domingo, 9 de junho de 2013

Colcha de Retalhos A 20

                                       
Erdogan, o Islamista democrático?

 
        Ainda é cedo para pronunciar o destino político de Recep Tayyip Erdogan. Há dez anos no poder, o Primeiro Ministro da Turquia terá confundido a anterior apatia do povo turco como implícita manifestação de apoio.
        Erdogan, com o seu partido A.K.P. (correspondendo às iniciais turcas de partido de Justiça e Desenvolvimento), soube contornar os arrecifes que haviam condenado o precedente avatar de partido islâmico, e ao cabo de uma década, logrado o controle sobre o exército – antes o garante do laicismo do fundador do estado turco moderno, Mustafá Kemal, o Ataturk – e as agremiações seculares, notadamente o Partido Republicano Popular (CHP).
        O Primeiro Ministro tem logrado melhoras na sociedade turca, tanto no aspecto econômico, quanto na espinhosa área das relações com a minoria curda. Sem embargo,  sua veia islamista – que crescia pari passu com os alegados êxitos na esfera política – e a hubris decorrente da longa permanência no mando terão toldado o julgamento de Erdogan.
         A supremacia política do chefe do A.K.P. se sustentava no apoio das massas da Anatólia. Se tal chancela lhe confere invejável base de sustentação, ela vem tingida de traços e princípios que o Ataturk procurara escoimar da nação turca, porque vira na invasão da religiosidade na esfera governamental a marca da anterior decadência da nação otomana.
          Erdogan foi hábil bastante para trazer em surdina esse elemento que se chocava com a rationale do estado turco moderno. Com o passar do tempo, no entanto, a elevação do nível de vida das massas que apoiam o AKP – e as mostras por toda parte da submissão islâmica das mulheres, a começar pela própria esposa de Erdogan, com os cabelos recobertos – começou a expor igualmente na vestimenta a nova realidade.
          E as coisas não ficaram por aí. Por baixo da aparência liberal e democrática, outras cabeças surgiriam. Inventou-se um singular princípio – o da turquicidade. Com largos traços fascistóides, o legislador da maioria islâmica desenhou novos princípios, a serem obedecidos pela população. Como todo absurdo impositivo, esse mostrengo buscava cercear a liberdade de expressão. E os excessos chegaram ao ponto de que até o laureado turco pelo prêmio Nobel em literatura em 2006, Orhan Pamuk, teve de lutar contra os seus tentáculos.  
         Não obstante, a arrogância de Erdogan – que intimidara a oposição e até o exército com o cárcere – e o montante distanciamento da precedente cautela, o conduziram para o previsível tropeço, ao subestimar o limite da docilidade popular. Há duas semanas atrás começou a demolição – melhor dito o arrasamento – da praça Taksim, a última restante em Istambul.
          A princípio, a destruição do último espaço arborizado no centro de Istambul – supostamente para instalar um centro comercial (mall) e uma réplica de caserna otomana – encontrou a princípio uma débil resistência ecológica, que a violência da repressão policial (com cruel emprego de sprays de pimenta sobre mulheres) teve o condão de metamorfosear-se em grande movimento popular.
         Mesmo na era da internet, semelha impressionante a capacidade da rua  para dar força aos movimentos de contestação. Ao contrário dos cínicos de plantão, a resistência se alargou e se reforçou, malgrado o inicial menosprezo de Recep Erdogan, ao apodar os manifestantes de saqueadores.
         Essa nova irrupção do chienlit[1] pode metastizar-se em séria ameaça política a Erdogan, para quem as oposições colocam a exigência da renúncia. A pose de estadista do primeiro ministro – que pretendia alterar a Constituição para introduzir o presidencialismo no país (adivinhem quem é o seu candidato ao posto) – de repente se descobre contestada.
        A história está cheia de episódios de autismo de autoridades que se acreditam poderosas o bastante para prescindirem da auscultação das bases. Ainda é cedo para lançar vereditos, mas de toda maneira a arrogância de Recep Tayyip Erdogan se descobre contestada pela sem-cerimônia da suposta plebe ignara.

 

