quarta-feira, 5 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (VII)

                                            
                                                    V I I  

 

        Meu muito prezado Pedro, Amigo e Mestre, 

 

         a portaria da pensão vitalícia para a Therezinha foi afinal publicada no dia quatro de julho, tanto no Diário Oficial da União, quanto no Boletim de Serviço do Ministério das Relações Exteriores. Por peculiaridades burocráticas que bem conheces, o dinheiro só poderá ser creditado a partir do próximo mês de agosto, embora deva incluir os atrasados desde que cessaste de receber a tua aposentadoria. Por sua vez, a questão da abertura da conta parece-me  no caminho da concretização. Ainda tenho que obter o assentimento do teu secreto amigo, o Dr. Manoel Brito, em intermediar a papelada que a Thérèse precisa assinar. Como a página da internet do Itamaraty está fora do ar – circunstância que não é incomum - não posso comunicar-me e tampouco saber se a encarecida resposta dele já se acha na minha caixa postal. Para ti, afigura-se estranha terminologia, mas não imaginas a medida em que tal pérfido e abominado instrumento vem tornando possível oportuna e expedita ajuda para a tua esposa.

        Retomemos, porém, a crônica de nossa interação, agora nos derradeiros anos do século vinte. Em fins de 1994, assumia o segundo posto como Embaixador, pensando, a princípio, tratar-se de uma promoção, eis que a missão seria em país de perfil diplomático importante e maior presença no intercâmbio comercial com o Brasil.

        Bastaram uns poucos dias em Alger la blanche[1] para que me conscientizasse das minhas vãs ilusões. Chegara a um país assolado por guerra civil não declarada, em que, por ultimátum dos radicais islamitas, estavam condenados à morte os estrangeiros que lá permanecessem. Não creio deva cansar-te com exaustiva descrição do momento mais delicado na minha trajetória diplomática. O toque de recolher, as ruas desertas, a virtual proibição de andar na rua, os tensos trajetos para os compromissos oficiais, as reuniões na Embaixada de Espanha para preparar a eventual evacuação, o exército Brancaleone que deparei na chancelaria brasileira, o confinamento na Residência...

       Tais sombrios pormenores, não penso tê-los mencionado em nossa correspondência. Não haverá sido por reserva, pois os atentados, as matanças estavam nos jornais. Em meio a preocupações de todo gênero, decerto preferi restringir-me às questões que nos concerniam diretamente. Em cartas que seguiam pela mala para serem postadas no Brasil por meu filho Raphael – e as tuas esperadas respostas vinham pela mesma rota – falava dos projetos intelectuais, de filosofia e de Aristóteles.

        Com efeito, eu não estava fugindo da realidade ao enveredar por esses assuntos. Através da amizade e do diálogo epistolar que a alimentava, tu me davas o raro ensejo de falar de cousas tão relevantes quanto gratificantes, e de afastar-me, não fosse que por uns quartos de hora, dos problemas que me atenazavam a consciência. Essa atividade me prometia, inclusive, um benefício colateral não-negligenciável, visto que me acenava, em alguma data futura, com o prazer de reatar a sincopada conversa, mediante o recebimento da resposta e, em particular, das observações, comentários e indicações que ela traria.

        A reclusão domiciliar que Ana Maria e eu arrostamos representou para nós brutal contraste e madrasta provação. Sobretudo para Ana, que me acompanhou nesses cinquenta e nove meses, por não dispor sequer de atividade fora das opressivas paredes dos dois casarões que formavam a residência da embaixada.

        A adversidade pode ter efeitos positivos. Nós dois soubemos entrever incentivos e colher vantagens, em situação que, à primeira vista, só oferecia temores, dissabores e maus humores. Tornaríamos suportável tensão e isolamento através da leitura, da televisão francesa e de seus programas culturais e, muito em particular, pelas saídas quadrimestrais que nos facultava a especificidade do posto.

        Se não dispunha de qualquer subvenção para preservar a saúde mental, a exemplo de outras chancelarias com serviços diplomáticos do nosso porte, não hesitávamos em viajar, nos quinze dias de licença, para a Europa e até para os Estados Unidos. Durante os vinte e um meses em que me quedei sozinho na embaixada, me coube até a humilhação de informar o grosseiro chefe do protocolo local que deixaria, consoante prevê a Convenção de Viena, um encarregado dos arquivos na minha ausência. O benign neglect[2] da Secretaria de Estado, incapaz de encontrar um diplomata como chargé d’affaires para substituir-me por uma quinzena, me constrangia, na prática, a fechar a embaixada, ao entregá-la a um modesto funcionário administrativo.

