terça-feira, 18 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XII)


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        Meu mui prezado e, por vezes, obstinado Amigo Pedro,

           

         deixemos de lado as questões do dia-a-dia. Felizmente, as coisas se encaminham bem e já sinto até veleidades de afastar-me do seu trato, eis que vejo aproximar-se a rotina. Sem desdouro de ninguém, e muito menos do prestativo Dr. Brito, acredito que, se Deus quiser, muito em breve estarei em condições de entregar-lhe as tarefas todas. Não sei quando a Thérèse se sentirá apta para gerir os próprios assuntos e independizar-se um tanto. Essa será, sem dúvida, fase ulterior, que por ora não reponta no horizonte. Acho, no entanto, que Ana, a quem só conheceste por telefone, não anda muito longe da verdade quando antecipa que dentro de um ano teremos outra Therezinha, firme a segurar as rédeas dos negócios. E duvido que tal evolução te venha a desagradar ou mesmo inquietar, pois, toda a proteção  que lhe prodigaste nesses vários lustros só colimava o bem e a felicidade de tua companheira. Assim, se lá do algo a vires desembaraçada e senhora de si, que maior razão terás para sorriso de contentamento ?

        Na passada correspondência, terei mencionado não poucas vezes a tua frontal discordância diante de uma realidade nova que, acredito, a princípio encaraste com a perplexidade que se reserva às modas passageiras, para mais tarde, colocado defronte do alcance pleno da ameaça, de se contínuo crescimento, e do provável desenlace, te entrincheiraste em uma resistência à outrance (x).      

        Se nasceste ao final do primeiro quarto do século vinte, a tua personalidade guardaria muitos traços do centênio anterior. Com efeito, desde cedo te apegaste à cultura do livro, buscando nos sebos os autores e os títulos que a mesada não permitia adquirir na Garnier, Freitas Bastos ou quejandas. Também prezavas a leitura de jornais, periódicos e revistas especializadas, sobretudo a francesa Réalité e a americana Science. Animavam-te a discussão das ideias, a seriedade dos temas, as perspectivas de avanço no amplo arco das ciências, o franco, veemente porém regrado debate dos caminhos da política, dentro de um prisma diria de liberal europeu. Não foi por acaso que nasceste no estrangeiro, filho de brasileiros de boa cepa, estando teu pai a serviço de nossa terra. Sempre, aliás, foste discreto a esse respeito, e jamais de ti ouviria menção por mais perfunctória que fosse, ao porquê da tua condição de brasileiro, hoje em que para muitos semelha o patriotismo uma característica acidental, suscetível de troca mercantil por passaporte supostamente mais promissor, e não amor entranhado no exemplo de nossos maiores.

        Liberal europeu ? Sim, por respeitares a boa ordem e a opinião alheia, e por valorizares a feição laica na sociedade. Ao contrário do teu amigo Rezende, um intelectual católico, nesse binômio, as tuas preferências pendiam para o primeiro, como se bastasse a afirmação da razão, sem outros adjetivos.

        Devo, no entanto, matizar tal qualificação. Ao contrário dos liberais do Velho Continente, não te assinalavas por ostensivo anticlericalismo. Como escrevi acima, ías a livrarias de editoras católicas, folheavas tomos de autoria de clérigos e cheguei a ouvir-te elogiar o enfoque de obra de orientação católica. O teu agnosticismo – se é válido o juízo do Rezende – não te empurrava para preclusões ideológicas. Pinçavas a verdade aonde a vias, sem preconceitos, se me permites a aparente redundância, apriorísticos. Quem sabe o teu credo não fosse o deísmo da célebre Profession de foi du Vicaire savoyard ? De qualquer forma, jamais me chegou aos ouvidos comentário teu a respeito da matéria. Seria como a julgasses demasiado íntima, temendo que observações o interlocutor as tomasse, ou como alarde, ou mesmo intento de proselitismo.

