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Meu Amigo Pedro,
se chegamos a esse número, tão
prenhe de agourentos presságios, a ponto de os construtores de edifício nos
Estados Unidos terem literalmente cortado o problema, eliminando o número treze
na contagem dos andares – e dessa digressão é melhor fugir, não fosse por
demonstrar-nos que a postura dos avestruzes não é tão abstrusa assim como parece -, devo afirmar que durante tantos
anos de dessultório convívio, jamais te pilhei em outro comportamento que não o
do sereno desconhecer de todos os rituais a que os supersticiosos se prestam,
seja dissimulada, seja abertamente. E não é dizer pouco se se tenha presente
que o mau-olhado – e a turba de sinônimos flagrada pelos dicionários, nas
várias gradações do temor primevo – se dá ao luxo de na língua de Dante
apropriar-se não de um número, porém de dois, oferecendo assim aos cultores do
sobrenatural, confessos ou não, a dúbia dádiva de poder escolher entre dois
males.
Feito o registro, inda que perfunctório, um
pouco à maneira designada por Machado de Assis aos cumprimentos de ‘vista e de
chapéu’, passemos à situação presente de Thérèse. É com satisfação que a vejo
bastante desanuviada. A meu conselho, ela aplicou a soma recebida do seguro –
que, infelizmente, por causa das hierarquizações burocráticas, encolheu – em dois time
deposits, de três meses cada, automaticamente renováveis. Como o Federal Reserve System, na luta contra
a inflação, aumentou substancialmente a taxa de juros, o rendimento em dólares
será apreciável. Agradou-me que Therezinha haja desistido do propósito de
repatriar todo o montante, o que implicaria em perda ponderável, não só na
transferência para cá – eis que o real continua muito apreciado em relação ao
dólar americano – senão na própria inversão, com os pífios ganhos mensais das
cadernetas de poupança.
Não me atrevo a supor o que pensas de tal opção.
No passado, decidiste encerrar a tua conta em New York, na agência do Banco do
Brasil (ignoro se terias outras no estrangeiro), quando da aposentadoria. Neste
momento, não tenho dúvidas que Thérèse bem fez em acatar o meu conselho. Aliás,
tudo o que foi alcançado em termos de estabelecer-se condições existenciais
estáveis para a tua esposa, devemos aos meus amigos e colegas no Itamaraty, à
inestimável intermediação da web, e, last but not least,
à ajuda generosa e ao bom senso do teu amigo in pectore, o Dr. Manoel Francisco Freitas
Brito, sem o qual não atino como todo esse esforço seria factível.
Cumpre não esquecer que a tua situação
financeira não era invejável, se me permite o eufêmico lugar-comum. Se não é o
caso de voltar a tão penoso estado de cousas, cabe a menção para sublinhar de
quão bem-vinda foi a injeção de divisas na restabelecida conta da Thérèse.
Representa preciosa vantagem, e por ser a única reserva que lhe resta, é mister
que a tua companheira a administre com muito cuidado.
Soube pelo Dr. Brito que ela deseja contratar
um jardineiro doublé de motorista.
Ficará, assim, o plantel da Visconde do Uruguai reduzido a duas pessoas.
Partindo da premissa que Therezinha considera possível lá permanecer com a
pensão do Itamaraty – que não rivaliza em munificência com as concedidas a
viúvas de magistrados -, esta resolução implica em conservar o carro e despedir
o Hermes (x). Essa ponte carece ainda de ser cruzada; das questões pendentes, pela
sua urgência e delicadeza, é a que exige maiores precauções.
No que
tange à publicação do ‘Animal Político’, tarda a resposta do Rezende à minha
última carta, e por isso desconheço do resultado da programada entrevista com o
vice-reitor da P.U.C. Tampouco disponho
de informação acerca do eventual destino da tua biblioteca, ou melhor, se nesse
campo se terá tomada alguma providência.
Em recente entrevista, o Cláudio Lembo –
antes obscuro vice-governador de São Paulo, ora guindado pelas ambições
políticas do Geraldo Alckmin ao palácio dos Campos Elíseos – declara, a propósito
de carta do Fernando Henrique a respeito do PSDB, a morte da epístola diante da
generalizada utilização do e-mail.
Parodiando Mark Twain, há evidente exagero na assertiva. Além disso, não
creio que se refira o Sr. Lembo, pois o conceitual não será decerto o seu
forte, à carta como gênero literário. Ele a pensa, ao invés, como simples
instrumento de comunicação.
