segunda-feira, 2 de junho de 2014

CIDADE NUA VII


                                       A   DAMA  DO  ELEVADOR

 
                                                       X   V    I

                

                 Sentados à mesa, a moleza do sofá fazia com que os quadris se tocassem. Como não sentisse de Yvone qualquer reação à aproximação física dos corpos, em pouco tempo o seu braço lhe envolve a cintura. A extrema proximidade tem  dinâmica própria. Assim, não há de tardar muito - e antes mesmo da vinda do maître com o menu – que o casal vá trocar o beijo que sela a reconciliação.

                Se não dura muito, tampouco lhes escapa a intensidade. Ambos se entregam com o ardor da dupla que sabe chegada a hora do mútuo abandono. Caída a barreira da querela, os dois se abraçam com o gosto e enlevo, que sucede às brigas intempestivas.

                A partir deste momento, os pratos encomendados viram acessórios, pois os seus desejos levantam a cabeça na ânsia do amor bruscamente reprimido. E embora não enjeitem as iguarias, a redescoberta química do casalzinho se vai consumir em outras prioridades.

                 Comeram com apetite o frango à caçadora que estava nas especialidades da casa.

                  Sem concertar-se, o casal, no entanto, preferiu ser frugal na refeição. Albano o explicou pela estrada a enfrentar na volta ao Rio. Assim, ficou no expresso, que Yvone, com muxoxo, recusou.

                

                                                    X  V  I  I

 

                 Saíram do restaurante sorridentes e de mãos dadas. Após entreolhar-se, não lhes foi necessária uma só palavra para se acertarem que chegara a hora de voltar ao Rio.

                 Íam com calma, com o passo tranquilo de casalzinho que frui do próprio contentamento.               

                 “O que é ‘cê achou de Petrópolis ?”

                 “Para dizer verdade, não sei... Tenho a impressão de que me pareceu mais cuidada quando estive aqui faz tempo...”, disse ela, com o sorriso de quem está pensando noutra coisa. 

                 Como o carro ficara debaixo de árvore, o interior não estava muito quente.

                 “O clima de Petrópolis é realmente agradável...”, disse ele pensando na temperatura que os esperava no Rio de Janeiro.

                 “Esqueci de te dizer, mas não precisamos de ter pressa na viagem”, suspirou ela.

                “Isso é bom, é muito bom, mesmo”, comentou ele, enquanto seus olhos a fitavam.

                “Quer saber o porquê da minha tranquilidade?”, respondeu ela, sem baixar a vista.

                “Quem não quer saber de boa notícia?”

                É certo que o Eurípides só chega no Rio amanhã, à noitinha.”

                Ela não se fizera de rogada, nem tardara na resposta. E leve, diáfano sorriso brincava na sua face.

                “Meu amor! que boa, que maravilhosa notícia você me dá...”

                 E por primeira vez, os dois namorados se abraçam com o mútuo abandono  de  momento que sentem privilegiado.       

                     

                                                    X V I I I

 

                 Àquela hora não havia muitos carros na estrada. Depois da saída de Petrópolis, ele preferiu o caminho mais antigo, que conhecia melhor. Sabia que havia um motel à direita de quem descia, de fácil acesso. Faz tempo alguém lhe havia recomendado, como de bom aspecto, sem ser muito caro.

                 Assim, com a pista meio vazia, se foi despedindo do entorno, sinalizando um que outro ponto para Yvone. Ela, com ar sonolento, espiava a paisagem, a cabeça recostada no ombro de Albano.

                Ele não tinha pressa. Não estava muito seguro da distância que o separava do local, onde existia discreta sinalização. Seria um problema se deixasse escapar o recanto para onde a levava.

               O seu pouco conhecimento lhe aumentava a incerteza. Sobretudo, queria evitar que a sua linguagem corporal transmitisse tal sensação à companheira.

              “Falta muito?” perguntou, com os olhos meio fechados.

              Embora não tivesse dúvidas acerca de que se tratava, ela lhe pareceu meio desligada, e por isso não viu ansiedade na indagação.

              “Não, meu amor. Estamos quase chegando.”

              Rodaram, no entanto, mais quinze minutos, sem que o cartaz aparecesse.

