X I V
Pedro, meu sempre estimado
mestre e amigo,
há mais de duas semanas não recebo e-mails do Dr. Brito, nem outra qualquer
comunicação relacionada com a situação da Thérèse. Nunca o velho adágio pas de nouvelles, bonnes nouvelles [1]
refletiu tanto a relativa normalização das cousas. Resolvidos os
problemas maiores da sucessão imediata, se decerto ficam pendentes as questões
da biblioteca e da publicação do ‘Animal Político’ – sem falar do ajustamento
doméstico – forçoso será reconhecer que as duas primeiras não são da ordem dos
procedimentos rápidos. Quanto à terceira, se uma solução expeditiva é de
augurar-se, não cabe a mim reiterar mais o que acredito deva ser feito
prontamente. Repeti-lo seria cair na insistência, que é vizinha da
impertinência.
Por isso, é com prazer que volto a retomar
alguns fios deixados pendentes ao longo desta correspondência. Dentre esses
temas que merecem ser desenvolvidos está o reflexo do meu aprendizado de grego
clássico em nosso relacionamento.
A princípio,
recebeste o meu tardio desígnio com certa desconfiança, que beirava o
ceticismo. Seria como se o pensasses como propósito descabido, sobretudo se
adotado em idade senão avançada, pelo menos em fase existencial não comumente
associada com tais projetos. Indubitavelmente colheras nos livros exemplos
desses serôdios intentos em diversas personalidades, que por circunstâncias
várias, não resistindo à surda pressão do dia-a-dia, ao cabo se tornariam
veleitários. Não raro os biógrafos deparam um que outro caderno com anotações,
referências a leituras em tal e qual cartilha, e de súbito, a série de páginas
em branco, a desvelarem o abandono da ideia, tacitamente entendida como
impraticável.
Sem embargo,
o tempo passava, corriam os anos, e quando de minhas idas e de nossos almoços,
então no bar Monteiro, persistia o que seria mero capricho e a tenra plantinha
ia arriscando deitar raízes, aos poucos transformando-se em modesto arbusto.
No passado,
costumaras silenciar acerca do trato do grego clássico. Se não aprofundaras o
assunto, restaria sempre pairante a presunção dos estudos na matéria, e da tua
relativa familiaridade com os textos aristotélicos, inda que em edições
bilingues. Muito mais tarde te referiste ao livro de Diogenes Laertios,
publicado por Aldo Manutius, que consideravas a tua mais valiosa aquisição. Se
calaste acerca de haver lido ou não no original grego aquela obra, deixaras é
verdade nas entrelinhas a resposta, ao classificares a compra como uma de tuas
exíguas incursões no campo da bibliofilia.
Até mesmo
antes do dobrar do milênio, em nossas converas no Monteiro e depois no Urich,
repontariam questões relacionadas com frases ou citações do grego clássico.
Como não me manifestasse logo, preferindo manter-me à parte, o Rezende, com sua
espontaneidade, costumava cobrar-me uma intervenção. Se bem que não o fosse
expresso, não subsistia dúvida de que o fazia por estar consciente de meus
continuados estudos nesta seara.
Nem sempre
podia eu satisfazer plenamente no que tangesse ao tópico em apreço, porém a
maneira pela qual versava o objeto em exame demonstrava a contrario sensu os meus eventuais progressos. Permanecia dentro da
possível discrição, não só porque o meu conhecimento incipiente não me
aconselhava outra atitude, mas também para evitar maior constrangimento.
Era na
magisterial naturalidade do Rezende, ao singularizar-me para o esclarecimento,
que se encontrava a causa do mal-estar que eu sentia um pouco fermentar dentro
de ti. Creio que a realidade do meu avanço, por mais lento que fosse, te
incomodava menos pelo fato em si, do que pela circunstância de confrontar-te
com uma suposta deficiência tua. De resto, não nos escapava a delicadeza da
questão, que se podia sentir no ar. Havendo tudo aquilo bem presente, e não
desejando, por óbvia razão, calcar mais fundo, procurava ser o mais conciso que
pudesse na resposta, para, de pronto, encaminhar a discussão por outros
domínios mais propícios ao consenso.
Já de
regresso ao Rio de Janeiro, em fins de 1999, a minha participação no almoço não
seria mais extemporânea, como a residência no exterior até então determinara.
Naquele cinzento triênio, em que de chofre me descobrira em termos de
diplomacia o que os italianos denominam binario
morto[2], saudava eu com ainda mais pronunciada
alegria a oportunidade de estar com os meus velhos amigos.
Lembro-me de
que deploraste a injustiça por mim sofrida, ao me ser denegada a pretensão de
culminar a carreira, depois das tribulações da Argélia, com a remoção para
Atenas. Se, como acima referi, é doce rememorar os trabalhos, uma vez a
contento concluídos, o acerbo ressaibo não nos apraz ressenti-lo. As Amargas Não é um livro hoje meio
esquecido, que bem espelha essa minha disposição. Tratava, por conseguinte, de mudar de assunto, e depressa.