        Não foi à toa, portanto, meu caro Amigo, que eu escreveria um elogio da adversidade. Não sei se te mostrei o ensaio, que permanece inédito. Esqueçamos, contudo, as contingências e cuidemos de o que interessa.

        Não é estranhável que as partidas de Argel fossem dificultosas. Nós as enfrentávamos, aguilhoados pela forçada reclusão, com alegria e disposição, embarcando nas aeronaves da Air Algérie – depois do sequestro de Natal de 94, todas as companhias ocidentais de aviação suspenderam sine die os voos para o aeroporto Houari Boumediene – ou, no período de maior perigo, em navio francês, que tinha cerca de cinquenta gendarmes na tripulação.

        Paris seria o destino mais frequente, conquanto tenhamos visitado New York por duas ou três vezes. Roma e Atenas foram escalas de um roteiro, sem contar as conexões por Genebra, Lyon e Marselha.

        Não sei se te falei da sensação que experimentávamos ao andar pelas calçadas e ruas da rive gauche, depois de largar nossas malas em confortável quarto do hotel Madison. Éramos verdadeiros nefelibatas. Estávamos nas nuvens e mal acreditávamos poder pisar livremente no pavé das ruas, em misturar-nos a parisienses, turistas e flâneurs, em parar diante de vitrinas, em fazer as nossas compras nos armazéns de bairro que tão bem conhecíamos e aonde só devíamos atentar para a contramão do bulevar Saint Michel e os sinais de tráfego nas movimentadas artérias nas cercanias da Sorbonne.

        O meu palpite é que não. Talvez por achar demasiado pessoal aquela impressão.  Como transmitir a alguém que não vivia enclausurado por bárbara, difusa ameaça o nosso estado de espírito ? Como tu poderias entender essa reação ?

        Hoje, ao repassar contigo a experiência argelina, compreendo melhor por que me senti compelido a escrever um Elogio da Adversidade. Qualquer comparação com a obra célebre de Erasmo será apenas incidental. Dentro de mim nascera a convicção de que mesmo a sorte adversa não só pode desembocar em soluções exitosas, senão provocar respostas inesperadas, como, por exemplo, a valorizaçãao de situações e manifestações que pela sua aparente singeleza tendem a passar quase desapercebidas para o comum dos mortais.

       Graças a esta correspondência me descubro a acrescentar uma faceta mais a ensaio escrito sob o lacônico ditado da privação. E é bom que vislumbre em anos de chumbo a beleza daquelas fugidias quinzenas. Inesquecíveis na sua brevidade, eis que nos mostravam que a realidade não se cingia à esquálida vida em posto de sacrifício. Depois da travessia do deserto, as delícias do oásis, suas tâmaras e a água fresca das fontes, seriam o refrigério realçado pelo padecimento. Que importa se o verdadeiro oásis não é aquele fabricado pelo cinema americano ? O sofrimento é tempero acerbo e pungente, mas ajuda e muito a captar as diferenças qualitativas de realidades mais favorecidas, diferenças essas que não existem para quem desconhece a outra vertente, e, por conseguinte, está incapacitado de realmente apreciar o ambiente em que vive.

      As visitas a Paris e New York me forneciam não só a ocasião de postar cartas digitadas em Argel, mas também de escrever cartões e pouco mais do que bilhetes manuscritos. Valia-me desses correios confiáveis para te fazer chegar com maior presteza as minhas impressões e experiências. A ênfase estaria sempre nas leituras, nas passagens pelas livrarias e em algum tópico objeto de uma discussão à distância.

        Vamos por partes. Em New York, as insídias do capitalismo vinham extinguindo a presença nos quarteirões nobres da Quinta Avenida de muitas prestigiosas livrarias. Da Scribner’s só sobraram as vitrinas e o letreiro característico em metal dourado. Outras desapareceram sem deixar rastro, como a Doubleday’s e a Dalton. Conhecias uma na downtown Broadway, a Strand Book Store, se não me engano na esquina com a rua Catorze. Livraria grande, para mim tem dois defeitos principais: parece-me demasiado organizada para um sebo; e, dedicados à filosofia, tem muito poucos livros. Há que reconhecer-lhe, todavia, uma qualidade, nesta selva concorrencial. Como o Abbé Sieyès, ela sobrevive.