              Principia a temer no pior, quando, em uma curva, afinal surge a indicação.

              Agora, estamos chegando mesmo, minha querida.”

              Com cuidado, por ser estradinha de terra, e ainda por cima mal conservada, encaminhou o Fusca para o estacionamento, onde havia uns três carros. 

              “Acho melhor eu ir lá dentro, apanhar a chave e vir aqui te buscar”.

               “ De acordo, meu amor”, disse ela, sorrindo, mas com olhar perdido nas árvores.

               Um pouco sem jeito, ele sai do carro, e caminha, a passos rápidos, para a porta de entrada.

                A recepção é tão acanhada, quanto lhe parecem as dependências do motel. Há dois quartos disponíveis, porém só o mais caro está preparado.

                Como fizesse menção de apanhar a chave, o empregado que não o encara, com leve tapinha no braço lhe interrompe o movimento.

                 “O pagamento é antecipado.”

                  “Aceita cartão de crédito?”

                  “Ok, mas só com débito.”

                  Será que tenho suficiente na conta?, pensa ele. Sente certa irritação com a postura burocrática daquele careta. Não acredita que o motel tenha muito movimento, além do mais por ser de acesso um tanto difícil. Mas tinha que respirar fundo e ir em frente. O jeito era passar o cartão e rezar pra que a máquina não o recusasse.

                  Assim, entrega o cartão para que o tipo o passe logo e ele possa ir logo  buscar a Yvone. Deixar aquele fulaninho pra trás é o que mais deseja.

                 Com a gravidade a caracterizá-lo sempre, o tipo examina com cuidado o cartão de plástico, na fisionomia carimbada a sua desconfiança de princípio. Talvez o empregado haja sentido a insegurança de Albano. De todo modo, o jeito dele era controlar-se, para que a formalidade do cartão fosse superada, e pudesse ir apanhá-la no carro. Esperava que aquela súbita dificuldade e o atraso consequente, não a fizessem mudar de ideia...

                 Transcorreu ainda um espaço de tempo que preferiu não determinar quanto. O empregado – que Albano já encara como se fosse um porteiro sádico – afinal passou com  expressão ausente o maldito cartão, examina detidamente o que a máquina lhe diz, e ao cabo de outro longo, infindável minuto, se volta para ele.

                 “Positivo. O cartão tem fundos. O senhor pode entrar.”

                 “Obrigado.”

                  Dito isto, ficou irritado consigo mesmo, por causa do agradecimento que não tinha nenhuma razão de ser...

                 “O senhor me dá um momento então, que vou buscar o meu par.”

                 O fulaninho funga mais uma vez, enquanto o examina atentamente.

                 “Seu par? Não é uma moça?”

                  Albano quase não acredita no que ouve. De onde saíra esse tipo? Será que só fazia perguntas cretinas?

                 “Evidente que a minha acompanhante é uma moça! Me dá licença que eu já volto”.   

                 Encontrou Yvone meio inquieta.

                 “Puxa, como demorou! O que é que houve ?”

                 “Não te preocupes, amor. Tá tudo sob controle...”

                 “É o que eu espero...”

                  Depois de trancar o carro, em dois minutos a dupla passava pela portaria.

                  Com os olhos fixos na moça, o porteiro entregou a chave para Albano.

                  “É o terceiro à esquerda”, disse o homenzinho, ainda sem despegar as vistas da jovem.

                 Mais adentram o lugar, e mais ele se pergunta se não teria sido melhor ir para os da Barra.

                A cama está feita, e os lençóis parecem ok. Mas no geral fica a impressão  de limpeza mal feita. Sob pretexto decerto que a penumbra é mais romântica, há apenas dois abajures e com luz mortiça.

                Olha meio sem jeito para o quarto e o desmazelo que paira no ambiente. Não dá pra não se sentir  culpado pelo lugar que desencavara, tão acanhado, tão xubrega... Não seria o caso de tomar atitude, tirar a Yvone dali e levá-la a motel no Rio?

               Os dois se entreolham, e pela sua cara  ela mais ou menos imagina o que está pensando.

               “Não esquenta, meu amor. Sei que a barra pesa um pouco, mas por que nos esfalfar-nos à cata de outro motel?”