Àquele tempo
ainda não acenavas com a próxima conclusão do ‘Animal Político’. Não chegáramos
à estação da entrega dos capítulos para leitura, o que ocorreria mais tarde.
Dada a sua relevância para a monografia, te dedicavas com a habitual Gründlichkeit[3]
ao estudo aprofundado da palavra æ²ïí[4],
consultando diversos dicionários e o Index
Aristotelicus, de Hermann Bonitz, para alcançares uma conclusão sobre a
acepção do vocábulo no contexto do Corpus
de Aristóteles.
Em termos de
tua ocupação, hás de convir que, por volta dessa época, nunca foste explícito
acerca da matéria específica a que te devotavas no momento. As observações do
parágrafo anterior, portanto, correspondem a deduções minhas, em função de
frases isoladas tuas e, em especial, a dois episódios sucessivos, ocorridos, se
não me engano, dentro do quadro de um semestre.
Motivara o
teu telefonema dificuldade que encontraste com o substantivo æþúïí em um verso do poeta arcaico
Semonides. Como se tratava de grafia divcrsa daquela que conhecias, te
perguntavas se seria a mesma palavra ou se havia algum erro. Como de hábito,
não esclarecias de que maneira havias topado com a suposta nova versão. Fiquei
de examinar a questão para depois te transmitir a minha opinião a respeito.
Não me foi
difícil atinar com a solução da aporia. Ao consulta ao léxico me mostrou que æþúïí não passava da forma arcaica (e
poética) de æ²ïí. O iota em um ditongo em que a
primeira vogal é longa tende a ser absorvido. Tornando-se mudo, o iota é
grafado embaixo da vogal longa, no caso o ômega. Nesse exemplo, a grafia æ²ïí
reflete a evolução na pronúncia do vocábulo, eis que o iota subscrito é apenas
o registro de sua contração com a vogal anterior, não mais possuindo qualquer
valor fonético distinto.
Terminada a
pesquisa, remeti pelo correio as minhas observações. Embora o tópico me
parecesse muito simples, cuidei de apresentá-lo de forma um tanto mais longa,
para que a solução não te parecesse
ofensiva pelo seu laconismo. De qualquer maneira, a tua perplexidade
diante de problema tão singelo me provocou uma certa espécie. Recordo-me, a
propósito, do timbre algo alteado da tua
voz, quando me reportaste as duas variações do vocábulo. Pela experiência de
nosso convívio, sabia de que, nesse caso, a alteração no tom sempre traduzia estares às voltas com empecilho
que não logravas destrinchar.
O segundo
episódio também girou em torno de æ²ïí. A tua chamada telefônica só teve de
usual a hora (pouco depois das nove da noite). Não dissimulavas a exaltação:
ela entrava de chofre, na linguagem atabalhoada, na rapidez com que a elocução
atingira altos diapasões. A abrupta elevação do timbre – jamais ouvido em tal
intensidade, não obstante não seres exatamente alguém que falasse baixo – traía
a exasperação que sentias. Surgira um inesperado óbice na trilha do ‘Animal
Político’. Em relato confuso, que não se assemelhava à habitual clareza de tua
exposição, me reportavas um fato, que tentarei resumir nas linhas seguintes.
Encontraras
uma outra palavra - æ²á
- de que não logravas descobrir verbete no Index
Aristotelicus, de Bonitz. Sem dizê-lo expressamente, a tua impaciência em
não deslindar o problema já te empurrava a ficar a um passo de questionar a
reconhecida exação do célebre índice, que individuara todas as palavras
empregadas por Aristóteles, com a sua respectiva localização no corpus assinalada pela classificação de
Bekker.
O que não
referias, tampouco deixava de transparecer, através das costuras de um discurso
nervoso. Embutido no telefonema estava o pedido de auxílio. Se não o podia vocalizar
– e essa barreira explicaria parte da irritação – pelo menos te decidiras, sob
a pressão das contingências, a colocá-lo de forma implícita.
Buscando
falar do modo mais natural possível, como se se tratasse de informação
corriqueira acerca do tempo ou quejandos, prometi que iri dar uma olhada no
assunto e que no dia seguinte me manifestaria.
Incontinente,
te pedi a opinião acerca de um livro que acabara de ser publicado. Hoje,
esqueceu-me o título da obra, mas não o efeito da pergunta. Desconcertado a
princípio, pela súbita mudança de tema, não te desagradou, porém, tornar a
exercer o papel a que te habituaras.
Com certo
alívio, readquiriste a costumeira calma. Depois de prosear um pouco, concluíste
a comunicação:
“ Bem, meu
velho, então ficamos assim, não é ? Você me chama amanhã ?”
“ Sem dúvida,
Pedro. Estamos combinados.”