Se não sou suspeito de simpatias pelo
ex-presidente, em sendo amigo de verdade, tampouco o acoimarei de falto de
cultura. Assim, sem querer agradar-te, parece-me forçoso reconhecer que o e-mail, por mais útil e pronto que seja,
não pode vestir-se da gravitas, que atendido o estilo e a substância, bem assentaria na velha carta.
A esse ponto,
não hás de criticar-me por mais uma repentina virada. É tempo de fugir das
tricas e futricas da medíocre política local, e revisitarmos antigas
experiências nos caminhos batidos de passadas memórias, enquanto vívidas as
tenhamos na amarelecida tela de nossa mente.
Gostaria, se possível fora, de reconstituir a
tua breve passagem pelo Rio. A fim de tornar menos ambíguo o propósito,
tomemos, por exemplo, uma das tuas incursões em torno do advento do novo milênio.
Bem sei que a busca da precisão é matéria ingrata, e com resultados nem sempre
conformes à expectativa. Para tanto, basta pinçar a palavra ‘milênio’: se ao
comum dos mortais o ano 2000 assinala o evento, já para os puristas (ou idiotas
da objetividade, como se atrevia a chamá-los Nelson Rodrigues) o século XXI só
principia em 2001.
De qualquer modo, como as previsões
xiliásticas costumam ser rotineiramente ignoradas com cronológica indiferença,
e as remembranças sóem padecer das inevitáveis brumas, refrações e mesmo trevas
da fútil, frágil e, por vezes, febril memória humana, sigamos adiante com a
citada fórmula.
Havia um
ritual na programação do almoço. Assumias o encargo de propor a data, em geral
através de lacônicos telefonemas, para mim e o Rezende. Se estivéssemos de
acordo, ías à rodoviária comprar os bilhetes de ida e volta, não sem antes
consultar, em sendo de tal seção um dos mais atentos leitores, a previsão do
tempo publicada pelo jornal O Globo.
Confirmado o
bom tempo – condição sine qua non
para a viagem, o que não impedia carregasses em uma das sacolas o indefectível
guarda-chuva -, em outra ainda mais breve chamada ratificavas o teu desígnio.
Dada a caprichosa meteorologia do Rio de Janeiro, combinavas comigo, se grave
te parecesse a ameaça de intempérie, que me telefonarias lá pelas oito e meia
da manhã seguinte, ou para cancelar, ou para inquirir da situação atmosférica
carioca.
Ah, como me
recordo deste telefonema, que soou às oito e quinze:
“ Mauro ?!
Como é que estão aí as coisas ?”
“ Pedro, o
céu está nublado, mas a essa hora...”
“ Então Você
acha que não vai dar ?”
“ Pedro, me
dá um minuto que vou ver lá fora como está o tempo...”
Em rápidas
passadas, alcanço o terraço. Vejo o céu nublado a oeste, encobrindo o
Corcovado; e esgarçado a leste, entremostrando pálido azul.
“ Olha Pedro,
se de um lado está coberto, de outro parece que se vai abrir...”
“ E então ?
Acha que dá ?”
A tua voz
cobrava uma diretiva, e não descrições.
Após instante
de indecisão, resolvi arriscar a minha impressão.
“ O meu
palpite, Pedro, é que não vai chover.”
“ Muito bem
!”
Senti o teu
alívio. E com a resolução de quem se descobre afobado para pegar o ônibus,
completaste:
“ Então, até
logo mais, meu velho !”
Num átimo, se o interlocutor desaparecera, com
os olhos da mente te acompanhei, o passo estugado, a precipitar-se na direção
da porta e do carro, enquanto, com largo gesto, mandavas o Waldir ligar o
motor.
Por sorte, não errei no prognóstico.
Sentado na poltrona da frente, contemplavas a
estrada tantas vezes percorrida. Lá pelas dez e trinta descias do pullman, e arremetias, com a pressa
costumeira, para a Rio Branco. À volta, as calçadas de pedra portuguesa
marcadas pelos buracos da incúria municipal, os canteiros transformados em
manchas verdes de capim, mendigos e camelôs espalhados pela praça, pivetes à
espreita, e a multidão de anônimos que invade o centro nos chamados dias úteis.
