Meu mui prezado e, por vezes, obstinado
Amigo Pedro,
deixemos de
lado as questões do dia-a-dia. Felizmente, as coisas se encaminham bem e já
sinto até veleidades de afastar-me do seu trato, eis que vejo aproximar-se a
rotina. Sem desdouro de ninguém, e muito menos do prestativo Dr. Brito,
acredito que, se Deus quiser, muito em breve estarei em condições de
entregar-lhe as tarefas todas. Não sei quando a Thérèse se sentirá apta para
gerir os próprios assuntos e independizar-se um tanto. Essa será, sem dúvida,
fase ulterior, que por ora não reponta no horizonte. Acho, no entanto, que Ana,
a quem só conheceste por telefone, não anda muito longe da verdade quando
antecipa que dentro de um ano teremos outra Therezinha, firme a segurar as
rédeas dos negócios. E duvido que tal evolução te venha a desagradar ou mesmo
inquietar, pois, toda a proteção que lhe
prodigaste nesses vários lustros só colimava o bem e a felicidade de tua
companheira. Assim, se lá do algo a vires desembaraçada e senhora de si, que maior
razão terás para sorriso de contentamento ?
Na passada
correspondência, terei mencionado não poucas vezes a tua frontal discordância
diante de uma realidade nova que, acredito, a princípio encaraste com a
perplexidade que se reserva às modas passageiras, para mais tarde, colocado defronte
do alcance pleno da ameaça, de se contínuo crescimento, e do provável
desenlace, te entrincheiraste em uma resistência à outrance (x).
Se nasceste ao final do primeiro quarto do
século vinte, a tua personalidade guardaria muitos traços do centênio anterior.
Com efeito, desde cedo te apegaste à cultura do livro, buscando nos sebos os
autores e os títulos que a mesada não permitia adquirir na Garnier, Freitas
Bastos ou quejandas. Também prezavas a leitura de jornais, periódicos e
revistas especializadas, sobretudo a francesa Réalité e a americana Science.
Animavam-te a discussão das ideias, a seriedade dos temas, as perspectivas de
avanço no amplo arco das ciências, o franco, veemente porém regrado debate dos
caminhos da política, dentro de um prisma diria de liberal europeu. Não foi por
acaso que nasceste no estrangeiro, filho de brasileiros de boa cepa, estando
teu pai a serviço de nossa terra. Sempre, aliás, foste discreto a esse
respeito, e jamais de ti ouviria menção por mais perfunctória que fosse, ao
porquê da tua condição de brasileiro, hoje em que para muitos semelha o
patriotismo uma característica acidental, suscetível de troca mercantil por
passaporte supostamente mais promissor, e não amor entranhado no exemplo de
nossos maiores.
Liberal europeu ? Sim, por respeitares a
boa ordem e a opinião alheia, e por valorizares a feição laica na sociedade. Ao
contrário do teu amigo Rezende, um intelectual católico, nesse binômio, as tuas
preferências pendiam para o primeiro, como se bastasse a afirmação da razão,
sem outros adjetivos.
Devo, no
entanto, matizar tal qualificação. Ao contrário dos liberais do Velho
Continente, não te assinalavas por ostensivo anticlericalismo. Como escrevi
acima, ías a livrarias de editoras católicas, folheavas tomos de autoria de
clérigos e cheguei a ouvir-te elogiar o enfoque de obra de orientação católica.
O teu agnosticismo – se é válido o juízo do Rezende – não te empurrava para
preclusões ideológicas. Pinçavas a verdade aonde a vias, sem preconceitos, se
me permites a aparente redundância, apriorísticos. Quem sabe o teu credo não
fosse o deísmo da célebre Profession de
foi du Vicaire savoyard ? De
qualquer forma, jamais me chegou aos ouvidos comentário teu a respeito da
matéria. Seria como a julgasses demasiado íntima, temendo que observações o
interlocutor as tomasse, ou como alarde, ou mesmo intento de proselitismo.