        Quantas outras boas livrarias foram devoradas pelos altos alugueres e a especulação imobiliária ? De algumas já meio que esqueci o nome, mas não o próprio ambiente e as convidativas estantes. De uma, próxima da Madison, lá pelas ruas setenta, me recordo de prateleiras plenas de volumes da Coleção Loeb. Não tenho certeza se se chamava ‘Books & Company’. De outra, a Coliseum Books, na Broadway, vizinha ao Central Park, onde encontrava brochuras e paperbacks indisponíveis alhures.

        Assisti, consternado, à involução da Barnes & Noble. De ótima livraria na Quinta Avenida, lá pela rua  Oitava, ela cresceria, em progressão irresistível e tentacular, para a enorme cadeia onde as considerações comerciais e vulgarizantes passaram a reinar supremas, e a não mais conviver com seções voltadas para interesses mais amplos e rarefeitos.

        Dessarte, as grandes livrarias comerciais vão sufocando, em uma seleção das espécies às avessas, as salas e os estabelecimentos menores, que servem a um público minoritário e não a ïj ðïëëïß.[3]

        Salvo a Strand na Broadway, não me lembro que me hajas referido alguma outra
bookstore em New York. Não sei da data da(s) tua(s) passagem(ns) por Manhattan, porém presumo que se situe(m) ou no final dos anos cinquenta, ou na década dos sessenta.

       Além das indicações de livros de que me recomendavas a aquisição, de quando em vez me pedias a compra de obras que não lograras obter através das encomendas pela Leonardo da Vinci. Havendo fechado as tuas contas no exterior em 1984, não mais podias ordenar diretamente volumes da Blackwell’s, Brill, e tantas outras a que recorreras no passado – e o teu leque de fornecedores era bastante mais largo do que o meu. Dependias, assim, dos agentes de D.Vanna, cuja rede no estrangeiro tinha diversos furos.

       Entretanto, em geral, eu não conseguia desencavar os títulos que procuravas. Costumavam ser edições desde muito esgotadas, publicadas há mais de dez anos, o que tornava a sua eventual localização assaz problemática. Quando se tratava de livros de publicação recente, eu os obtinha, como foi nos três volumetos relativos à filosofia helenística. Existiam casos, todavia, em que o teu desinteresse me causava alguma perplexidade. Como, por exemplo, na possibilidade de adqurir os cinco volumes da obra de I. Bekker, reeditada em fac-simile, sob a coordenação de O.Gigon. Não entendia eu como um estudioso aristotélico não quisesse ter na sua biblioteca a obra crítica do corpus cuja classificação é por todos aceita para a identificação e localização das citações concernentes ao Estagirita. Somente ao tomar conhecimento dos teus parcos fundos, de pronto zerados pelas despesas com hospitalização e funeral, que pude compreender a reticência em assumir tais compromissos. Dado o elevado custo da coleção, não era decerto a carência de desejo e sim a falta de meios materiais que determinara a tua decisão.

        Nessa década de noventa, graças à leitura da obra fundamental de I. Düring sobre Aristóteles, e a indagações minhas subsequentes, por teu intermédio diversas lacunas no meu conhecimento foram atendidas. Recordo-me das tuas indicações sobre o Protreptikós, de que extensos fragmentos foram conservados através de um texto de Iamblichus. E com essa exortação à filosofia – que é obra da primeira fase – tive acesso, por assim dizer, à vertente ‘fragmentária’ do filósofo, que se refere precipuamente aos diálogos. Tais escritos, destinados ao grande público, se chegaram, em boa parte, às mãos de Cícero, depois da sistematização  do corpus por Andrônico de Rodes, não mais seriam recopiados.

       Esse desaparecimento dos trabalhos do jovem Aristóteles, supostamente sob influência platônica, foi causado pelo maior interesse e relevância dos tratados, escritos ou ditados, em maior parte, durante a maturidade.