Sem deter-te, caminhavas para o antigo sítio
do Hotel Central, de onde se viam passar as escolas de samba e os carros dos
Fenianos e dos Tenentes do Diabo. O vetusto casarão, de cor ocre, fora
substituído pelo gigantesco edifício Central. Ali entravas, para a primeira
visita livresca. Havia na segunda sobreloja uma livraria, que já mostrava
sinais do próximo fechamento, sangrada pelo alto custo do aluguer e o baixo
interesse do público. Ali, não te demoravas muito. Conversavas com o dono,
perguntavas das novidades, e passavas olhar ligeiro e conhecedor sobre as
expostas lombadas, sempre à cata dos títulos e gêneros diversos. Às vezes,
encontravas algo, e as sacolas principiavam a receber a carga daquele especial
mantimento que há muito norteava as tuas vindas à cidade, desde os tempos do tardo
fastígio da confeitaria Colombo, da Ouvidor, da Gonçalves Dias, do Largo e da
rua da Carioca, da Praça Tiradentes e da avenida Passos, hoje tristonhos, encardidos,
encanecidos, obscuros avatares de um pequeno mundo para sempre perdido.
Às vezes o
teu espaço livresco se encolhia, diante dos mandados de Thérèse. Eram buscas
difíceis, que incluíam globos de vidro para a iluminação do jardim. Para
carregar, um verdadeiro estorvo, menos pelo pesoi, do que pelo formato
desmesurado. E havia sempre o perigo de que tivesses de refazer o caminho, para
substituir o precioso objeto, quebrado
por um brusco movimento, em algum desastrado instante da tua jornada.
Os pedidos da
esposa, no entanto, eram esporádicos, e assim podias manter em geral o que chamaria
tuas escalas. Na rota da Leonardo da Vinci, onde concentravas boa parte das
encomendas, creio que no próprio Edifício Central, ou redondezas, a pausa do
cafezinho, sorvido com gosto, talvez reminiscência dos teus longínquos dias de
fumante. Cousa de um minuto ou dois, mas contigo pressa e prazer amiúde andavam
juntos.
De lá, para o
edifício Marquês do Herval era um pulo. O obstáculo, a avenida Rio Branco, e a
espera pela abertura do semáforo de pedestres. O passar dos anos, se não te
privara da lepidez, tampouco te tornara mais prudente. Muita vez, ou nesta
movimentada artéria, ou na Presidente Vargas, te vi empreender, com o sinal
fechado, arriscadas travessias, de que me recusara participar.
O acesso a
Leonardo da Vinci se faz por larga passarela, que desce em espiral. Assim,
abaixo do nível da rua, mas sem realmente configurar um subsolo, chegas a
espaço relativamente amplo, com os elevadores à direita, e à esquerda, um par
de lojas inconspícuas. A livraria que se alargou com as décadas – aí
instalou-se nos anos cinquenta, logo após concluída a obra – hoje ocupa duas
salas à esquerda, e duas à direita, incluindo modesto sebo.
O negócio de D. Vanna enfrentou até um
incêndio bastante suspeito, nos dias de chumbo da ditadura militar. De uns anos
para cá, não parece tão florescente, por força da natural usura das gerações, e
do encarecimento do livro estrangeiro, devido, a meu ver, menos à valorização
do dólar e das principais moedas europeias, do que aos custos operacionais e ao
ônus de manter larga oferta de baixa liquidez.
Em consequência, já ao adentrar a primeira
sala, reservada à filosofia, história e outros livros de maior preço como os da
Pléiade, notavas que as mesas de
exposição não semelhavam tão cheias de edições recentes, nem abundavam em
livros como antigamente. Dir-se-ía que a providente dona apertara o conduto das
aquisições espontâneas, preferindo, as mais das vezes, importar volumes sob
ordem específica dos clientes. É lógico que não poderia cingir-se a tal procedimento
– o que equivaleria a transformar-se em espécie de reembolso postal – mas aos
fregueses tradicionais bastaria um relance para sentir a crise na escassez dos
títulos, na mal disfarçada pobreza de novidades, e no menor afluxo de público.
Gostavas de enveredar pela sala contígua, com
suas mostras de bioética, de antropologia, sociologia e compêndios científicos
e de referência. Ali haveria ainda menos gente. Não é que o rato de livraria
ame o burburinho das alas apinhadas. Sem embargo, a arte de perlustrar as capas
e contracapas, de que eras mestre, se revigora na companhia atenta e
interessada, porém jamais bulhenta e estouvada, de outros garimpeiros da
palavra impressa.
