terça-feira, 25 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XIV)


 
                                               
                                       X  I  V 

 

 

        Pedro, meu sempre estimado mestre e amigo,

 

        há mais de duas semanas não recebo e-mails  do Dr. Brito, nem outra qualquer comunicação relacionada com a situação da Thérèse. Nunca o velho adágio pas de nouvelles, bonnes nouvelles [1] refletiu tanto a relativa normalização das cousas. Resolvidos os problemas maiores da sucessão imediata, se decerto ficam pendentes as questões da biblioteca e da publicação do ‘Animal Político’ – sem falar do ajustamento doméstico – forçoso será reconhecer que as duas primeiras não são da ordem dos procedimentos rápidos. Quanto à terceira, se uma solução expeditiva é de augurar-se, não cabe a mim reiterar mais o que acredito deva ser feito prontamente. Repeti-lo seria cair na insistência, que é vizinha da impertinência.

        Por isso, é com prazer que volto a retomar alguns fios deixados pendentes ao longo desta correspondência. Dentre esses temas que merecem ser desenvolvidos está o reflexo do meu aprendizado de grego clássico em nosso relacionamento.

       A princípio, recebeste o meu tardio desígnio com certa desconfiança, que beirava o ceticismo. Seria como se o pensasses como propósito descabido, sobretudo se adotado em idade senão avançada, pelo menos em fase existencial não comumente associada com tais projetos. Indubitavelmente colheras nos livros exemplos desses serôdios intentos em diversas personalidades, que por circunstâncias várias, não resistindo à surda pressão do dia-a-dia, ao cabo se tornariam veleitários. Não raro os biógrafos deparam um que outro caderno com anotações, referências a leituras em tal e qual cartilha, e de súbito, a série de páginas em branco, a desvelarem o abandono da ideia, tacitamente entendida como impraticável.

        Sem embargo, o tempo passava, corriam os anos, e quando de minhas idas e de nossos almoços, então no bar Monteiro, persistia o que seria mero capricho e a tenra plantinha ia arriscando deitar raízes, aos poucos transformando-se em modesto arbusto.

        No passado, costumaras silenciar acerca do trato do grego clássico. Se não aprofundaras o assunto, restaria sempre pairante a presunção dos estudos na matéria, e da tua relativa familiaridade com os textos aristotélicos, inda que em edições bilingues. Muito mais tarde te referiste ao livro de Diogenes Laertios, publicado por Aldo Manutius, que consideravas a tua mais valiosa aquisição. Se calaste acerca de haver lido ou não no original grego aquela obra, deixaras é verdade nas entrelinhas a resposta, ao classificares a compra como uma de tuas exíguas incursões no campo da bibliofilia.

         Até mesmo antes do dobrar do milênio, em nossas converas no Monteiro e depois no Urich, repontariam questões relacionadas com frases ou citações do grego clássico. Como não me manifestasse logo, preferindo manter-me à parte, o Rezende, com sua espontaneidade, costumava cobrar-me uma intervenção. Se bem que não o fosse expresso, não subsistia dúvida de que o fazia por estar consciente de meus continuados estudos nesta seara.

         Nem sempre podia eu satisfazer plenamente no que tangesse ao tópico em apreço, porém a maneira pela qual versava o objeto em exame demonstrava a contrario sensu  os meus eventuais progressos. Permanecia dentro da possível discrição, não só porque o meu conhecimento incipiente não me aconselhava outra atitude, mas também para evitar maior constrangimento.

        Era na magisterial naturalidade do Rezende, ao singularizar-me para o esclarecimento, que se encontrava a causa do mal-estar que eu sentia um pouco fermentar dentro de ti. Creio que a realidade do meu avanço, por mais lento que fosse, te incomodava menos pelo fato em si, do que pela circunstância de confrontar-te com uma suposta deficiência tua. De resto, não nos escapava a delicadeza da questão, que se podia sentir no ar. Havendo tudo aquilo bem presente, e não desejando, por óbvia razão, calcar mais fundo, procurava ser o mais conciso que pudesse na resposta, para, de pronto, encaminhar a discussão por outros domínios mais propícios ao consenso.

        Já de regresso ao Rio de Janeiro, em fins de 1999, a minha participação no almoço não seria mais extemporânea, como a residência no exterior até então determinara. Naquele cinzento triênio, em que de chofre me descobrira em termos de diplomacia o que os italianos denominam binario morto[2],  saudava eu com ainda mais pronunciada alegria a oportunidade de estar com os meus velhos amigos.

        Lembro-me de que deploraste a injustiça por mim sofrida, ao me ser denegada a pretensão de culminar a carreira, depois das tribulações da Argélia, com a remoção para Atenas. Se, como acima referi, é doce rememorar os trabalhos, uma vez a contento concluídos, o acerbo ressaibo não nos apraz ressenti-lo. As Amargas Não é um livro hoje meio esquecido, que bem espelha essa minha disposição. Tratava, por conseguinte, de mudar de assunto, e depressa.

