quinta-feira, 20 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XIII)


 
                                                  X I I I

 

 

         Meu Amigo Pedro,

 

         se chegamos a esse número, tão prenhe de agourentos presságios, a ponto de os construtores de edifício nos Estados Unidos terem literalmente cortado o problema, eliminando o número treze na contagem dos andares – e dessa digressão é melhor fugir, não fosse por demonstrar-nos que a postura dos avestruzes não é tão abstrusa assim  como parece -, devo afirmar que durante tantos anos de dessultório convívio, jamais te pilhei em outro comportamento que não o do sereno desconhecer de todos os rituais a que os supersticiosos se prestam, seja dissimulada, seja abertamente. E não é dizer pouco se se tenha presente que o mau-olhado – e a turba de sinônimos flagrada pelos dicionários, nas várias gradações do temor primevo – se dá ao luxo de na língua de Dante apropriar-se não de um número, porém de dois, oferecendo assim aos cultores do sobrenatural, confessos ou não, a dúbia dádiva de poder escolher entre dois males.

        Feito o registro, inda que perfunctório, um pouco à maneira designada por Machado de Assis aos cumprimentos de ‘vista e de chapéu’, passemos à situação presente de Thérèse. É com satisfação que a vejo bastante desanuviada. A meu conselho, ela aplicou a soma recebida do seguro – que, infelizmente, por causa das hierarquizações burocráticas, encolheu  – em dois time deposits, de três meses cada, automaticamente renováveis. Como o Federal Reserve System, na luta contra a inflação, aumentou substancialmente a taxa de juros, o rendimento em dólares será apreciável. Agradou-me que Therezinha haja desistido do propósito de repatriar todo o montante, o que implicaria em perda ponderável, não só na transferência para cá – eis que o real continua muito apreciado em relação ao dólar americano – senão na própria inversão, com os pífios ganhos mensais das cadernetas de poupança.

         Não me atrevo a supor o que pensas de tal opção. No passado, decidiste encerrar a tua conta em New York, na agência do Banco do Brasil (ignoro se terias outras no estrangeiro), quando da aposentadoria. Neste momento, não tenho dúvidas que Thérèse bem fez em acatar o meu conselho. Aliás, tudo o que foi alcançado em termos de estabelecer-se condições existenciais estáveis para a tua esposa, devemos aos meus amigos e colegas no Itamaraty, à inestimável intermediação da web, e, last but not least,         

à ajuda generosa e ao bom senso do teu amigo in pectore, o Dr. Manoel Francisco Freitas Brito, sem o qual não atino como todo esse esforço seria factível.

        Cumpre não esquecer que a tua situação financeira não era invejável, se me permite o eufêmico lugar-comum. Se não é o caso de voltar a tão penoso estado de cousas, cabe a menção para sublinhar de quão bem-vinda foi a injeção de divisas na restabelecida conta da Thérèse. Representa preciosa vantagem, e por ser a única reserva que lhe resta, é mister que a tua companheira a administre com muito cuidado.

        Soube pelo Dr. Brito que ela deseja contratar um jardineiro doublé de motorista. Ficará, assim, o plantel da Visconde do Uruguai reduzido a duas pessoas. Partindo da premissa que Therezinha considera possível lá permanecer com a pensão do Itamaraty – que não rivaliza em munificência com as concedidas a viúvas de magistrados -, esta resolução implica em conservar o carro e despedir o Hermes (x). Essa ponte carece ainda de ser cruzada; das questões pendentes, pela sua urgência e delicadeza, é a que exige maiores precauções.

       No que tange à publicação do ‘Animal Político’, tarda a resposta do Rezende à minha última carta, e por isso desconheço do resultado da programada entrevista com o vice-reitor da P.U.C.  Tampouco disponho de informação acerca do eventual destino da tua biblioteca, ou melhor, se nesse campo se terá tomada alguma providência.

        Em recente entrevista, o Cláudio Lembo – antes obscuro vice-governador de São Paulo, ora guindado pelas ambições políticas do Geraldo Alckmin ao palácio dos Campos Elíseos – declara, a propósito de carta do Fernando Henrique a respeito do PSDB, a morte da epístola diante da generalizada utilização do e-mail. Parodiando Mark Twain, há evidente exagero na assertiva. Além disso, não creio que se refira o Sr. Lembo, pois o conceitual não será decerto o seu forte, à carta como gênero literário. Ele a pensa, ao invés, como simples instrumento de comunicação.