Passava em
revista os livros como o oficial de dia inspeciona a tropa. Compenetrado, o teu olhar deslizava devagar
ao longo das brochuras e tomos encadernados, absorto a ponto de não dar tento a
quaisquer diversões. Repontasse algo diferente, capaz de deter-te o movimento,
a fronte se curvava e as vistas se fixavam, tal ourives a examinar as arestas
de pedra preciosa. E dessarte seguias, sem cuidar das pessoas ao redor, mas tão
somente à cata, dentre as ordenadas fileiras de livros, de algum que te
compelisse a retirá-lo da estante e vistoriá-lo, dele folheando as páginas, cruzando-o
por vezes com a destreza do malabarista, a verificar-lhe as notas de rodapé, a
bibliografia e o índice geral, a intuir-lhe peso e alcance. Com um seco meneio,
muitas dessas revistas cessavam. Se, entretanto, à vistoria perfunctória
sucedia a intenta leitura de um trecho, fosse colhido a esmo ou não, crescia a
possibilidade de que o pusesses de lado, para ulterior exame. E, de longe, para
um caixeiro ocupado com outro cliente, dirias, com o timbre alteado, quase
agudo, de quem carece de bradar, para ser escutado:
“O senhor
poderia juntar este livro àqueles outros que já separei ?”
E sem
esperar pela resposta, te acercavas do confuso empregado, e qual em golpe de
esgrima, enfiavas nas atônitas mãos mais um candidato para as ávidas sacolas.
Tarimbado frequentador da Leonardo da Vinci,
dela conhecias todos os meandros.
Na sala principal, à esquerda de quem entra, lá mais para
o fundo, mas não muito próximo da mesa onde sentava naquele tempo o Jorge –
virtual substituto de D. Vanna se ela tal figura admitisse – se encostara
discretamente um tosco banquinho. Sobre bandeja de metal, duas garrafas, uma térmica
com café, e a outra, com invólucro de palha entrelaçada. Não é que, em
circulando por ali, distraídamente te pilhei servindo-te de cálice de conhaque
de procedência indefinida ? E o fazias
com o mesmo ar circunspecto de quem cumpre mais um rito dentro da minudente,
bizantina liturgia das tuas jornadas cariocas.
Aquela
escala, dada a sua relevância, alcançava, por vezes, o meio-dia. Em geral, o
fim da visita se anunciava, ao sentares à frente do Jorge – D. Vanna, tangida
pela idade, ora preferia abancar-se na outra sala, mais protegida dos clientes
-, quando revisavas a situação da conta, recolhias os volumes chegados de
encomendas anteriores, e desfiavas a lista de desejadas aquisições futuras.
Embora jamais tenha sabido de algum teu
antepassado italiano, a tua conversa com o Jorge – de resto, um profissional no
seu ofício, a quem a arguta D. Vanna destinara para os melhores fregueses – a pontuavas
com a consueta larga gesticulação. Por isso, espaço de compreensível prudência
costumava abrir-se à tua volta, o que te poupava da intrusa e incômoda cercania
de impacientes a esperarem a vez.
A hora e meia
restante para o encontro marcado no sebo da rua do Carmo poderia abranger
trajeto a estender-se até o décimo-sétimo andar do edifício Sisal na Presidente
Vargas. Antes de lá aparecer, todavia, tinhas muitos deveres a executar na tua
gincana cultural.
Saindo
da Leonardo da Vinci, tomavas a Rio Branco na direção da Praça Mauá. Na Sete de
Setembro, a descias até a Travessa do Ouvidor. No meio do caminho para a
Ouvidor, te esperava a Livraria da Travessa. Não era de muito que a incluíras
no roteiro. Se torcias o nariz para o bar nela instalado no seu recanto
posterior direito – em mais um modismo americano que imitávamos-, te agradava a
disposição dos temas, a profusão nas estantes, a frequência e a inefável,
promissora atmosfera de um risonho, próspero futuro que a envolvia. Sentias nos
atendentes essa mesma indefinível certeza, num local onde o profissionalismo
abraçava pluralidade de setores do conhecimento, sem descair para o
comercialismo barato de uma outra vizinha, em que os livros constituem mais uma
seção em vasto supermercado de papelaria e artigos de escritório.