E com o sólito
risinho nervoso encerravas o telefonema.
Há
determinadas questões que, se postas de supetão, semelham mais complexas do que
realmente o são. De início, consultei o livro de Bonitz. Lá estava æ²ïí,
com todas as sinalizações dos lugares em que aparece nas obras de Aristóteles.
Arrisquei, em seguida, procurar pela elusiva
æ²á,
que Pedro não lograva encontrar. Como seria de esperar, não constava do Index.
A minha
consulta fora maquinal. Não me detivera para pensar. Quando resolvi confrontar
o porquê do problema, não tardei em atinar com a resposta.
No dia
seguinte, conforme prometera, telefonei para o Pedro.
“ Alô, Mauro ?”
“ Te estou
telefonando...”
“ Então, Você
pode me dar a razão pela qual não se acha æ²á
no Bonitz ?”
“ Pedro,
realmente æ²á
não está aí consignado, mas é porque...”
“ Porquê ?!
Não estou entendendo !”
“ Pedro, é
simples: æ²á
é o plural de æ²ïí !”
Do outro lado
da linha, se fez o silêncio. A pausa se estendeu por alguns momentos. O teu
desconforto, quase podia ouvi-lo nos pigarros que substituíam o acostumado tom
efusivo.
Não quis
prolongar a situação. Por um instante, o mestre, como que transido de frio,
tentava lidar com a verdade que baixara forte e inesperada.
“ Bem, Pedro,
vou ficando por aqui. Dê o nosso abraço a Thérèse.”
“ Até logo,
meu velho e ... obrigado.”
A voz não
soara com o entusiasmo de praxe.
Nunca mais
farias menção àquela aporia. De minha parte, acompanhei o teu silêncio. Nas
ocasiões seguintes, voltou à tona a disposição rotineira. A persona fleugmática do mestre, a que
podia suceder arrebatada veemência.
Os anos de
convívio me ensinaram que por trás da exuberância peninsular na voz e nos
gestos velavas uma entranhada reserva. Sob as fumaças das tuas expansões, que
motivavam as intervenções apaziguadoras do Rezende, jaziam segredos bem
guardados, que a sábia distância das alturas serranas desde muito protegia.
E, no entanto,
meu caro Pedro, tenho a convicção de que a partir do episódio dos æ²á
passaras comigo a partilhar um segredo. E naquele momento o respeito mútuo terá
crescido, ao te dares conta não mais poderes ignorar o aturado esforço de teu
amigo.
Decerto, não
mudaste o comportamento. Continuaste a recusar, posto que tacitamente, qualquer
sugestão de alteração no trabalho, por mais fundamentada que fosse. Quando
começaste a terminar os capítulos, ao entregar-nos cópias dos fascículos, não
tínhamos dúvida quanto ao escopo da leitura requerida. Seríamos apenas os
revisores dos teus lapsos datilográficos.
Manda a
justiça aduzir que a tua negação do computador implicava em dificuldade
suplementar, se caso houvesse alterações a introduzir no texto. Por isso, a tua
rigidez crítica tinha igualmente a escorá-la o trabalhoso procedimento
acarretado até por pequenas emendas.
Com efeito,
bater à máquina a monografia importava em aumentar o esforço físico, toda vez
que desejasses modificar a frase, ou até mesmo uma palavra. O que dizer então
de novos parágrafos e/ou páginas ? Poderias, decerto, acomodar os retoques
mínimos feitos pelo velho corretor: a mudança de a por o, ou vice-versa, a
substituição de uma letra ou sua eventual adição, a colocação de uma vírgula,
etc. Ao invés, a transformação de um parágrafo te obrigaria, as mais das vezes,
a rebater não apenas uma página, mas capítulo inteiro, o que não constituía
perspectiva alvissareira. Entende-se, portanto, que o próprio modus faciendi selecionado já
representava por si só forte condicionante para que o texto não sofresse
modificações de monta.
Estarei a
jogar na Olivetti boa parte da responsabilidade da formação de tua atitude,
abrandando-te assim as arestas e a caturrice ? Talvez. Não seria algo irônico
que tornasse menos angulosa e mais compreensível a tua postura, recorrendo
àqueles argumentos psicológicos a que
tu, homem oitocentista transplantado para o século vinte, encaravas com inata e
funda desconfiança ?
Pedro, será
que através dessas linhas tortuosas, a noite também venha baixando? Aperto a
vista, e pareces esquivo, as tuas feições como que a refugiar-se e, quem sabe,
confundir-se nas sombras. Onde está a quase alegria com que acreditei reatar
uma relação cortada pelo moira ?
Amigo Pedro,
que tal transferir para a próxima carta mais uma negação tua, a de Freud e sua
revolução psicanalítica ? Pode ser a tardia senda para aclarar certos desvãos e
conexos personagens.
Com a
expressão de amizade que não quer temer as
águas profundas do Letes,
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