Se não
fazias segredo da recusa ao computador, a meu ver essa postura não era fenômeno
isolado. Embora haja encontrado um aparelho de televisão na Visconde do
Uruguai, a sua localização na copa indicava ser destinado a serviçais. De
resto, durante todas as nossas conversas, não me recordo de referência alguma a
assunto que tivesse como fonte a tevê. As tuas idas ao cinema deveriam ser
assaz raras, pois tampouco registrei na memória qualquer alusão a um filme, por
maior atenção ou mesmo celeuma tenha provocado. Ainda em 2004, foi exposto em
circuito comercial no Brasil o filme ‘Alexandre’, em que Christopher Plummer
desempenha curto, porém marcante papel como o preceptor do filho de Felipe da
Macedônia. Dado o interesse histórico da película, em especial no contexto da
Antiguidade Clássica, com insistência te recomendei que não esperdiçasses a
ocasião oferecida pelo diretor Oliver Stone. Para quem tanto se impregnara do
estudo deste turning point, em que
vai suceder à época clássica o período helenista, te disse que era a hora de
despojar-te de prevenções, para assistir àquela película. Malgrado não isenta
de falhas, a representação se revestia de inegável cuidado historicista, o que,
por si só, já justificaria que te abalançasses a vê-la. Por um átimo, senti
trepidar o teu hábito de não frequentar os cinemas. Infelizmente, devo a
contragosto convir que a esquisitice prevaleceria, com o que perdeste
oportunidade preciosa. O costume, ou melhor, o vezo se arraigara demasiado,
para que sequer admitisses uma exceção.
Haja vista o
que precede, escusado seria aludir ao celular. Da tecnologia moderna, aceitavas
o telefone e o automóvel. Enquanto permaneceste no serviço ativo, os teus
postos se restringiram a três (Paris, Lima e Quito). Nos dois primeiros, nem
cumpriste o estágio de dois anos, que era naquele tempo o habitual. Não
disponho aqui de meios que me possibilitem a determinar com exatidão os anos de
residência quitenha. Terão sido dezessete, divididos em três períodos. Nessa
época em que dispunhas de dólares, não me consta que hajas viajado muito. Ao
contrário. Na companhia de Therezinha e da biblioteca, te quedaste em São Francisco
de Quito.
Longe da
Secretaria de Estado, e a despeito do bom trabalho realizado no Equador,
terminaste a carreira como Conselheiro. Quando retornaste ao Brasil, em caráter
definitivo, em meados de 1984, depois de passageira estada no Rio de Janeiro,
foste buscar em Petrópolis um sucedâneo dos ares quitenhos. E lá te demoraste
todos esses lustros, circunscrevendo as tuas viagens àqueles trajetos de hora e
meia com o Rio. Saías às nove e voltavas às quatro. Esses deslocamentos, mais
amiudados a princípio, se espaçariam deveras nos últimos anos.
Vivias, pois,
existência sedentária, confinada a Petrópolis, com caminhadas pelo centro,
almoços ocasionais no Falcone, e rápidas, eventuais passagens pelo Rio, aonde
te reabastecias de livros – sobretudo na Leonardo da Vinci, da taciturna dona
Vana, que praticavas desde as suas primícias, empoleirada em arranha-céu da
Presidente Vargas – e de petrechos para Therezinha, escarafunchados e
regateados nas cercanias da praça Tiradentes, em poeirentos e decadentes
negócios, de outrora larga freguesia. De maneira inconsciente, repetias a vida
de homem do século dezenove, pois prescindias de quase tudo que trouxera a
moderna tecnologia.
Não há de
surpreender, portanto, o teu gran rifiuto
à revolução da informática, com a entrada em cena do computador e de toda a
relativa parafernália, que vinha anunciar nova era, sucessora do paradigma de
Gutenberg. Prima facie, nada havia de
pitoresco ou insensato na tua atitude. Não te detinhas nas vantagens e nas
facilidades que o computador abrira para os escritores, porque entrevias na
vasta, infindável rede de comunicação, mais do que o enxovalhamento da cultura
do livro. Encaravas a internet não
como evolução ou até mesmo revolução no paradigma da informação, mas como
funesta ameaça à própria existência do livro.
Na tua
postura razão e paixão se entrecruzavam. Com efeito, se afigurava difícil
destrinchar o engrouvinhado nó de uma reação em que a visão da crescente e
inexorável ascendência do novel instrumento se misturava e se ensombrecia com
animosos e arrebatados temores diante da suposta irreparável perda.
Malgrado os
recortes que sôfrego recolhias de ignotas revistas, e triunfante nos exibias,
com as suas diatribes contra os malefícios da internet, eu não lograva reconhecer o debatedor a um tempo sereno e
veemente, não infenso ao poder do pensado e preciso impacto do válido
argumento. Ali não estava o apaixonado defensor de causas que não era imune às
insídias e encantos do ceticismo crítico. Arrostando a minha incredulidade e o
plácido entendimento do Rezende, por vezes parecias vestir a camisa de algum
torcedor, tal a cargo de afeto que
trazias na defesa do modelo já condenado.
