi
necessária uma só palavra para se acertarem que chegara a hora de voltar ao
Rio.
Íam
com calma, com o passo tranquilo de casalzinho que frui do próprio
contentamento.
“O que é ‘cê achou de Petrópolis ?”
“Para
dizer verdade, não sei... Tenho a impressão de que me pareceu mais cuidada
quando estive aqui faz tempo...”, disse ela, com o sorriso de quem está
pensando noutra coisa.
Como o carro ficara
debaixo de árvore, o interior não estava muito quente.
“O clima de Petrópolis é realmente
agradável...”, disse ele pensando na temperatura que os esperava no Rio de
Janeiro.
“Esqueci de te dizer, mas não precisamos de ter pressa na viagem”,
suspirou ela.
“Isso
é bom, é muito bom, mesmo”, comentou ele, enquanto seus olhos a fitavam.
“Quer
saber o porquê da minha tranquilidade?”, respondeu ela, sem baixar a vista.
“Quem
não quer saber de boa notícia?”
“É certo que o Eurípides só chega no Rio
amanhã, à noitinha.”
Ela
não se fizera de rogada, nem tardara na resposta. E leve, diáfano sorriso
brincava na sua face.
“Meu
amor! que boa, que maravilhosa notícia você me dá...”
E por
primeira vez, os dois namorados se abraçam com o mútuo abandono de
momento que sentem privilegiado.
X V I I I
Àquela hora não havia muitos carros na
estrada. Depois da saída de Petrópolis, ele preferiu o caminho mais antigo, que
conhecia melhor. Sabia que havia um motel à direita de quem descia, de fácil
acesso. Faz tempo alguém lhe havia recomendado, como de bom aspecto, sem ser
muito caro.
Assim, com a pista meio vazia, se foi
despedindo do entorno, sinalizando um que outro ponto para Yvone. Ela, com ar
sonolento, espiava a paisagem, a cabeça recostada no ombro de Albano.
Ele
não tinha pressa. Não estava muito seguro da distância que o separava do local,
onde existia discreta sinalização. Seria um problema se deixasse escapar o
recanto para onde a levava.
O seu
pouco conhecimento lhe aumentava a incerteza. Sobretudo, queria evitar que a
sua linguagem corporal transmitisse tal sensação à companheira.
“Falta
muito?” perguntou, com os olhos meio fechados.
Embora
não tivesse dúvidas acerca de que se tratava, ela lhe pareceu meio desligada, e
por isso não viu ansiedade na indagação.
“Não, meu amor. Estamos quase
chegando.”
Rodaram,
no entanto, mais quinze minutos, sem que o cartaz aparecesse.
Principia a temer no pior, quando, em uma curva, afinal surge a
indicação.
“Agora, estamos chegando mesmo, minha
querida.”
Com
cuidado, por ser estradinha de terra, e ainda por cima mal conservada,
encaminhou o Fusca para o estacionamento, onde havia uns três carros.
“Acho
melhor eu ir lá dentro, apanhar a chave e vir aqui te buscar”.
“ De
acordo, meu amor”, disse ela, sorrindo, mas com olhar perdido nas árvores.
Um
pouco sem jeito, ele sai do carro, e caminha, a passos rápidos, para a porta de
entrada.
A recepção é tão acanhada,
quanto lhe parecem as dependências do motel. Há dois quartos disponíveis, porém
só o mais caro está preparado.
Como
fizesse menção de apanhar a chave, o empregado que não o encara, com leve
tapinha no braço lhe interrompe o movimento.
“O
pagamento é antecipado.”
“Aceita cartão de crédito?”
“Ok, mas só com débito.”
Será
que tenho suficiente na conta?, pensa ele. Sente certa irritação com a postura
burocrática daquele careta. Não acredita que o motel tenha muito movimento,
além do mais por ser de acesso um tanto difícil. Mas tinha que respirar fundo e
ir em frente. O jeito era passar o cartão e rezar pra que a máquina não o
recusasse.
Assim, entrega o cartão para que o tipo o passe logo e ele possa ir
logo buscar a Yvone. Deixar aquele
fulaninho pra trás é o que mais deseja.
Com a
gravidade a caracterizá-lo sempre, o tipo examina com cuidado o cartão de
plástico, na fisionomia carimbada a sua desconfiança de princípio. Talvez o
empregado haja sentido a insegurança de Albano. De todo modo, o jeito dele era
controlar-se, para que a formalidade do cartão fosse superada, e pudesse ir
apanhá-la no carro. Esperava que aquela súbita dificuldade e o atraso
consequente, não a fizessem mudar de ideia...
Transcorreu ainda um espaço de tempo que preferiu não determinar quanto.
O empregado – que Albano já encara como se fosse um porteiro sádico – afinal
passou com expressão ausente o maldito
cartão, examina detidamente o que a máquina lhe diz, e ao cabo de outro longo,
infindável minuto, se volta para ele.
“Positivo. O cartão tem fundos. O senhor pode entrar.”
“Obrigado.”
Dito
isto, ficou irritado consigo mesmo, por causa do agradecimento que não tinha
nenhuma razão de ser...
“O
senhor me dá um momento então, que vou buscar o meu par.”
O
fulaninho funga mais uma vez, enquanto o examina atentamente.
“Seu
par? Não é uma moça?”
Albano quase não acredita no que ouve. De onde saíra esse tipo? Será que
só fazia perguntas cretinas?
“Evidente que a minha acompanhante é uma moça! Me dá licença que eu já
volto”.