Se bem que o ar impessoal das moças e rapazes –
e ainda por cima atrás de telas de computadores – não tivesse aquele sortilégio
do contato baseado na singularidade e no conhecimento do cliente, que deparavas
em tantos pontos da tua prazerosa via, as prontas respostas e as indicações
precisas te induziam a descontar aqueles vezos modernistas. Afinal, também começavam
a encomendar livros do estrangeiro, a par de disporem, em certos campos, de
leque bem mais avantajado de títulos. E não raro deixavas o conforto do ar
condicionado com ulterior peso na tua carga de sacolas.
Com o teu andar de quem está atrasado paraum
compromisso, seguias pela Travessa do Ouvidor, sem mesmo entrever a estátua do
Pixinguinha – não tinhas queda para o modernoso – até atingires à tua esquerda
a “Laranjada Americana”. Eis tradicional parada no teu périplo pela cidade.
Decerto, a placa na marquise já luzira com maior brilho. A velha lanchonete
participava do declínio do centro, que se mostrava no desgaste e nas faltas do
pavimento, na gente mal-ajambrada, e nos negócios empobrecidos. O olhar
distraído, o terno de provecta textura, de lapela estreita, e o incôngruo
colete que te valeria no cair da tarde serrano, colheste a ficha de plástico
para a laranjada média. Apesar da hora meridiana, havia espaço de sobra no
balcão. Nem precisava pedir: a cor da ficha era bastante para que o empregado
te colocasse defronte o cálice de metal com o cone de papel. As sacolas
descansando encostadas junto aos pés, engolias sequioso o antigo refresco, com
que te hidratavas até o almoço no Urich. Quantas vezes não fizeste essa escala
! Sozinho, entre estranhos, terás atentado para o desleixo e a falta de
varredura ? Creio que não. Para o teu paladar, a laranjada sabia tão bem quanto
a de outros carnavais, e os olhos esgazeados veriam quiçá o resplendor de
outrora, que é praxe associar à jovem e risonha esperança.
Em
menos de cinco minutos, adentravas a Ouvidor. Na desnivelada desordem dos
paralelepípedos, a chusma de camelôs e carrocinhas constrastava com a
elegância, em décadas não muito afastadas, refletida no comércio de qualidade e
na própria livraria José Olympio. Atravessar a hoje decaída rua, naquele curto
trecho que a separa da Rio Branco, seria desagradável faina, sobretudo para
quem na lembrança guardasse a memória do perdido encanto.
Por vezes,
cruzavas a avenida Rio Branco, atabalhoadamente e sem aguardar o sinal, se
arrefecera o movimento dos carros e conduções. Na confluência de Ouvidor e
Miguel Couto, tomavas esta última. Ladeado por esquálidas vitrinas e negócios
que, faltos de público, definhavam lentamente, avançavas com o teu andar quase
juvenil deixando para trás a rua do Rosario – antes visitada na Kosmos,
especializada em edições germânicas – e a Buenos Aires. Antes de atingir a rua
da Alfândega, em meio ao bulício da gente, e sempre na calçada à direita,
cumprias a tua seguinte escala, ingressando na livraria Padrão. Se o dono,
velho livreiro, lá estivesse, viria logo ao teu encontro. Do outro lado da
Miguel Couto, em anos mais auspiciosos, possuíra a Acadêmica. Agora, recorria a
familiares para conter os custos fixos, na ingrata luta contra as leis do
mercado. Aberta para um público que escasseava, dormiam nas suas estantes os
volumes de épocas transatas, quando a procura parecia justificar a importação
de obras estrangeiras.
Quase o
mesmo letargo se deparava nos balcões com as últimas edições locais. Não te
escapava que ao teu conhecido de tantos lustros sobrepairava a melancolia da
placida e inarrestável agonia de sua vocação. Estava ali, nada dizia, mas num
relance a vista de outrem rasgava o puído véu a recobrir os vãos propósitos.
Talvez por
te sentires partícipe no estiolar-se do mundo daquele livreiro, em arroubo de
que a razão te desvelaria a crua inutilidade, fazias questão de concentrar as
aquisições de livros nacionais na Padrão. Recordo-me, a respeito, da assertiva
de tal desígnio, por ti anunciado ao Rezende e a mim próprio. Confesso que, a
princípio, não acreditei em que considerasses as tuas isoladas e dessultórias
compras como verdadeira injeção de bastos recursos em uma empresa já condenada.
Por isso, te esquadrinhei o semblante, à cata de algum indício da conscientização
do baldado do nobre contributo. Perscrutei e nada desenterrei que não fosse a
rigidez da persona a confundir-se com
a
superficialidade da resolução, da qual não tinhas condição
de dissociar-te.