        Se não fazias segredo da recusa ao computador, a meu ver essa postura não era fenômeno isolado. Embora haja encontrado um aparelho de televisão na Visconde do Uruguai, a sua localização na copa indicava ser destinado a serviçais. De resto, durante todas as nossas conversas, não me recordo de referência alguma a assunto que tivesse como fonte a tevê. As tuas idas ao cinema deveriam ser assaz raras, pois tampouco registrei na memória qualquer alusão a um filme, por maior atenção ou mesmo celeuma tenha provocado. Ainda em 2004, foi exposto em circuito comercial no Brasil o filme ‘Alexandre’, em que Christopher Plummer desempenha curto, porém marcante papel como o preceptor do filho de Felipe da Macedônia. Dado o interesse histórico da película, em especial no contexto da Antiguidade Clássica, com insistência te recomendei que não esperdiçasses a ocasião oferecida pelo diretor Oliver Stone. Para quem tanto se impregnara do estudo deste turning point, em que vai suceder à época clássica o período helenista, te disse que era a hora de despojar-te de prevenções, para assistir àquela película. Malgrado não isenta de falhas, a representação se revestia de inegável cuidado historicista, o que, por si só, já justificaria que te abalançasses a vê-la. Por um átimo, senti trepidar o teu hábito de não frequentar os cinemas. Infelizmente, devo a contragosto convir que a esquisitice prevaleceria, com o que perdeste oportunidade preciosa. O costume, ou melhor, o vezo se arraigara demasiado, para que sequer admitisses uma exceção.

        Haja vista o que precede, escusado seria aludir ao celular. Da tecnologia moderna, aceitavas o telefone e o automóvel. Enquanto permaneceste no serviço ativo, os teus postos se restringiram a três (Paris, Lima e Quito). Nos dois primeiros, nem cumpriste o estágio de dois anos, que era naquele tempo o habitual. Não disponho aqui de meios que me possibilitem a determinar com exatidão os anos de residência quitenha. Terão sido dezessete, divididos em três períodos. Nessa época em que dispunhas de dólares, não me consta que hajas viajado muito. Ao contrário. Na companhia de Therezinha e da biblioteca, te quedaste em São Francisco de Quito.

        Longe da Secretaria de Estado, e a despeito do bom trabalho realizado no Equador, terminaste a carreira como Conselheiro. Quando retornaste ao Brasil, em caráter definitivo, em meados de 1984, depois de passageira estada no Rio de Janeiro, foste buscar em Petrópolis um sucedâneo dos ares quitenhos. E lá te demoraste todos esses lustros, circunscrevendo as tuas viagens àqueles trajetos de hora e meia com o Rio. Saías às nove e voltavas às quatro. Esses deslocamentos, mais amiudados a princípio, se espaçariam deveras nos últimos anos.

       Vivias, pois, existência sedentária, confinada a Petrópolis, com caminhadas pelo centro, almoços ocasionais no Falcone, e rápidas, eventuais passagens pelo Rio, aonde te reabastecias de livros – sobretudo na Leonardo da Vinci, da taciturna dona Vana, que praticavas desde as suas primícias, empoleirada em arranha-céu da Presidente Vargas – e de petrechos para Therezinha, escarafunchados e regateados nas cercanias da praça Tiradentes, em poeirentos e decadentes negócios, de outrora larga freguesia. De maneira inconsciente, repetias a vida de homem do século dezenove, pois prescindias de quase tudo que trouxera a moderna tecnologia.

       Não há de surpreender, portanto, o teu gran rifiuto à revolução da informática, com a entrada em cena do computador e de toda a relativa parafernália, que vinha anunciar nova era, sucessora do paradigma de Gutenberg. Prima facie, nada havia de pitoresco ou insensato na tua atitude. Não te detinhas nas vantagens e nas facilidades que o computador abrira para os escritores, porque entrevias na vasta, infindável rede de comunicação, mais do que o enxovalhamento da cultura do livro. Encaravas a internet não como evolução ou até mesmo revolução no paradigma da informação, mas como funesta ameaça à própria existência do livro.

        Na tua postura razão e paixão se entrecruzavam. Com efeito, se afigurava difícil destrinchar o engrouvinhado nó de uma reação em que a visão da crescente e inexorável ascendência do novel instrumento se misturava e se ensombrecia com animosos e arrebatados temores diante da suposta irreparável perda.

       Malgrado os recortes que sôfrego recolhias de ignotas revistas, e triunfante nos exibias, com as suas diatribes contra os malefícios da internet, eu não lograva reconhecer o debatedor a um tempo sereno e veemente, não infenso ao poder do pensado e preciso impacto do válido argumento. Ali não estava o apaixonado defensor de causas que não era imune às insídias e encantos do ceticismo crítico. Arrostando a minha incredulidade e o plácido entendimento do Rezende, por vezes parecias vestir a camisa de algum torcedor, tal a cargo de afeto que trazias na defesa do modelo já condenado.

