A DAMA DO ELEVADOR
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A hora era a de costume, mas, como os
ventos, variava bastante. Desta feita, Albano não esperou tanto assim. E a
dizer verdade, viera preparado para aguardar o tempo que fosse necessário, pois
para ele se era notícia prometida, só podia ser boa.
De longe, ela
apontou sorridente. Por sua vez, procura controlar-se: receia ser levado por
expectativas enganosas.
Quando se abraçam,
Yvone ainda sorri. Mas há certo nervosismo entre eles, como se a notícia
prometida fosse daquelas que turvam o ambiente.
“E então?”
O sorriso
continua pendurado nos seus lábios. E, com o passar dos minutos, parece perder
substância, como algo que se vai evaporando.
Por fim, passam os
minutos, à medida que a esperança se vai afastando da mesinha.
“Não sei o que
está dando no Eurípides. Ontem me disse que vai estar fora, a serviço, por uns
dez dias. Viaja no domingo.”
Como única
resposta, o rosto dele se contrai. Raiva e decepção lhe passam pela mente. Difícil
saber se irá conseguir manter a compostura. Dada a situação, porém, se pretende
ter alguma ilusão sobre o futuro da relação, não ignora não dispor de muitas
cartas. Por isso, se agarra à hipocrisia como a única saída para a esperança.
“Que bom,
querida! Assim vamos ter mais tempo pra nós...”
“É... mas
precisamos ser prudentes, porque às vezes o Euri diz uma coisa e faz outra bem
diversa...”
Que
interessante, pensou. Agora me regala com o apelido íntimo do maridão, além de
me repisar a cautela que deve pairar sempre sobre nós. E nada sobre o projeto de vida que pus a seus pés...
De qualquer forma, sente que, como no
poema do Drummond, surgira entre eles uma senhora pedra. Para onde fossem, fingisse
o que lhe desse na telha, ela estará sempre lá, grande, angulosa, incômoda e,
sobretudo, pesada.
Atarantado, continua a pensar em meios e
modos de sair do labirinto. Talvez o seu erro estivesse na tarde do motel. A
confundira com opção existencial, quem sabe, a promessa de outro tipo de
relação, e a consequente quebra da fajutice do casamento de Yvone com o caixeiro-viajante.
Entrementes, se a
cólera lhe aquece as veias, o semblante continua vazio, inexpressivo. Como
obstinado, luta para manter vivo o que resta do próprio sonho.
X X I V
Dois dias
depois, quando o viu partir de mala e cuia, acha que é deboche da sorte
submetê-lo a tal visão. Por isso, não entra logo em contato com Yvone. Para
tudo, há um limite. Não aceita que a namorada recuse, por omissão, a sua
proposta, como se sequer merecesse ser explicitada.
Se aquele estrupício representa para ela um esquema
preferível de vida, que faça bom uso. Estava cansado de bancar o bonzinho. Quem
faz o que bem entende, tem que levar o troco. Não havia lugar pra dissimulação.
Daí, a necessidade de ser coerente, no sentimento e nas propostas.
Se quisesse ser levado
a sério, carece de fazê-la sentir que não era joguete, como se estivesse sempre
disponível para prestar-se aos seus caprichos. Que respeito poderia ter por
ele, se o visse como quem está disposto a engolir toda classe de sapos, para
ficar junto dela?
Ele não ignora navegar em mar de arrecifes.
Qual a serventia de aceitar tantas negações brancas? Mais reflita sobre o assunto, e mais se
convence de que não pode tergiversar, fazer de conta de que está sendo durão e,
na verdade, vai de concessão em concessão, perdendo o controle da situação...
Não se trata aqui de machismo, porém de pundonor.
Lá na sua terra, a ouvira por mais de uma vez. Para sublinhar o brio, o
amor-próprio, que não se deve
enjeitar... Se ela não o leva a sério, se pensa que pode
pôr e dispor à vontade, a coisa está mal parada. Por isso, respira fundo e diz
para seus botões, falando baixo, com as
sílabas bem escandidas: sob nenhum pretexto,
não vou procurá-la. Irei ao bar ou aonde for, se quiser conversar
comigo. Mas não mais vou ceder. Posso até
repetir a proposta da fuga. Estou pronto a juntar os nossos trapos. O que não
vou aceitar é ser enrolado.
Mais aprofunda a
reflexão, e mais se convence de que o caminho das pedras está por ali. Com
resolução, ele forçaria a crise. Pois o propósito de perseverar, assim, no
vazio, não vale a pena. De nada serve fazer-lhe todas as vontades, pois,
trocando em miúdos, estará tão somente se apegando a uma ilusão.
Pois aí é que está
o perigo... Confrontada com soluções definitivas, Yvone nunca sequer lhe acenou
com ruptura, a passada sem volta. A despeito da relação tumultuada com
Eurípides, em que o medo e não o amor é a causa determinante, ela não
cogita de livrar-se do traste.
Daí, ela podia ter um caso com
ele, e até uma tarde no motel... Mas entrar em união estável, nem pensar! E com
todas as suas negaças, jamais sequer aludira a tal possibilidade.
Por vezes,
todavia, tinha ganas de contraditar tudo isso. Sonhadora, romântica, quem sabe ela não poderia estar por abraçar a
felicidade, superando assim a relação episódica, sempre na dependência das
brechas eventuais provocadas pelas viagens a serviço do marido.
Não
obstante tais perspectivas, não lhe seria possível ignorar que nas conversas ela jamais acenara com a
possibilidade de separar-se do marido. Posta diante de decisão nesse sentido,
toda a tentativa de saltar ou furar a barreira seria ignorada por silêncio na aparência
irremovível...