        Se não sou suspeito de simpatias pelo ex-presidente, em sendo amigo de verdade, tampouco o acoimarei de falto de cultura. Assim, sem querer agradar-te, parece-me forçoso reconhecer que o e-mail, por mais útil e pronto que seja, não pode vestir-se da  gravitas, que atendido o estilo e a substância, bem assentaria na velha carta. 

       A esse ponto, não hás de criticar-me por mais uma repentina virada. É tempo de fugir das tricas e futricas da medíocre política local, e revisitarmos antigas experiências nos caminhos batidos de passadas memórias, enquanto vívidas as tenhamos na amarelecida tela de nossa mente.

       Gostaria, se possível fora, de reconstituir a tua breve passagem pelo Rio. A fim de tornar menos ambíguo o propósito, tomemos, por exemplo, uma das tuas incursões em torno do advento do novo milênio. Bem sei que a busca da precisão é matéria ingrata, e com resultados nem sempre conformes à expectativa. Para tanto, basta pinçar a palavra ‘milênio’: se ao comum dos mortais o ano 2000 assinala o evento, já para os puristas (ou idiotas da objetividade, como se atrevia a chamá-los Nelson Rodrigues) o século XXI só principia em 2001.

        De qualquer modo, como as previsões xiliásticas costumam ser rotineiramente ignoradas com cronológica indiferença, e as remembranças sóem padecer das inevitáveis brumas, refrações e mesmo trevas da fútil, frágil e, por vezes, febril memória humana, sigamos adiante com a citada fórmula.

        Havia um ritual na programação do almoço. Assumias o encargo de propor a data, em geral através de lacônicos telefonemas, para mim e o Rezende. Se estivéssemos de acordo, ías à rodoviária comprar os bilhetes de ida e volta, não sem antes consultar, em sendo de tal seção um dos mais atentos leitores, a previsão do tempo publicada pelo jornal O Globo.

       Confirmado o bom tempo – condição sine qua non para a viagem, o que não impedia carregasses em uma das sacolas o indefectível guarda-chuva -, em outra ainda mais breve chamada ratificavas o teu desígnio. Dada a caprichosa meteorologia do Rio de Janeiro, combinavas comigo, se grave te parecesse a ameaça de intempérie, que me telefonarias lá pelas oito e meia da manhã seguinte, ou para cancelar, ou para inquirir da situação atmosférica carioca.

       Ah, como me recordo deste telefonema, que soou às oito e quinze:

       “ Mauro ?! Como é que estão aí as coisas ?”

       “ Pedro, o céu está nublado, mas a essa hora...”

       “ Então Você acha que não vai dar ?”

       “ Pedro, me dá um minuto que vou ver lá fora como está o tempo...”

       Em rápidas passadas, alcanço o terraço. Vejo o céu nublado a oeste, encobrindo o Corcovado; e esgarçado a leste, entremostrando pálido azul.

       “ Olha Pedro, se de um lado está coberto, de outro parece que se vai abrir...”

       “ E então ? Acha que dá ?”

       A tua voz cobrava uma diretiva, e não descrições.

       Após instante de indecisão, resolvi arriscar a minha impressão.

        “ O meu palpite, Pedro, é que não vai chover.”

        “ Muito bem !”

        Senti o teu alívio. E com a resolução de quem se descobre afobado para pegar o ônibus, completaste:

        “ Então, até logo mais, meu velho !”

         Num átimo, se o interlocutor desaparecera, com os olhos da mente te acompanhei, o passo estugado, a precipitar-se na direção da porta e do carro, enquanto, com largo gesto, mandavas o Waldir ligar o motor.

        Por sorte, não errei no prognóstico.

         Sentado na poltrona da frente, contemplavas a estrada tantas vezes percorrida. Lá pelas dez e trinta descias do pullman, e arremetias, com a pressa costumeira, para a Rio Branco. À volta, as calçadas de pedra portuguesa marcadas pelos buracos da incúria municipal, os canteiros transformados em manchas verdes de capim, mendigos e camelôs espalhados pela praça, pivetes à espreita, e a multidão de anônimos que invade o centro nos chamados dias úteis.