Em toda
apologia de causas perdidas, existe inefável aura de inquebrantável denodo, de
ardor irredentista que se nutre de esconsas e fincadas raízes. Cedo me
convenceria que o velho do Restelo como de opinião há de mudar, se em verdade,
ambos, criatura e modo de ver, se confundem em um só e único ser. Não te demoveriam
raciocínios seja sobre as facilidades
do novo paradigma, seja sobre possíveis
diferenças entre esta transição e a anterior.
Quando te
acenava com oportunidades que o antigo formato sequer poderia vislumbrar –
v.g., o acesso a artigos publicados em boletins universitários de princípios do
século XIX, arquivados em alguma biblioteca europeia, através da utilização de
serviço da internet, o qual, mediante
pagamento de taxa, me enviaria por correio aéreo a respectiva cópia xerocada da
matéria desejada – sentia a tua visceral recusa a manifestar-se com ainda maior
ênfase, como se bastasse o meio empregado para conspurcar a eventual qualidade
do material oferecido.
Dessarte, ao
invés da tua característica atitude de cético distanciamento, que evitava
assumir posições antes de peneirá-las criticamente, em matéria de computadores & web, o teu non possumus não se detinha diante de pretensas sutilezas,
ressoando estentórico com aquela convicção fundamentalista, de que te pejarias
em qualquer outro contexto.
Nem a
pachorra do Rezende, professor universitário, e portanto habituado, por mister
e convívio, a novos métodos e tecnologias, para ti representou um espelho em
que deverias perscrutar com maior atenção a face da realidade pós-moderna.
Tampouco as minhas tentativas, corroboradas por ensaios de Jason Epstein, de
mostrar-te o quanto a nova tecnologia poderia reforçar o livro como vetor de
arte e saber, ao possibilitar-lhe a edição e publicação sem os usuais
intermediários – sem falar na disponibilização de obras há muito esgotadas –
essas tentativas, repito, mais pareciam gritos a reverberarem nas pétreas
anfractuosidades do deserto, condenadas a desfazer-se na despedaçada
incongruência de isolados fonemas.
A
perspectiva de ir a uma livraria e de lá encomendar, e.g., o Antigonos von Karystos, de Ulrich von
Wilamowitz-Moellendorff, como se fora arrecém publicado, com a certeza de tê-lo
em mãos em uma questão de horas, não mais se afigura fantasia de science fiction, mas projeto bem próximo
de efetiva consumação. Por isso, a leitura dos artigos de Epstein, editados
pela New York Review, me
entusiasmavam por sentir ao alcance do estudioso em mediato futuro verdadeiro
progresso na aquisição do conhecimento. E desejava, meu caro Pedro, compartilhar
com o amigo esse tangível e alvissareiro avanço. Para meu descorçoamento, as
cópias dessas matérias que animado te trazia não provocavam em ti qualquer
reação. Seria como teus olhos resvalassem por linhas que nada te diziam, formas
talvez ininteligíveis de abstrusas, fantasmagóricas criações de mentes
delirantes.
Terei
escolhido mal o exemplo ao apontar o célebre tratado de Wilamowitz, de que em
tempos idos havias logrado obter um exemplar ? Quero crer que não. Porque essa revolucionária e não obstante
quase acessível tecnologia nos torna potenciais adquirentes não apenas deste ou
daquele livro, antes desdenhosamente tachado pelos grandes livreiros como out of print, mas de todos os tomos que
hoje dormem, esplêndidos posto que inatingíveis, sob bolorentos véus nas
estantes das bibliotecas. Espantava-me deveras que essa progressão geométrica,
aberta para o comum dos mortais, não te despertasse um prurido que fosse de
sopitada porém presente emoção.
Na quixotesca
luta que, com ardor, abraçaras a partir dos anos noventa, a negação te toldara
a vista, e como único refúgio lobrigaste no rígido incondicionalismo da
rejeição a preservação do espaço cultural com que identificaras para além da
razão.
Aí teremos
decerto uma explicação para a animosa contestação. Sem embargo, essa solitária
e tardia investida contra realidade que, de surpresa, te viera colher e
confundir no que seriam as derradeiras décadas da tua existência, não semelha
para mim o fator único que contribuíu para esta visão epimeteica, tão ao
arrepio da conformação de tua personalidade.
Recordo-me de
ocasião em que me solicitaste opinar, com base nas fontes de que dispunha,
acerca de determinado fragmento do poeta Semonides. Com agradável presteza,
transcrevi os excertos que me pareceram pertinentes e, como era meu hábito, te
mandei o papel por correio registrado.