Àquela
altura, se tempo sobrasse – o que raramente ocorria – arriscavas uma entrada
mais além. Atravessavas, com alegre desconhecimento da cautela dos semáforos,
as quatro vias da Presidente Vargas, para guindar-te ao supracitado edifício
Sisal, no quarteirão entre a Rio Branca e a Uruguaiana. Gostavas de perlustrar
os livros empilhados nas duas ou três salas da editora Loyola. Mostravas que o
teu ceticismo não te afastava dos autores católicos, que ali formavam o grosso
da pauta livresca. Duas simpáticas senhoras, a mais jovem andando pelos cinquenta,
atendiam aos clientes que até lá galgavam. Tratavam não só a ti, mas também aos
teus companheiros, com a deferência reservada aos maiores, concedendo-nos
generosos descontos.
E, dessarte,
descendo no elevador apinhado, consultavas o relógio. Chegaras ao fim da linha,
em termos de escalas intermediárias, a precederem a hora marcada com os amigos
no sebo da rua do Carmo. Em esperta homenagem à tua irrequieta fome de livros,
seríamos cúmplices em ensejar-te a derradeira oportunidade de instrumentalização
para o eventual arremate de um que outro tomo, garimpado na sistemática
desordem das mesas e prateleiras do também claudicante estabelecimento.
Por aqueles anos, em que aguardava eu a mítica
designação de parte do capataz do Itamaraty, costumava ser o primeiro a chegar
ao soturno sebão, como o chamávamos.Os negócios de livros usados, se não
arrimados em grande livraria, têm em geral a vida breve. Muitos aparecem e
desaparecem com a fugacidade das flores campestres. Surpreendia-nos, portanto,
a resistência do velho e decrépito casarão da rua do Carmo. Além da longa e
sombria sala, com enferrujadas estantes a recobrirem as paredes, e duas
fileiras de mesas, que se estendiam até o caixa – havia um jirau, em que, por
disciplina, se expunham coleções (como nas prateleiras do rés-do-chão). Era
administrado por cooperativa de empregados, quase todos com mais de sessenta
anos, excetuado o Henrique um outro, que se punha ares de gerente.
Nesse
ambiente esquecido da movimentação lá fora, reinava certa sonolência. As luzes
mortiças, o baixo tom das vozes, os escassos fregueses, a pachorra da mor parte
dos atendentes, tudo participava como elemento daquela qualidade síntese.
Do meu avô
Romualdo herdei a preocupação com o horário, essa dúbia virtude tão pouco
carioca. Por isso, calculava mal o tempo e os compromissos na cidade que
poderia inserir antes do encontro aprazado. Em aparecendo cedo, cumprimentava o
Henrique e me dedicava a lento, arrastado, se possível minucioso, exame dos
volumes dispostos sobre as mesas. Havia as pilhas de seis a sete tomos, porém o
mais comum seria a colocação lateral, com a lombada para cima, que se
sustentava por uma série de outros livros, ali enfiados de modo a ensejar a
exposição do maior número possível. Nas pontas das mesas, coleções editadas em
diversos volumes, amarradas com barbante, serviam para evitar que o ajuntamento
desmoronasse pelas beiras.
Na incrível
disparidade do mostruário, seria preciso sobre-humana vontade e concentração,
para não se deixar vencer pela vetustez ou mediocridade das publicações, que se
sucediam em notável monotonia. Depois de uns vinte minutos de inútil
perscrutar, a atenção tendia a embotar-se, e a paciência, a desaparecer.
Por vezes o
Henrique – o nosso contato para eventuais aquisições e descontos – semelhava
condoer-se com a minha beneditina pesquisa, e me dizia:
“Doutor, olhe
naquela outra mesa. Ali tem umas novidades.”
E empurrado
pela dica, para lá passava, na vaga esperança de que “as novidades” encerrassem
algum achado. Porque o que faz perseverar o ‘garimpador’ do sebo é a inabalável
crença na lei da probabilidade matemática. O quociente pode ser baixo, mas em
todo o parco, difuso, tedioso, estranho e fora de moda amontoado de obras podia
existir o livro raro e esgotado que há tanto tempo procuras sem êxito.