A  Vingança  da  Geografia  

 
          É difícil para os autores americanos lidarem com a súbita aparição do fenômeno do declínio estadunidense.  A palavra que principia a repontar amiúde nas publicações da terra de Tio Sam adota inegável cautela, mantendo à distância as conotações  spenglerianas[2] da decadência.
          A literatura do decline está bastante presente nos artigos de George Packer para o New Yorker, posto que não seja mencionado por Robert D. Kaplan, o autor do livro de que ora tratamos, i.e., The Revenge of Geography, publicado pela Random House, New York, em 2012.  Packer nos mostra os estragos feitos pelas guerras médio-orientais de George W. Bush (Iraque e Afeganistão) no interior dos Estados Unidos, com o fechamento de fábricas e o esvaziamento das pequenas cidades, com a crise na Main Street. Constituem, por assim dizer, consequências ocultas e distantes do dispêndio milionário nas campanhas militares, com o lento sangramento interioriano, que vai transformando em quase desertos as antigas localidades dos E.U.A., em que se sucedem os galpões fechados, os negócios às moscas, e a povoação assaz restringida.               
        Em outro espaço, me ocuparei oportunamente das observações de Kaplan sobre o Brasil. Feito esse indispensável parêntese, recomendo a leitura de Kaplan que evidencia, uma vez mais, a importância da geografia para entender a marcha da história. Nesse contexto, a obra[3] de Fernand Braudel, ironicamente escrita em boa parte durante a ocupação hitleriana da França no regime colaboracionista de Vichy, marca a relevância da geografia e do longo período na determinação dos chamados eventos históricos.
         Kaplan se ocupa das bases territoriais e das respectivas insularidades para apresentar dentro da tradição geopolítica de passados especialistas, como Sir Halford J. Mackinder, famoso pelo artigo “A influência do fator geográfico na História”, de 1904, Robert Strausz-Hupé, que dentro de enfoque realista destaca a relevância do conhecimento geopolítico, Nicholas J. Spykman – que enfatiza a importância do litoral -, Alfred Thayer Mahan, que sublinha, em viés imperialista, a importância da marinha, e Paul Bracken, que acentua a crise do espaço, com o desenvolvimento da tecnologia missilística
         No que tange a Israel e a suas perspectivas, talvez pela sua simpatia a esse povo, sublinhada de resto pelo seu serviço militar no Tsahal, em algumas das avaliações de Kaplan o leitor as encontrará mais nas entrelinhas do que no texto próprio.  O mesmo implícito cuidado será visto no que concerne à fronteira americana com o México, dadas as implicações de um potencial narco-estado abaixo do Rio Grande, se bem que a citação de Toynbee sirva de advertência tanto para Israel, quanto para Tio Sam: “A construção do marco fronteiriço romano (limes) coloca em movimento forças sociais que estão destinadas a terminarem de forma ruinosa para os construtores. (...) Não importa o que decida o governo imperial, o interesse dos negociantes, pioneiros, aventureiros, e assim por diante os trará inelutavelmente para além da fronteira estabelecida.” Nesse sentido, a história confirma a prevalência do lado mais fraco no espaço de tempo mais longo...

 

A má-surpresa do Domingo

         
          Tive um chefe no passado que dizia temer mais os burros dinâmicos, do que outra espécie de gente. Vejam, meus caros e ilustres passageiros, o que nos apronta o modesto bonde dominical.
          Um dos meus prazeres ao ler a Folha de S. Paulo centrava-se na coluna de Danuza Leão, no caderno Cotidiano da edição do domingo.
          Seus leitores tinham a certeza de que jamais se entediariam ao perlustrar as suas observações, movidas tanto pela vivência carioca de uma geração, quanto pela experiência da trajetória armazenada na bagagem da joie de vivre. Com a quase sempre bem-comportada ironia, e abertura que, sem desdenhar o novo, sabia acolher a menção de passados episódios e de radiantes lembranças.
          Hoje, domingo nove de junho, por imperial e telefônica determinação do editor Sérgio Dávila, movido pela crise e sabe-se lá por que outras recônditas razões, será em vão que folhearemos a pagina dois do caderno Cotidiano. Nenhum colunista terá aí exprimido em tal relevância e amplitude a própria conexão com o entorno a que fora admitida.
              Sem pensar carecer de maior motivação, este senhor editor produzirá o mesmo efeito que um jupiter provinciano, a ceifar, com olímpica indiferença, alguém que se ocupava em preencher espaços alheios, e a quebrar, com muito jeito e estilo, a monotonia do domingo, armada apenas de  espírito carioca e  eventual, sempre bem-informada, ironia.
              Permito-me, a propósito, formular votos egoístas de que a interrupção seja curta, ao augurar que outro jornalão inteligente tome a iniciativa de acolher, em suas páginas, a Danuza Leão, com a oportuna, graciosa e inteligente colaboração dessa  amiga de tantos cariocas, honorários ou não, ainda que deles pessoalmente desconhecida.
 

 
(Fontes:  International Herald Tribune;  O  Globo;  Folha de S. Paulo ; The Revenge of  Geography, Robert D. Kaplan )  




[1] O vetusto vocábulo utilizado pelo General de Gaulle para descrever o movimento estudantil de 1968 como simples baderna de rua, quando na verdade ‘les troubles’ de maio sinalizavam o início de sua queda.
[2] Relativo a Oswald Spengler (1880-1936), historiador alemão, autor da célebre ‘Decadência do Ocidente’, publicada logo após a derrota alemã na I Guerra Mundial, e que influenciou o grande historiador inglês Arnold J. Toynbee (1889-1975),  com o seu “A Study of History” (Um Estudo da História), em doze volumes.
[3] Fernand Braudel (1902-1985), historiador francês -  O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II.

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