X X V
Volta e
meia consulta o celular, na esperança de palavra sua. No terceiro dia, está a
ponto de inventar-se pretexto de lhe mandar mensagem, quando depara o que vem
aguardando há dias.
“Vamos deixar de
bobagem e nos curtir um pouco?”
Sem hesitar,
ele digita:
“Ok. Que tal
hoje, hora e lugar de costume? Beijos”
“Ok! Lá
estarei, beijos.”
*
Deu-se conta
que a digitação no celular atraíra público.
Embora fosse igualmente
curiosa, ele sentia que, ao contrário da outra baranga, esta não torcia contra.
“Tenho a maior
admiração por quem consegue escrever nisso... Eu já desisti...”
“Pois não devia. Não há maneira
melhor, mais rápida e segura do que esta.”
“É o que dizem,
Albano. Mas esquecem de um detalhe: a barreira tecnológica...”
“Besteira. Vá
tentando que a coisa se resolve.”
“É exasperante
a segurança de vocês... como se fosse a coisa mais simples do mundo.”
“E na verdade,
é! Continue tentando...”
“Fácil dizer...”
E a gorda
Eudália, com seu ar cansado, se foi afastando.
*
A cada vez
que Yvone apontava à distância, as suas resoluções, tão firmes quando estava
sozinho, se viam de repente em suspenso. Não que as pusesse de lado, porque o
seu projeto não mudava. No entanto, o fato de ter a cabeça feita não o impedia
de curtir a companhia da namorada. Algum dia, de algum modo, lograria reverter
o quadro. Enquanto isso não fosse possível, porém, o único jeito estava em dar
corda àquele peixinho ...
“Oi, amor!”
Albano
mergulhou feliz no rosto sorridente da namorada. A espevitada ternura, e o ímpeto do amasso com
que a recebeu, lhe pareceram algo estranhos, como se cantor de impecável ouvido
de repente desafinasse.
Assim,
depois das efusões, ela o encarou, meio intrigada.
“Que é que há, meu
amor?”
“Nada”,
disse ele com um sorriso, “além da alegria de te beijar.”
Yvone achou
graça.
“Nunca te vi
tão romântico...”
E nesse
tom, de conversa de parzinho no portão de casa, a tardinha vira noite, até que
ela se assuste com o adiantado da hora.
“Epa! olha
a hora! Tou muito atrasada...”
“Já é
tempo, minha querida, de deixar de ser cinderela...”
“Lá vem
você com sua conversa de sempre...”
Afobada,
ela se levantara.
“Amor, passou da
hora...”
Os olhos
inquietos pediam despedidas rápidas.
“Espera
mais um pouco, minha querida... Afinal, o ogro tá viajando...”
Por um instante, ela o fita,
nervosa.
“Querido, é
hora. Tenho de voltar pra casa...”
E antes que
pudesse dizer o que fosse, ei-la que atravessa o vozerio do bar, para logo
desaparecer na rua mal-iluminada.
*
Depois de
três dias sem comunicação, um SMS o aguarda:
“Chega
amanhã. Pra variar, não sei a hora.”
Como de
hábito, é pronto na resposta:
“Relaxa,
meu amor. E não esquenta. Beijos”
“Pra
aguentar o tranco, pensarei em ti.”
O
comentário de Yvone o colhe de surpresa. A conclusão óbvia é que deve estar ansiosa com
a volta de Eurípides. Albano pensa mesmo
na possibilidade de que ela tema qualquer coisa, dado o temperamento errático
do marido. Não pode deixar de ter pena dela, embora isso também o irrite um
pouco, especialmente pela circunstância de que teime em continuar com o
estupor.
Sem
embargo, o nervosismo da namorada não lhe passa um bom sinal, pois certamente
ela lhe ocultara sinais agourentos no comportamento recente do
caixeiro-viajante. Que diabos havia a ponto de transmitir-lhe tanta insegurança?
A pergunta o ronda, repontando a cada momento.
Como seria
loucura telefonar-lhe, os SMS serviam apenas para concentrar o pensamento nela,
e torcer para que tudo fosse um falso alarme.
*
No dia seguinte, na repartição e fora dela, o
seu pensamento volta e meia a alcançava, tentando imaginar como estaria naquele
instante. Nesses quase devaneios, Albano trata de disfarçar as próprias viagens
na fantasia. O que mais receia é que alguém se dê conta de que sonha acordado,
inventando um outro plano de realidade para acomodar a namorada.
Quando
sentia suspicácia, busca refúgio no banheiro. Prefere os odores do sanitário, que
o pessoal atribui à negligência dos faxineiros terceirizados, a cair na rede do
disse-me-disse das mal-amadas de plantão.
X X V I
Mais de semana
transcorrera sem qualquer contato. Começou a achar aquilo meio estranho. Por
isso, resolveu mandar-lhe um torpedo.
“Oi!
Voltei de viagem. Tudo bem? Abs Laura”
Seguia o figurino indicado por Yvone.
“Mais ou
menos. Bjs.”
Ele achou estranho o
‘mais ou menos’. Sabia, no entanto, que tinha limites, e que não adiantava
forçar a barra. O jeito era esperar.
*
No dia
seguinte, Almerinda, uma de suas colegas na repartição o chamou para o
telefone.
“Uma
moça quer falar com você”, disse, com olhar cúmplice.
“Oi,
amor, tou falando de orelhão. Tenho pouco tempo. Será que dá pra a gente se
encontrar no bar?”
“Claro,
minha querida. Tudo bem?”
“Falamos
mais tarde. Tchau.”
Algo
na sua voz o preocupou. Se perguntassem
a razão, não saberia dizer. Mas a sua intuição não tinha dúvidas.
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