Absorto na
tarefa, não me apercebia da aparição do Rezende. No seu passo manso, vestindo
bermudas, trazia uma canga sobre a camiseta branca. Atravessando a selva em que
se transformou o Rio de Janeiro, o seu traje inconspícuo seria precaução adrede
escolhida para eludir os perigos que rondam as pessoas de idade.
O jeito calmo
e bem-humorado, baixo de estatura, e fornido de carnes, sem ser propriamente
gordo, Rezende, se visto na tua companhia, quase nos forçava a ver na dupla uma
moderna versão brasileira dos célebres personagens de Cervantes.
Com mais de
oitenta anos, ainda não se aposentara da P.U.C. onde lecionava elementos de
filosofia. Advogado aposentado da Caixa Econômica e intelectual católico,
Rezende transpira plácida satisfação, em que a ínsita bondade conjugada com
pitada de suave malícia sabe viver com meios frugais e a não descrer, por
princípio, das boas intenções do próximo.
Estávamos,
assim, entretidos em dois dedos de prosa, eis senão quando irrompias, na tua
andadura ligeira, a claridade da rua a emoldurar-te o vulto, à distância
reconhecível pela moção corporal, posto que provisoriamente desprovido de
feições. Na murmurosa pasmaceira do ambiente, eras uma espécie de trêfega
epifania.
Apreciavas
deveras que ali estivéssemos a esperar-te, a formar a pequena corte que através
de tantos anos souberas imantar. Bradavas cumprimentos, e, em seguida,
traduzias no amplo e habitual gesto a espontânea e algo desengonçada saudação,
que se abateria com cordial veemência nas minhas costas, se o tempo não me
houvesse ensinado a maneira de aparar o amistoso golpe. Na verdade, ambos havíamos
internalizado, nas respectivas ação e reação, aquele meio abraço, em que a tua
despejada efusão convivia, sob o olhar divertido do Rezende, com a minha
precavida discrição.
Trocadas as
primeiras impressões, investias contra toda aquela pletora de livros que jazia
no sebão da rua do Carmo. Como a ave de rapina que, intenta, passeia sem afeto
as penetrantes vistas por aquela imensa planície, para sempre pronta a
individuar a inerme presa, a tua atenção flutuava sobre áridos terrenos. A
ativa contemplação poderia prolongar-se por incontáveis minutos, até que, de
repente, pinças uma brochura.E o exercício se repetia, a ponto de intervir
afinal, para recordar-te do escopo da nossa presença naquele armazem de livros.
Remanchavas
um pouco, e antes de render-se às injunções do horário, te dirigias aos fundos
da construção, onde existia pátio coberto, com à direita um tanque, caixas
empilhadas, e à esquerda, uma espécie de refeitório, onde os empregados
esquentavam as marmitas, e um W.C., no qual só me animava a entrar constrangido
pelas circunstâncias.
Da caminhada
para o restaurante Urich – e do almoço – já me terei ocupado em outra
correspondência. Resta, pois, acrescentar mais alguns traços ao que foi antes
dito acerca das estações finais do encontro da trinca.
Os horários
da partida do Terminal Menezes Cortes do ônibus para Petrópolis variaram desde
os tempos do bar Monteiro. Nos últimos anos, oscilaram entre três horas e três
e vinte da tarde, e dessas coordenadas dependia o teu grau de urgência.
Saídos do restaurante, fosse a travessia longa
(bar Monteiro) ou curtíssima (Urich), estabelecera-se a tradição de que nos
oferecias o cafezinho do bar Capital. Para mim, tal prática se explica pelo
fato de teres sido sempre o primeiro a adentrar no boteco, movido pela pressa
da iminente partida e, em especial, pelo teu passo estugado, já suficientemente
descrito. O café era o tradicional dos bares cariocas, sorvido de pé pelos
fregueses. Ao entrarmos no novo milênio, com a acelerada deterioração social,
nos parcos minutos junto ao balcão éramos assediados por pivetes e, mesmo,
pivetões que em breve perderiam o discutível privilégio de estarem na categoria
de menor. Não há conversa que resista
ao acosso incessante dessas camaleônicas hordas. Pedro, por sua vez, ou buscava
centavos na moedeira, ou procurava esquivar-se, com desculpas educadas.