               Surpreso, Albano se enternece com o seu jeito prático. A dúvida se evapora, e junto com o sorriso, vem a vontade.

               Na cama, ambos estão de joelhos. Sem pressa, com tenteante ternura, os dois se vão descobrindo. Às vezes, se embatuca em botão da blusa, ela o ajuda. Em cada gesto, em cada toque, o desejo é um mestre de cerimônias a princípio contido, quem sabe, em demasia. Mas na aproximação dos corpos, nos primeiros roçares, seria como envolvesse o casal na magia da tantalizante proximidade,  cujas primícias os dois ainda mais imaginam do que sentem, enquanto as experiências do conhecimento se sucedem, lentamente de início, e se vão desabrochando como bela e orvalhada flor preguiçosa, numa trilha que se adentra em quase carícias e trêmulos carinhos, a prometerem, em cicios tão incompreensíveis quanto manifestos, visões do paraíso que não cessam de rolar como seixos na água cristalina da  fonte que a cada instante reluz e se esconde, nos buliçosos encantos de momento tão transido que a um tempo foge e se entrega na eterna corrida em que o par, ora se envolve em sôfregos abraços nas trevas de uma gruta, ora se desvela nas tíbias luzes dos encontros, em que o casal se embriaga com as gotas do próprio suor, transtornados por experiência que será única para eles, embora se repita através dos séculos com a força da monotonia, que a cada vez se transmuta, como se fora a vez primeira.

                A volúpia é dona dos corpos e das carícias. Na mútua entrega, o prazer se estende por corpos que se assanham e se estendem na louca corrida das sensações, que mudam a cada instante, enquanto crescem, se entredescobrem e se transformam em sôfrega e derramada busca daquela união sem peias e sem outras regras senão as do sexo e, quem sabe?, as da luxúria que por vezes se esconde nos enleios e nas negaças de um quase-véu de frágil, dócil,  quiçá falso, e, no entanto,  estuante em invasivo, penetrante recato.               

 

                                                      X  I  X

 

                Passou o tempo, e pareceu a Yvone que a tarde avançara bastante. Meio abraçado a envolver-lhe os peitos nus, Albano se deixa afundar no seu regaço.

                Foi neste momento que voz conhecida fê-la estremecer. Vinha do corredor e pelo visto se altercava com o tom monocórdio do porteiro.

                Me deixa passar!

                Ela não acreditava no que ouvia: ‘seria possível?’

                Então a porta se abre, com estrondo.

                Nervosa, trêmula mesmo,  levanta a cabeça. ‘Não pode ser verdade?!’

                Um instante, que semelha infindável, transcorre. Apoiada nos cotovelos, os seus olhos esgazeados perscrutam a meia-luz do aposento.

                “O que é que houve, minha querida?”

                Ao seu lado, o companheiro se ergue num repelão, enquanto tenta entender o que está acontecendo.

                “Nada, meu amor. Foi só um meio-pesadelo... Ouvi e meio que vi o Eurípides...”

                Como se aquele nome fosse campaínha, ele se detém por momentos.

                “Minha querida, não foi a melhor maneira de despertar, mas talvez seja oportuno que voltemos para o Rio...”

                Ao dar-se conta de onde estão, e da visão,  ela sorri, aliviada.

                “Você está certíssimo. Vamos embora daqui.” 

                Não tardam muito para vestir-se. Um olhar rápido em torno do quarto, e atravessam o corredor vazio. Não há ninguém na portaria.

                Lá fora, o Fusca custa um pouco a pegar. Ele não se afoba. Devagar, o carro passa pela estrada de terra. Mais uns minutos e ei-los de volta à Rio-Petrópolis.

                No caminho – o crepúsculo principia a anunciar-se – ela se achega ao corpo do namorado. A cercania, no entanto, será diversa daquela de antes. Não é só segredo que partilham, mas a mútua, confiante entrega que os aproxima. Isto eles sentem, sobretudo nos intensos, cúmplices olhares que trocam com o mesmo abandono do mítico mergulhador que se lança confiante nas águas profundas de um mar sereno.

                O amor guarda surpresas.

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