        Sem deter-te, caminhavas para o antigo sítio do Hotel Central, de onde se viam passar as escolas de samba e os carros dos Fenianos e dos Tenentes do Diabo. O vetusto casarão, de cor ocre, fora substituído pelo gigantesco edifício Central. Ali entravas, para a primeira visita livresca. Havia na segunda sobreloja uma livraria, que já mostrava sinais do próximo fechamento, sangrada pelo alto custo do aluguer e o baixo interesse do público. Ali, não te demoravas muito. Conversavas com o dono, perguntavas das novidades, e passavas olhar ligeiro e conhecedor sobre as expostas lombadas, sempre à cata dos títulos e gêneros diversos. Às vezes, encontravas algo, e as sacolas principiavam a receber a carga daquele especial mantimento que há muito norteava as tuas vindas à cidade, desde os tempos do tardo fastígio da confeitaria Colombo, da Ouvidor, da Gonçalves Dias, do Largo e da rua da Carioca, da Praça Tiradentes e da avenida Passos, hoje tristonhos, encardidos, encanecidos, obscuros avatares de um pequeno mundo para sempre perdido.

        Às vezes o teu espaço livresco se encolhia, diante dos mandados de Thérèse. Eram buscas difíceis, que incluíam globos de vidro para a iluminação do jardim. Para carregar, um verdadeiro estorvo, menos pelo pesoi, do que pelo formato desmesurado. E havia sempre o perigo de que tivesses de refazer o caminho, para substituir o precioso objeto,  quebrado por um brusco movimento, em algum desastrado instante da tua jornada.

       Os pedidos da esposa, no entanto, eram esporádicos, e assim podias manter em geral o que chamaria tuas escalas. Na rota da Leonardo da Vinci, onde concentravas boa parte das encomendas, creio que no próprio Edifício Central, ou redondezas, a pausa do cafezinho, sorvido com gosto, talvez reminiscência dos teus longínquos dias de fumante. Cousa de um minuto ou dois, mas contigo pressa e prazer amiúde andavam juntos.

       De lá, para o edifício Marquês do Herval era um pulo. O obstáculo, a avenida Rio Branco, e a espera pela abertura do semáforo de pedestres. O passar dos anos, se não te privara da lepidez, tampouco te tornara mais prudente. Muita vez, ou nesta movimentada artéria, ou na Presidente Vargas, te vi empreender, com o sinal fechado, arriscadas travessias, de que me recusara participar.

      O acesso a Leonardo da Vinci se faz por larga passarela, que desce em espiral. Assim, abaixo do nível da rua, mas sem realmente configurar um subsolo, chegas a espaço relativamente amplo, com os elevadores à direita, e à esquerda, um par de lojas inconspícuas. A livraria que se alargou com as décadas – aí instalou-se nos anos cinquenta, logo após concluída a obra – hoje ocupa duas salas à esquerda, e duas à direita, incluindo modesto sebo.

        O negócio de D. Vanna enfrentou até um incêndio bastante suspeito, nos dias de chumbo da ditadura militar. De uns anos para cá, não parece tão florescente, por força da natural usura das gerações, e do encarecimento do livro estrangeiro, devido, a meu ver, menos à valorização do dólar e das principais moedas europeias, do que aos custos operacionais e ao ônus de manter larga oferta de baixa liquidez.

       Em consequência, já ao adentrar a primeira sala, reservada à filosofia, história e outros livros de maior preço como os da Pléiade, notavas que as mesas de exposição não semelhavam tão cheias de edições recentes, nem abundavam em livros como antigamente. Dir-se-ía que a providente dona apertara o conduto das aquisições espontâneas, preferindo, as mais das vezes, importar volumes sob ordem específica dos clientes. É lógico que não poderia cingir-se a tal procedimento – o que equivaleria a transformar-se em espécie de reembolso postal – mas aos fregueses tradicionais bastaria um relance para sentir a crise na escassez dos títulos, na mal disfarçada pobreza de novidades, e no menor afluxo de público.

       Gostavas de enveredar pela sala contígua, com suas mostras de bioética, de antropologia, sociologia e compêndios científicos e de referência. Ali haveria ainda menos gente. Não é que o rato de livraria ame o burburinho das alas apinhadas. Sem embargo, a arte de perlustrar as capas e contracapas, de que eras mestre, se revigora na companhia atenta e interessada, porém jamais bulhenta e estouvada, de outros garimpeiros da palavra impressa.

