domingo, 16 de junho de 2013

O Brasil e a vingança da geografia

                      
          Na Colcha de Retalhos A 20, publicada no domingo, nove de junho, dediquei matéria ao livro de Robert D. Kaplan. Nessa oportunidade, referi ao leitor que me ocuparia do tratamento dispensado ao Brasil por Kaplan em comentário à parte.
          A primeira observação, na pág. 31, já prenuncia juízo desfavorável: “Por que  a China é em fim de contas mais importante do que o Brasil ? Por causa de sua localização geográfica: mesmo supondo igual nível de crescimento econômico, e população do mesmo tamanho, o Brasil não comanda as principais linhas de comunicação a conectar oceanos e continentes, como é o caso da China; nem ele se situa principalmente na zona temperada como a China, o que dá a esta um clima mais revigorante e com menos doenças. China está de frente para o Pacífico Ocidental e se estende terra a dentro até alcançar a Ásia central rica em petróleo e gás natural. Por sua vez, o Brasil dispõe de menores vantagens comparativas. Está isolado na América do Sul, afastado geograficamente de outras grandes extensões de terra (landmasses)”.
          A segunda observação sobre o Brasil, a p. 95, não parece encaixar-se na avaliação negativa acima: “O cone sul, do Rio de Janeiro para o sul contém as regiões mais produtivas do continente, três quartos da população da América do Sul, e as principais cidades das duas mais importantes repúblicas sul-americanas na época (1942), Brasil e Argentina.” Para Nicholas J. Spykman (1893-1943), mesmo atendida “a sua insignificância (sic) geográfica em relação à Eurásia” preocupava “acerca do Cone Sul tornar-se parte de estratégia de envolvimento (encirclement) por um poder hostil.”
          Sempre de conformidade com Kaplan, no contexto da obra de Spykman, há a possibilidade de surgir um mundo com múltiplos poderes hegemônicos: “nesse mundo emergente de gigantes regionais os Estados Unidos, a União Europeia, a China, a Índia e a Rússia – com poderes medianos como a Turquia, o Irã, a Indonésia, o Vietnam, o Brasil iriam corroborar as suas observações.”  (V. pág. 100)
          A frieza no raciocínio de Kaplan no que tange a outros cenários desaparece quando se trata de reforçar o sul dos Estados Unidos, diante da ameaça colocada por um México transformado na sua porção norte em um narco-estado. Depois do malogro da campanha do Presidente Calderón contra o tráfico, em especial em estados nortistas, que confinam com os Estados Unidos, a possibilidade de uma derrota do governo central, não é mais perspectiva de todo fantasiosa.
         Por isso, na sua visão de patriota estadunidense, Kaplan vê a possibilidade de estabelecer-se no século XXI um grupo de estados em torno de Washington, com o Canadá ao norte, e o México e a Colômbia ao sul. Dessarte, assumido o declínio estadunidense, a sua posição se veria respaldada, no novo contexto internacional, diante de outros gigantes como a China, a U.E., a Índia e a Rússia.
         No meu entender, Kaplan procura excluir o Brasil desse cenário futuro, com argumentos inconsistentes. Ao compará-lo acima com a China, chega ao ponto de dizer que a RPC poderá ter acesso através dos vizinhos centro-asiáticos ao petróleo (o calcanhar de Aquiles da China) e ao gás. A debilidade desse raciocínio está quase no limite do patético. Em termos de petróleo e de gás, o Brasil dispõe de enormes reservas não só no território continental, mas sobretudo nas bacias atlânticas e agora no pré-sal.
          Por outro lado, o suposto isolamento do Brasil fora do espaço de Mackinder – e não há de esquecer-se que no começo do século XX Sir Halford J. Mackinder no seu paradigmático artigo cometera similar erro patriótico, ao colocar a Inglaterra entre as grandes potências do futuro – com todo o vasto litoral de nosso país e o potencial do hinterland continental pode representar válida alternativa para a sua futura expansão, como  novo candidato a ingressar no grande jogo das grandes potências.     
          Nesse contexto, Robert Kaplan semelha trair mais a sua inquietação quanto às perspectivas no século XXI da atual superpotência, ao marginalizar o Brasil a ponto de colocá-lo na rabeira de lista adrede costurada de estados medianos que  inclui até  o Vietnam, após passar, entre outros, por  Turquia e  Irã. No caso, o autor desse importante livro parece haver esquecido os preceitos que normatizam o crescimento e a queda dos países-atores no palco mundial, hoje caracterizado pelo encolhimento das distâncias.
          A frieza no raciocínio deve basear-se no conhecimento. Não ter presente todos os dados da equação é correr o risco de garrafais enganos. Quando Cristovão Colombo solicitou audiência a el-rei Dom João II, fundado na experiência marítima de Portugal, acreditava possível que o soberano acedesse à sua proposta de chegar às Índias, na rota do Ocidente, pelo oceano Atlântico. Para espanto de Colombo, D. João recusou-lhe a proposta. A decisão não foi fruto do acaso, mas sim da experiência náutica lusitana, com a por vezes dificultosa, porém metódica exploração pelas caravelas do litoral africano.
         O comportamento de D. João se baseara no conhecimento. É estranhável que após amealhar tantos dados e elementos sobre a influência da geografia na grande política, Kaplan cometa um erro que pode ser equiparado àquele de Mackinder, ao projetar para a velha Albion um continuado futuro radioso como grande potência, o  que só poderia subsistir na mente de ardoroso patriota vitoriano.

 

(Fontes: passim,  The Revenge of Geography, de Robert D. Kaplan, Random  House, New York, 2012; Enciclopédia Delta Larousse, Rio de Janeiro, 1972)  

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