Em seguida, com o viajante à frente,
contornávamos o prédio, para subir, de escada rolante, até o segundo andar, de
onde se ganha a plataforma em que estaciona o pullman. Nosso amigo, na mão o bilhete, andava de um lado para
outro, a fim de certificar-se de qual seria o ônibus. Apesar de partir sempre
do mesmo ponto – pelo menos assim pensava eu – as dúvidas quanto a possível e
desastroso equívoco o atormentavam. Se não obtivesse a desejada certeza dos
motoristas ou empregados – às vezes, o ônibus ainda não encostara – não
trepidava em furar a fila do guichê fronteiro, para colher a ansiada informação. E o fazia com a sólita desenvoltura, mal se
apercebendo da gesticulante fúria que a sua afobação provocara. Se estivesse
perto, Rezende cuidaria de apaziguar os ânimos, enquanto Pedro se apartava, o
olhar perplexo de quem não atina com o motivo de toda a confusão.
De hábito,
não aguardava o embarque para despedir-me de meu amigo. A princípio, pretextava
alguma desculpa. Empós, a minha saída antecipada passou a ser havida como mais
um rito a ser observado. Rezende, ao contrário, tratava aquela ocasião como se
Pedro estivesse por empreender longa e, quem sabe, perigosa viagem. Por isso,
se quedava até o arranque do ônibus.
Ao deixá-los,
a cena se repetia diante de minhas vistas. Mais alto, sorridente, o jeito
espigado, Pedro aguardava que o motorista abrisse a porta, para que galgasse os
degraus da entrada; Rezende, mais abaixo, compunha o quadro, os olhos postos no
colega universitário de outrora, enquanto lhe ouvia as palavras.
Meu caro Pedro,
terás notado
que nesta décima terceira carta tomo certas liberdades com o tratamento,
alternando, por vezes, a segunda com a terceira pessoa. Em algumas passagens, a
proximidade ou a direta participação, me induzem ao tu, que trago das minhas
origens sulinas. Em outras, prefiro a terceira, quando um certo distàcco[1]
se impõe pelo próprio contexto narrativo, em que a ênfase se desloca do
diálogo para a descrição. Nesses casos, por conseguinte, não se trata de
substituiçãao do tu pelo você (vocativo carioca por excelência),
mas sim da introdução do ele, mais
adequado às contingências da situação em causa.
Na verdade,
pensando melhor, não há mudanças no tratamento, enquanto diálogo. As variações,
na realidade, não são de pessoa, mas de enfoque, ao colocar-se a necessidade de
inserção de parênteses descritivos.
Pedro, meu colega, mestre e companheiro,
a tua morte prematura – mais de
quatro meses já transcorreram desde o catorze de maio – termina não só o ‘exercício do
almoço’, se assim poderíamos chamar toda essa liturgia que de bom grado
participamos por mais de duas décadas. Se teve diversas modalidades e
localizações, a tua presença sempre representou o elo indispensável, a condição
insubstituível, para o sentido de tal exercício. Outras personagens – e ainda
careço de mencioná-las – se associaram ao encontro. No entanto, essa irregular
e tão pouco sistemática reunião hoje se nos afigura qual traço indelével na
existência de três pessoas – Pedro, Rezende e Mauro. Os demais, são figurantes,
e nós que acreditávamos vivenciar algo episódico, sem nos darmos conta vivíamos
experiência tão duradoura quanto o podem ser os projetos desta vida.
Com a
partida de um amigo, mestre e interlocutor, não se morre um pouco e sim muito.
Ao expressar-te o que sinto, o principal inimigo a enfrentar não é a sorte
atroz, mas as insídias do lugar-comum a pôrem em dúvida o sentimento, a
esvaziarem a carga do pesar pela virtual impossibilidade de eludir esta
lamentável presença, que abastarda cada adjetivo, ridiculiza a densidade do
sofrimento, tudo parecendo engessar nas cediças fórmulas de um milenar
discurso.
Por isso, e
somente por agora, eu invoco o silêncio como testemunha. Valham-me também o
cintilar das estrelas do infinito, a luz alvar e delicada da lua sobre as
lápides de mármore branco, a visitar serena, seja o Père Lachaise, seja o Campo
da Esperança ou o cemitério de Valparaíso. Serão acaso frases sem sentido, como
a do mote do teu livro ? E se porventura forem, que importância terá ?
Mas não encerremos, por enquanto, essas
linhas. Vamos aferrar-nos à esperança de através da reexumação das experiências
passadas, sufocar a dor da perda, enquanto batalhamos por conservar-te ao nosso
lado, não fosse através da opaca e distorcida lente da frágil e volúvel memória
humana.
Com o
imperecível apreço do,
* *
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