       Passava em revista os livros como o oficial de dia inspeciona a tropa.  Compenetrado, o teu olhar deslizava devagar ao longo das brochuras e tomos encadernados, absorto a ponto de não dar tento a quaisquer diversões. Repontasse algo diferente, capaz de deter-te o movimento, a fronte se curvava e as vistas se fixavam, tal ourives a examinar as arestas de pedra preciosa. E dessarte seguias, sem cuidar das pessoas ao redor, mas tão somente à cata, dentre as ordenadas fileiras de livros, de algum que te compelisse a retirá-lo da estante e vistoriá-lo, dele folheando as páginas, cruzando-o por vezes com a destreza do malabarista, a verificar-lhe as notas de rodapé, a bibliografia e o índice geral, a intuir-lhe peso e alcance. Com um seco meneio, muitas dessas revistas cessavam. Se, entretanto, à vistoria perfunctória sucedia a intenta leitura de um trecho, fosse colhido a esmo ou não, crescia a possibilidade de que o pusesses de lado, para ulterior exame. E, de longe, para um caixeiro ocupado com outro cliente, dirias, com o timbre alteado, quase agudo, de quem carece de bradar, para ser escutado:

       “O senhor poderia juntar este livro àqueles outros que já separei ?”

        E sem esperar pela resposta, te acercavas do confuso empregado, e qual em golpe de esgrima, enfiavas nas atônitas mãos mais um candidato para as ávidas sacolas.

        Tarimbado frequentador da Leonardo da Vinci, dela conhecias todos os meandros.

Na sala principal, à esquerda de quem entra, lá mais para o fundo, mas não muito próximo da mesa onde sentava naquele tempo o Jorge – virtual substituto de D. Vanna se ela tal figura admitisse – se encostara discretamente um tosco banquinho. Sobre bandeja de metal, duas garrafas, uma térmica com café, e a outra, com invólucro de palha entrelaçada. Não é que, em circulando por ali, distraídamente te pilhei servindo-te de cálice de conhaque de procedência indefinida ?  E o fazias com o mesmo ar circunspecto de quem cumpre mais um rito dentro da minudente, bizantina liturgia das tuas jornadas cariocas.

       Aquela escala, dada a sua relevância, alcançava, por vezes, o meio-dia. Em geral, o fim da visita se anunciava, ao sentares à frente do Jorge – D. Vanna, tangida pela idade, ora preferia abancar-se na outra sala, mais protegida dos clientes -, quando revisavas a situação da conta, recolhias os volumes chegados de encomendas anteriores, e desfiavas a lista de desejadas aquisições futuras.

         Embora jamais tenha sabido de algum teu antepassado italiano, a tua conversa com o Jorge – de resto, um profissional no seu ofício, a quem a arguta D. Vanna destinara para os melhores fregueses – a pontuavas com a consueta larga gesticulação. Por isso, espaço de compreensível prudência costumava abrir-se à tua volta, o que te poupava da intrusa e incômoda cercania de impacientes a esperarem a vez.    

        A hora e meia restante para o encontro marcado no sebo da rua do Carmo poderia abranger trajeto a estender-se até o décimo-sétimo andar do edifício Sisal na Presidente Vargas. Antes de lá aparecer, todavia, tinhas muitos deveres a executar na tua gincana cultural.

        Saindo da Leonardo da Vinci, tomavas a Rio Branco na direção da Praça Mauá. Na Sete de Setembro, a descias até a Travessa do Ouvidor. No meio do caminho para a Ouvidor, te esperava a Livraria da Travessa. Não era de muito que a incluíras no roteiro. Se torcias o nariz para o bar nela instalado no seu recanto posterior direito – em mais um modismo americano que imitávamos-, te agradava a disposição dos temas, a profusão nas estantes, a frequência e a inefável, promissora atmosfera de um risonho, próspero futuro que a envolvia. Sentias nos atendentes essa mesma indefinível certeza, num local onde o profissionalismo abraçava pluralidade de setores do conhecimento, sem descair para o comercialismo barato de uma outra vizinha, em que os livros constituem mais uma seção em vasto supermercado de papelaria e artigos de escritório.

        Se bem que o ar impessoal das moças e rapazes – e ainda por cima atrás de telas de computadores – não tivesse aquele sortilégio do contato baseado na singularidade e no conhecimento do cliente, que deparavas em tantos pontos da tua prazerosa via, as prontas respostas e as indicações precisas te induziam a descontar aqueles vezos modernistas. Afinal, também começavam a encomendar livros do estrangeiro, a par de disporem, em certos campos, de leque bem mais avantajado de títulos. E não raro deixavas o conforto do ar condicionado com ulterior peso na tua carga de sacolas.