        Àquele tempo ainda não acenavas com a próxima conclusão do ‘Animal Político’. Não chegáramos à estação da entrega dos capítulos para leitura, o que ocorreria mais tarde. Dada a sua relevância para a monografia, te dedicavas com a habitual Gründlichkeit[3] ao  estudo aprofundado da palavra æ²ïí[4], consultando diversos dicionários e o Index Aristotelicus, de Hermann Bonitz, para alcançares uma conclusão sobre a acepção do vocábulo no contexto do Corpus de Aristóteles.      

        Em termos de tua ocupação, hás de convir que, por volta dessa época, nunca foste explícito acerca da matéria específica a que te devotavas no momento. As observações do parágrafo anterior, portanto, correspondem a deduções minhas, em função de frases isoladas tuas e, em especial, a dois episódios sucessivos, ocorridos, se não me engano, dentro do quadro de um semestre.

        Motivara o teu telefonema dificuldade que encontraste com o substantivo æþúïí em um verso do poeta arcaico Semonides. Como se tratava de grafia divcrsa daquela que conhecias, te perguntavas se seria a mesma palavra ou se havia algum erro. Como de hábito, não esclarecias de que maneira havias topado com a suposta nova versão. Fiquei de examinar a questão para depois te transmitir a minha opinião a respeito.

        Não me foi difícil atinar com a solução da aporia. Ao consulta ao léxico me mostrou que æþúïí não passava da forma arcaica (e poética) de æ²ïí. O iota em um ditongo em que a primeira vogal é longa tende a ser absorvido. Tornando-se mudo, o iota é grafado embaixo da vogal longa, no caso o ômega. Nesse exemplo, a grafia æ²ïí reflete a evolução na pronúncia do vocábulo, eis que o iota subscrito é apenas o registro de sua contração com a vogal anterior, não mais possuindo qualquer valor fonético distinto.

        Terminada a pesquisa, remeti pelo correio as minhas observações. Embora o tópico me parecesse muito simples, cuidei de apresentá-lo de forma um tanto mais longa, para que a solução não te parecesse  ofensiva pelo seu laconismo. De qualquer maneira, a tua perplexidade diante de problema tão singelo me provocou uma certa espécie. Recordo-me, a propósito,  do timbre algo alteado da tua voz, quando me reportaste as duas variações do vocábulo. Pela experiência de nosso convívio, sabia de que, nesse caso, a alteração  no tom sempre traduzia estares às voltas com empecilho que não logravas destrinchar.

        O segundo episódio também girou em torno de æ²ïí. A tua chamada telefônica só teve de usual a hora (pouco depois das nove da noite). Não dissimulavas a exaltação: ela entrava de chofre, na linguagem atabalhoada, na rapidez com que a elocução atingira altos diapasões. A abrupta elevação do timbre – jamais ouvido em tal intensidade, não obstante não seres exatamente alguém que falasse baixo – traía a exasperação que sentias. Surgira um inesperado óbice na trilha do ‘Animal Político’. Em relato confuso, que não se assemelhava à habitual clareza de tua exposição, me reportavas um fato, que tentarei resumir nas linhas seguintes.

       Encontraras uma outra palavra - æ²á - de que não logravas descobrir verbete no Index Aristotelicus, de Bonitz. Sem dizê-lo expressamente, a tua impaciência em não deslindar o problema já te empurrava a ficar a um passo de questionar a reconhecida exação do célebre índice, que individuara todas as palavras empregadas por Aristóteles, com a sua respectiva localização no corpus assinalada pela classificação de Bekker.

       O que não referias, tampouco deixava de transparecer, através das costuras de um discurso nervoso. Embutido no telefonema estava o pedido de auxílio. Se não o podia vocalizar – e essa barreira explicaria parte da irritação – pelo menos te decidiras, sob a pressão das contingências, a colocá-lo de forma implícita.

       Buscando falar do modo mais natural possível, como se se tratasse de informação corriqueira acerca do tempo ou quejandos, prometi que iri dar uma olhada no assunto e que no dia seguinte me manifestaria.

      Incontinente, te pedi a opinião acerca de um livro que acabara de ser publicado. Hoje, esqueceu-me o título da obra, mas não o efeito da pergunta. Desconcertado a princípio, pela súbita mudança de tema, não te desagradou, porém, tornar a exercer o papel a que te habituaras.

      Com certo alívio, readquiriste a costumeira calma. Depois de prosear um pouco, concluíste a comunicação:

      “ Bem, meu velho, então ficamos assim, não é ? Você me chama amanhã ?”

      “ Sem dúvida, Pedro. Estamos combinados.”

      E com o sólito risinho nervoso encerravas o telefonema.