        Em toda apologia de causas perdidas, existe inefável aura de inquebrantável denodo, de ardor irredentista que se nutre de esconsas e fincadas raízes. Cedo me convenceria que o velho do Restelo como de opinião há de mudar, se em verdade, ambos, criatura e modo de ver, se confundem em um só e único ser. Não te demoveriam raciocínios seja sobre as facilidades do novo paradigma, seja sobre possíveis diferenças entre esta transição e a anterior.

        Quando te acenava com oportunidades que o antigo formato sequer poderia vislumbrar – v.g., o acesso a artigos publicados em boletins universitários de princípios do século XIX, arquivados em alguma biblioteca europeia, através da utilização de serviço da internet, o qual, mediante pagamento de taxa, me enviaria por correio aéreo a respectiva cópia xerocada da matéria desejada – sentia a tua visceral recusa a manifestar-se com ainda maior ênfase, como se bastasse o meio empregado para conspurcar a eventual qualidade do material oferecido.

        Dessarte, ao invés da tua característica atitude de cético distanciamento, que evitava assumir posições antes de peneirá-las criticamente, em matéria de computadores & web, o teu non possumus não se detinha diante de pretensas sutilezas, ressoando estentórico com aquela convicção fundamentalista, de que te pejarias em qualquer outro contexto.

        Nem a pachorra do Rezende, professor universitário, e portanto habituado, por mister e convívio, a novos métodos e tecnologias, para ti representou um espelho em que deverias perscrutar com maior atenção a face da realidade pós-moderna. Tampouco as minhas tentativas, corroboradas por ensaios de Jason Epstein, de mostrar-te o quanto a nova tecnologia poderia reforçar o livro como vetor de arte e saber, ao possibilitar-lhe a edição e publicação sem os usuais intermediários – sem falar na disponibilização de obras há muito esgotadas – essas tentativas, repito, mais pareciam gritos a reverberarem nas pétreas anfractuosidades do deserto, condenadas a desfazer-se na despedaçada incongruência de isolados fonemas.

        A perspectiva de ir a uma livraria e de lá encomendar, e.g., o Antigonos von Karystos, de Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, como se fora arrecém publicado, com a certeza de tê-lo em mãos em uma questão de horas, não mais se afigura fantasia de science fiction, mas projeto bem próximo de efetiva consumação. Por isso, a leitura dos artigos de Epstein, editados pela New York Review, me entusiasmavam por sentir ao alcance do estudioso em mediato futuro verdadeiro progresso na aquisição do conhecimento. E desejava, meu caro Pedro, compartilhar com o amigo esse tangível e alvissareiro avanço. Para meu descorçoamento, as cópias dessas matérias que animado te trazia não provocavam em ti qualquer reação. Seria como teus olhos resvalassem por linhas que nada te diziam, formas talvez ininteligíveis de abstrusas, fantasmagóricas criações de mentes delirantes.

        Terei escolhido mal o exemplo ao apontar o célebre tratado de Wilamowitz, de que em tempos idos havias logrado obter um exemplar ? Quero crer que não.  Porque essa revolucionária e não obstante quase acessível tecnologia nos torna potenciais adquirentes não apenas deste ou daquele livro, antes desdenhosamente tachado pelos grandes livreiros como out of print, mas de todos os tomos que hoje dormem, esplêndidos posto que inatingíveis, sob bolorentos véus nas estantes das bibliotecas. Espantava-me deveras que essa progressão geométrica, aberta para o comum dos mortais, não te despertasse um prurido que fosse de sopitada porém presente emoção.

       Na quixotesca luta que, com ardor, abraçaras a partir dos anos noventa, a negação te toldara a vista, e como único refúgio lobrigaste no rígido incondicionalismo da rejeição a preservação do espaço cultural com que identificaras para além da razão.

      Aí teremos decerto uma explicação para a animosa contestação. Sem embargo, essa solitária e tardia investida contra realidade que, de surpresa, te viera colher e confundir no que seriam as derradeiras décadas da tua existência, não semelha para mim o fator único que contribuíu para esta visão epimeteica, tão ao arrepio da conformação de tua personalidade.

     Recordo-me de ocasião em que me solicitaste opinar, com base nas fontes de que dispunha, acerca de determinado fragmento do poeta Semonides. Com agradável presteza, transcrevi os excertos que me pareceram pertinentes e, como era meu hábito, te mandei o papel por correio registrado.