Encontrou Yvone meio
inquieta.
“Puxa, como demorou! O que é que houve ?”
“Não
te preocupes, amor. Tá tudo sob controle...”
“É o
que eu espero...”
Depois de trancar o carro, em dois minutos a dupla passava pela
portaria.
Com
os olhos fixos na moça, o porteiro entregou a chave para Albano.
“É o
terceiro à esquerda”, disse o homenzinho, ainda sem despegar as vistas da
jovem.
Mais adentram o lugar, e mais
ele se pergunta se não teria sido melhor ir para os da Barra.
A cama
está feita, e os lençóis parecem ok.
Mas no geral fica a impressão de limpeza
mal feita. Sob pretexto decerto que a penumbra é mais romântica, há apenas dois
abajures e com luz mortiça.
Olha
meio sem jeito para o quarto e o desmazelo que paira no ambiente. Não dá pra
não se sentir culpado pelo lugar que
desencavara, tão acanhado, tão xubrega... Não seria o caso de tomar atitude,
tirar a Yvone dali e levá-la a motel no Rio?
Os dois
se entreolham, e pela sua cara ela mais
ou menos imagina o que está pensando.
“Não
esquenta, meu amor. Sei que a barra
pesa um pouco, mas por que nos esfalfar-nos à cata de outro motel?”
Surpreso, Albano se enternece com o seu jeito prático. A dúvida se
evapora, e junto com o sorriso, vem a vontade.
Na cama, ambos estão de joelhos. Sem
pressa, com tenteante ternura, os dois se vão descobrindo. Às vezes, se
embatuca em botão da blusa, ela o ajuda. Em cada gesto, em cada toque, o desejo
é um mestre de cerimônias a princípio contido, quem sabe, em demasia. Mas na
aproximação dos corpos, nos primeiros roçares, seria como envolvesse o casal na
magia da tantalizante proximidade, cujas
primícias os dois ainda mais imaginam do que sentem, enquanto as experiências
do conhecimento se sucedem, lentamente de início, e se vão desabrochando como
bela e orvalhada flor preguiçosa, numa trilha que se adentra em quase carícias
e trêmulos carinhos, a prometerem, em cicios tão incompreensíveis quanto
manifestos, visões do paraíso que não cessam de rolar como seixos na água
cristalina da fonte que a cada instante
reluz e se esconde, nos buliçosos encantos de momento tão transido que a um
tempo foge e se entrega na eterna corrida em que o par, ora se envolve em
sôfregos abraços nas trevas de uma gruta, ora se desvela nas tíbias luzes dos
encontros, em que o casal se embriaga com as gotas do próprio suor,
transtornados por experiência que será única para eles, embora se repita
através dos séculos com a força da monotonia, que a cada vez se transmuta, como
se fora a vez primeira.
A
volúpia é dona dos corpos e das carícias. Na mútua entrega, o prazer se estende
por corpos que se assanham e se estendem na louca corrida das sensações, que
mudam a cada instante, enquanto crescem, se entredescobrem e se transformam em
sôfrega e derramada busca daquela união sem peias e sem outras regras senão as
do sexo e, quem sabe?, as da luxúria que por vezes se esconde nos enleios e nas
negaças de um quase-véu de frágil, dócil,
quiçá falso, e, no entanto,
estuante em invasivo, penetrante recato.
X
I X
Passou o tempo, e pareceu a
Yvone que a tarde avançara bastante. Meio abraçado a envolver-lhe os peitos
nus, Albano se deixa afundar no seu regaço.
Foi
neste momento que voz conhecida fê-la estremecer. Vinha do corredor e pelo
visto se altercava com o tom monocórdio do porteiro.
“Me deixa passar! ”
Ela
não acreditava no que ouvia: ‘seria possível?’
Então
a porta se abre, com estrondo.
Nervosa, trêmula mesmo, levanta a
cabeça. ‘Não pode ser verdade?!’
Um instante, que semelha infindável,
transcorre. Apoiada nos cotovelos, os seus olhos esgazeados perscrutam a
meia-luz do aposento.
“O que
é que houve, minha querida?”
Ao seu
lado, o companheiro se ergue num repelão, enquanto tenta entender o que está
acontecendo.
“Nada,
meu amor. Foi só um meio-pesadelo... Ouvi e meio que vi o Eurípides...”
Como
se aquele nome fosse campaínha, ele se detém por momentos.
“Minha
querida, não foi a melhor maneira de despertar, mas talvez seja oportuno que
voltemos para o Rio...”
Ao
dar-se conta de onde estão, e da visão,
ela sorri, aliviada.
“Você está certíssimo. Vamos embora
daqui.”
Não
tardam muito para vestir-se. Um olhar rápido em torno do quarto, e atravessam o
corredor vazio. Não há ninguém na portaria.
Lá
fora, o Fusca custa um pouco a pegar. Ele não se afoba. Devagar, o carro passa
pela estrada de terra. Mais uns minutos e ei-los de volta à Rio-Petrópolis.
No
caminho – o crepúsculo principia a anunciar-se – ela se achega ao corpo do
namorado. A cercania, no entanto, será diversa daquela de antes. Não é só
segredo que partilham, mas a mútua, confiante entrega que os aproxima. Isto
eles sentem, sobretudo nos intensos, cúmplices olhares que trocam com o mesmo
abandono do mítico mergulhador que se lança confiante nas águas profundas de um
mar sereno.
O amor
guarda surpresas.
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