       Quanto à importância do livro de Düring, jamais a colocamos em dúvida. Tampouco haveria entre nós discordância no que concerne a matizar, sob as lentes do bom senso, a rigidez do classicista sueco ao querer apresentar o filósofo, desde os primeiros anos na Academia, como em oposição à teoria das ideias de Platão. Essa postura de Düring força os limites da credibilidade, ao pretender mostrar um pensamento aristotélico que na prática não teria sofrido a natural evolução. Sempre nos pareceu agredir o plausível que Aristóteles não haja sofrido neste aspecto qualquer influência da personalidade do Mestre, mesmo ao encetar a própria trajetória como um dos expoentes da Academia.

       Se a nossa visão não discrepava sobre os temas básicos, havia alguns pontos em que discordávamos. Creio que a principal diferença diz respeito ao juízo acerca da posição de Aristóteles no que tange à escravidão. Para ti, aí distinguias o principal erro do filósofo, ao negar-se a questionar este instituto da civilização antiga. Nas tuas correspondências alusivas a tal particularidade, não era incomum que viessem acompanhadas de xerox de autor que criticasse o Estagirita por não combater a escravidão. Ao discutir a questão, não te pejavas em recorrer a uma Weltanschauung  moderna na
avaliação de homem que vivera no quarto século antes de Cristo, no final da época clássica.

      De minha parte, sempre tentei mostrar que o principal equívoco da tua posição era o de desconhecer o ditame cardeal do historicismo. Não se pode julgar uma civilização e seus traços mais significativos – porque de civilização e não de personalidade se trata – valendo-se de princípios que a ela são alheios. Aristóteles como homem do seu tempo simplesmente não questionou a escravidão por ser uma das bases sobre as quais se fundara a Antiguidade. Não se poderá, por conseguinte, conceber-lhe o modelo existencial, nas suas facetas política, social e econômica, sem computar essa instituição entre os seus fatores determinantes. Por mais que procurasses trazer o debate para o terreno da ética, acreditando que seria mais favorável para o teu raciocínio, o caráter anacrônico da tua argumentação – inexiste uma ética fora do tempo – se via também sublinhado pela circunstância de que os eventuais e escassos opositores da escravidão na Antiguidade, por serem marginais à própria civilização, colheram de seus contemporâneos a pior das reações, vale dizer, a indiferença.

        Por mais que primasse pela discrição, seja nas cartas, seja particularmente nos almoços bissextos no bar Monteiro, o meu estudo de grego clássico se tornaria, com o passar dos anos, uma presença incômoda. Por vezes, se repontasse alguma dúvida nesse vasto domínio e, por força de labuta contínua, me descobrisse em condições de dirimi-la, a minha intervenção seria recebida em silêncio, ou,o que seria talvez pior, com uma palavra de admiração de Rezende.

       Ao decidir empreendê-la nos anos do poente, a caminhada pelos pedregosos e impérvios campos do aprendizado clássico é jornada tenaz, difícil, ensombrecida por perenes incertezas e, de quando em vez, visitada por ensolaradas visões. Mas a despeito da memória trôpega, persiste o passo pertinaz e, por mais que a descrença se reflita no solo áspero, de repente o espaço se alarga e para tua surpresa vislumbras paisagens mais alentadoras.

       Por primeira vez, ao cabo de um almoço, te perguntei o que me sugerias como dicionário de grego clássico. Nesse instante, terás sentido que, se formalmente o cenário era o do discípulo que solicita do mestre uma orientação, na interrogação e sobretudo no empenho que por trás dela havia, se desenhava um prenúncio de mudança.

      Referia-me ao Liddell and Scott Greek-English Lexicon. Deveria contentar-me com a edição intermediária ou adquirir também a completa ?

      Para ti basta a abreviada.’

      Espantou-me a reação. Primeiro, porque não fazia justiça à tua generosidade. Existia na frase um tom de menoscabo, como se não devesse aspirar às excelsas páginas de papel bíblia da edição oxoniana da Clarendon Press. Segundo, porque a incisividade na  excludência insinuava a postura de alguém que se sentia ameaçado.

      Se nunca mais viria a te mencionar a alternativa, a minha resposta seria mais do que previsível. Encomendei da Blackwell’s  um exemplar da edição integral, que, inclusive, me serviria no futuro para elaborar um papel em que intentei dirimir dúvida tua sobre um verso de Simonides.

     Com o abraço saudoso do amigo de sempre,




[1] a branca Argel
[2] negligência benigna
[3] Os muitos, multidão.

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