Na vez seguinte
em que nos encontramos, o olhar comprido, vagando entre assombro e suspicácia,
me perguntaste:
“ Grafaste
aquelas linhas com o teu próprio computador ?”
“ Sim, tenho um
programa que me permite utilizar os caracteres do grego clássico.”
Embora tivesse
eu me esforçado em dizê-lo do jeito mais neutro e natural possível, a forma em
que reagiste me faria sentir inexplicável remorso por uma falta não cometida.
Havia na tua expressão um quê de melancolia de alguém a contemplar de longe
faculdades para ele tão admiráveis quanto inacessíveis.
Em poucas
décadas, o computador evoluíra da máquina custosa, de complexo manuseio, e de memória
ainda limitada, para instrumento em vias de se tornar indispensável, e não mais
a tarda, arredia e caprichosa geringonça eletrônica dos primórdios. Enquanto se
incrementava em agilidade e velocidade, a oferecer-nos leque a estender-se
visivelmente na própria capacidade de serviços, ía aos poucos se despojando de
ampla gama de senões e armadilhas, que espreitavam eventuais tropeços ou
escorregadelas do digitador.
As crescentes
simplificações, a livre concorrência, a progressão da tecnologia produzira
aparelhos sempre mais manejáveis, enquanto baixavam os preços, tangidos pelas
leis do mercado e por vertiginosa obsolescência, ou a outra face da moeda na
radicalização do aperfeiçoamento seja no hardware,
seja no software.
Para pessoa
que tantas horas dedicara ao estudo da evolução do ser humano, e que reunira
larga coleção na análise da teoria darwiniana, na marcha da espécie através não
dos séculos, mas dos milênios da paleantropologia, da pré-história e da proto-história,
dos primatas aos hominídeos, e do homo
erectus até o homo sapiens sapiens, para
alguém, enfim, com tal sede de conhecimento e participação, como seria de
súbito atinar-se relegado a mero espectador, como se fora o homem sem
qualidades de Musil? Ou, para expressá-lo em outras palavras, descobrir-se
criatura que, a princípio, por possível e surpreendente desatenção, e empós,
por não sentir-se em condições de adaptar-se à nova situação, quer por fatores
naturais e congênitos, característicos de sua faixa etária, quer por
contingências econômicas, resolvera projetar a respectiva sensação de não mais
poder adaptar-se nem aceitar o novo paradigma em desenfreada racionalização, na
qual se aliavam todos os componentes da negação, vale dizer, o afeto, a rigidez,
a impermeabilidade à lógica, e a insana procura de motivação que lhe fornecesse
o álibi inconsciente para uma proposição contraditória a tudo aquilo a que
dedicara, e que dera sentido à própria existência.
Amigo Pedro,
dentre os capítulos da tua vida – e que metáfora será mais adequada para quem a
sacrificou ao livro ? – este se me afigura um tanto confuso. Quem somos nós,
porém, para arvorarmo-nos em árbitros de outrem ? Mais adiante falaremos das
reservas sobre Freud e a psicanálise, assim como dos alegados preconceitos que
da tua geração carregarias nesse particular. E, no entanto, como Monsieur Jourdain que fazia prosa sem o
saber, foste um pouco freudiano nessas décadas que, de início, fremiam, e, mais
tarde, passaram a entender o seguinte milênio, como outra fátua invenção
humana, em que tudo muda, para nada mudar.
Em chegando a
tais afirmativas, adivinho mal desenhar-se em teus lábios a sombra de um
sorriso. Ora, veja, adentramos caminhos
conhecidos, palmilhados por antigos mestres, tais como Pyrrhon de Elis, Sextus
Empiricus, Pierre Bayle e tantos
outros que te são caros.
Nesse fim de
tarde, em que os raios de um enfraquecido Hélio
se espargem sobre construções disparatadas, afastadas da dórica beleza de uma
invisível Acrópole, e tal benção tardia logram embelezar-lhe a obscura feiúra,
penso que concordarás comigo em havermos atravessado a imprecisa linha de um
momento. Será, pois, hora de pôr fim a esta carta, em que sabe-se lá, meu bom e
eterno Amigo, te tenha mostrado feições que, se vivo fosses, discordarias com a
dúbia e especial veemência reservada às inextricáveis controvérsias.
Com a amizade
de quem não cessa de aprender graças ao nosso peculiar diálogo,
(x) extremada.
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