     Na vez seguinte em que nos encontramos, o olhar comprido, vagando entre assombro e suspicácia, me perguntaste:

    “ Grafaste aquelas linhas com o teu próprio computador ?”

     “ Sim, tenho um programa que me permite utilizar os caracteres do grego clássico.”

    Embora tivesse eu me esforçado em dizê-lo do jeito mais neutro e natural possível, a forma em que reagiste me faria sentir inexplicável remorso por uma falta não cometida. Havia na tua expressão um quê de melancolia de alguém a contemplar de longe faculdades para ele tão admiráveis quanto inacessíveis.

    Em poucas décadas, o computador evoluíra da máquina custosa, de complexo manuseio, e de memória ainda limitada, para instrumento em vias de se tornar indispensável, e não mais a tarda, arredia e caprichosa geringonça eletrônica dos primórdios. Enquanto se incrementava em agilidade e velocidade, a oferecer-nos leque a estender-se visivelmente na própria capacidade de serviços, ía aos poucos se despojando de ampla gama de senões e armadilhas, que espreitavam eventuais tropeços ou escorregadelas do digitador.

     As crescentes simplificações, a livre concorrência, a progressão da tecnologia produzira aparelhos sempre mais manejáveis, enquanto baixavam os preços, tangidos pelas leis do mercado e por vertiginosa obsolescência, ou a outra face da moeda na radicalização do aperfeiçoamento seja no hardware, seja no software.

      Para pessoa que tantas horas dedicara ao estudo da evolução do ser humano, e que reunira larga coleção na análise da teoria darwiniana, na marcha da espécie através não dos séculos, mas dos milênios da paleantropologia, da pré-história e da proto-história, dos primatas aos hominídeos, e do homo erectus até o homo sapiens sapiens, para alguém, enfim, com tal sede de conhecimento e participação, como seria de súbito atinar-se relegado a mero espectador, como se fora o homem sem qualidades de Musil? Ou, para expressá-lo em outras palavras, descobrir-se criatura que, a princípio, por possível e surpreendente desatenção, e empós, por não sentir-se em condições de adaptar-se à nova situação, quer por fatores naturais e congênitos, característicos de sua faixa etária, quer por contingências econômicas, resolvera projetar a respectiva sensação de não mais poder adaptar-se nem aceitar o novo paradigma em desenfreada racionalização, na qual se aliavam todos os componentes da negação, vale dizer, o afeto, a rigidez, a impermeabilidade à lógica, e a insana procura de motivação que lhe fornecesse o álibi inconsciente para uma proposição contraditória a tudo aquilo a que dedicara, e que dera sentido à própria existência.

        Amigo Pedro, dentre os capítulos da tua vida – e que metáfora será mais adequada para quem a sacrificou ao livro ? – este se me afigura um tanto confuso. Quem somos nós, porém, para arvorarmo-nos em árbitros de outrem ? Mais adiante falaremos das reservas sobre Freud e a psicanálise, assim como dos alegados preconceitos que da tua geração carregarias nesse particular. E, no entanto, como Monsieur Jourdain que fazia prosa sem o saber, foste um pouco freudiano nessas décadas que, de início, fremiam, e, mais tarde, passaram a entender o seguinte milênio, como outra fátua invenção humana, em que tudo muda, para nada mudar.

       Em chegando a tais afirmativas, adivinho mal desenhar-se em teus lábios a sombra de um sorriso.  Ora, veja, adentramos caminhos conhecidos, palmilhados por antigos mestres, tais como Pyrrhon de Elis, Sextus Empiricus, Pierre Bayle e tantos outros que te são caros. 

      Nesse fim de tarde, em que os raios de um enfraquecido Hélio se espargem sobre construções disparatadas, afastadas da dórica beleza de uma invisível Acrópole, e tal benção tardia logram embelezar-lhe a obscura feiúra, penso que concordarás comigo em havermos atravessado a imprecisa linha de um momento. Será, pois, hora de pôr fim a esta carta, em que sabe-se lá, meu bom e eterno Amigo, te tenha mostrado feições que, se vivo fosses, discordarias com a dúbia e especial veemência reservada às inextricáveis controvérsias.

      Com a amizade de quem não cessa de aprender graças ao nosso peculiar diálogo,





(x)  extremada.
 

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