      Há determinadas questões que, se postas de supetão, semelham mais complexas do que realmente o são. De início, consultei o livro de Bonitz. Lá estava æ²ïí, com todas as sinalizações dos lugares em que aparece nas obras de Aristóteles. Arrisquei, em seguida, procurar pela elusiva  æ²á, que Pedro não lograva encontrar. Como seria de esperar, não constava do Index.

      A minha consulta fora maquinal. Não me detivera para pensar. Quando resolvi confrontar o porquê do problema, não tardei em atinar com a resposta.

       No dia seguinte, conforme prometera, telefonei para o Pedro.

       “ Alô, Mauro ?”

       “ Te estou telefonando...”

       “ Então, Você pode me dar a razão pela qual não se acha æ²á no Bonitz ?”

       “ Pedro, realmente æ²á não está aí consignado, mas é porque...”

       “ Porquê ?! Não estou entendendo !”

       “ Pedro, é simples: æ²á é o plural de æ²ïí !”

       Do outro lado da linha, se fez o silêncio. A pausa se estendeu por alguns momentos. O teu desconforto, quase podia ouvi-lo nos pigarros que substituíam o acostumado tom efusivo.

        Não quis prolongar a situação. Por um instante, o mestre, como que transido de frio, tentava lidar com a verdade que baixara forte e inesperada.

       “ Bem, Pedro, vou ficando por aqui. Dê o nosso abraço a Thérèse.”

       “ Até logo, meu velho e ...  obrigado.”

       A voz não soara com o entusiasmo de praxe.

       Nunca mais farias menção àquela aporia. De minha parte, acompanhei o teu silêncio. Nas ocasiões seguintes, voltou à tona a disposição rotineira. A persona fleugmática do mestre, a que podia suceder arrebatada veemência.

       Os anos de convívio me ensinaram que por trás da exuberância peninsular na voz e nos gestos velavas uma entranhada reserva. Sob as fumaças das tuas expansões, que motivavam as intervenções apaziguadoras do Rezende, jaziam segredos bem guardados, que a sábia distância das alturas serranas desde muito protegia.

      E, no entanto, meu caro Pedro, tenho a convicção de que a partir do episódio dos  æ²á passaras comigo a partilhar um segredo. E naquele momento o respeito mútuo terá crescido, ao te dares conta não mais poderes ignorar o aturado esforço de teu amigo.

       Decerto, não mudaste o comportamento. Continuaste a recusar, posto que tacitamente, qualquer sugestão de alteração no trabalho, por mais fundamentada que fosse. Quando começaste a terminar os capítulos, ao entregar-nos cópias dos fascículos, não tínhamos dúvida quanto ao escopo da leitura requerida. Seríamos apenas os revisores dos teus lapsos datilográficos.

        Manda a justiça aduzir que a tua negação do computador implicava em dificuldade suplementar, se caso houvesse alterações a introduzir no texto. Por isso, a tua rigidez crítica tinha igualmente a escorá-la o trabalhoso procedimento acarretado até por pequenas emendas.

        Com efeito, bater à máquina a monografia importava em aumentar o esforço físico, toda vez que desejasses modificar a frase, ou até mesmo uma palavra. O que dizer então de novos parágrafos e/ou páginas ? Poderias, decerto, acomodar os retoques mínimos feitos pelo velho corretor: a mudança de a por o, ou vice-versa, a substituição de uma letra ou sua eventual adição, a colocação de uma vírgula, etc. Ao invés, a transformação de um parágrafo te obrigaria, as mais das vezes, a rebater não apenas uma página, mas capítulo inteiro, o que não constituía perspectiva alvissareira. Entende-se, portanto, que o próprio modus faciendi selecionado já representava por si só forte condicionante para que o texto não sofresse modificações de monta.

        Estarei a jogar na Olivetti boa parte da responsabilidade da formação de tua atitude, abrandando-te assim as arestas e a caturrice ? Talvez. Não seria algo irônico que tornasse menos angulosa e mais compreensível a tua postura, recorrendo àqueles argumentos psicológicos a que tu, homem oitocentista transplantado para o século vinte, encaravas com inata e funda desconfiança ? 

        Pedro, será que através dessas linhas tortuosas, a noite também venha baixando? Aperto a vista, e pareces esquivo, as tuas feições como que a refugiar-se e, quem sabe, confundir-se nas sombras. Onde está a quase alegria com que acreditei reatar uma relação cortada pelo moira ?

       Amigo Pedro, que tal transferir para a próxima carta mais uma negação tua, a de Freud e sua revolução psicanalítica ? Pode ser a tardia senda para aclarar certos desvãos e conexos personagens.

      Com a expressão de amizade que não quer temer as  águas profundas do Letes,        




[1] falta de notícias, boas notícias.
[2] linha sem saída.
[3] fundamentação, inteireza.
[4] ser, animal (plur. sens.)

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