        Com o teu andar de quem está atrasado paraum compromisso, seguias pela Travessa do Ouvidor, sem mesmo entrever a estátua do Pixinguinha – não tinhas queda para o modernoso – até atingires à tua esquerda a “Laranjada Americana”. Eis tradicional parada no teu périplo pela cidade. Decerto, a placa na marquise já luzira com maior brilho. A velha lanchonete participava do declínio do centro, que se mostrava no desgaste e nas faltas do pavimento, na gente mal-ajambrada, e nos negócios empobrecidos. O olhar distraído, o terno de provecta textura, de lapela estreita, e o incôngruo colete que te valeria no cair da tarde serrano, colheste a ficha de plástico para a laranjada média. Apesar da hora meridiana, havia espaço de sobra no balcão. Nem precisava pedir: a cor da ficha era bastante para que o empregado te colocasse defronte o cálice de metal com o cone de papel. As sacolas descansando encostadas junto aos pés, engolias sequioso o antigo refresco, com que te hidratavas até o almoço no Urich. Quantas vezes não fizeste essa escala ! Sozinho, entre estranhos, terás atentado para o desleixo e a falta de varredura ? Creio que não. Para o teu paladar, a laranjada sabia tão bem quanto a de outros carnavais, e os olhos esgazeados veriam quiçá o resplendor de outrora, que é praxe associar à jovem e risonha esperança.

        Em menos de cinco minutos, adentravas a Ouvidor. Na desnivelada desordem dos paralelepípedos, a chusma de camelôs e carrocinhas constrastava com a elegância, em décadas não muito afastadas, refletida no comércio de qualidade e na própria livraria José Olympio. Atravessar a hoje decaída rua, naquele curto trecho que a separa da Rio Branco, seria desagradável faina, sobretudo para quem na lembrança guardasse a memória do perdido encanto.

       Por vezes, cruzavas a avenida Rio Branco, atabalhoadamente e sem aguardar o sinal, se arrefecera o movimento dos carros e conduções. Na confluência de Ouvidor e Miguel Couto, tomavas esta última. Ladeado por esquálidas vitrinas e negócios que, faltos de público, definhavam lentamente, avançavas com o teu andar quase juvenil deixando para trás a rua do Rosario – antes visitada na Kosmos, especializada em edições germânicas – e a Buenos Aires. Antes de atingir a rua da Alfândega, em meio ao bulício da gente, e sempre na calçada à direita, cumprias a tua seguinte escala, ingressando na livraria Padrão. Se o dono, velho livreiro, lá estivesse, viria logo ao teu encontro. Do outro lado da Miguel Couto, em anos mais auspiciosos, possuíra a Acadêmica. Agora, recorria a familiares para conter os custos fixos, na ingrata luta contra as leis do mercado. Aberta para um público que escasseava, dormiam nas suas estantes os volumes de épocas transatas, quando a procura parecia justificar a importação de obras estrangeiras.

        Quase o mesmo letargo se deparava nos balcões com as últimas edições locais. Não te escapava que ao teu conhecido de tantos lustros sobrepairava a melancolia da placida e inarrestável agonia de sua vocação. Estava ali, nada dizia, mas num relance a vista de outrem rasgava o puído véu a recobrir os vãos propósitos.

        Talvez por te sentires partícipe no estiolar-se do mundo daquele livreiro, em arroubo de que a razão te desvelaria a crua inutilidade, fazias questão de concentrar as aquisições de livros nacionais na Padrão. Recordo-me, a respeito, da assertiva de tal desígnio, por ti anunciado ao Rezende e a mim próprio. Confesso que, a princípio, não acreditei em que considerasses as tuas isoladas e dessultórias compras como verdadeira injeção de bastos recursos em uma empresa já condenada. Por isso, te esquadrinhei o semblante, à cata de algum indício da conscientização do baldado do nobre contributo. Perscrutei e nada desenterrei que não fosse a rigidez da persona a confundir-se com a  
superficialidade da resolução, da qual não tinhas condição de dissociar-te.

        Àquela altura, se tempo sobrasse – o que raramente ocorria – arriscavas uma entrada mais além. Atravessavas, com alegre desconhecimento da cautela dos semáforos, as quatro vias da Presidente Vargas, para guindar-te ao supracitado edifício Sisal, no quarteirão entre a Rio Branca e a Uruguaiana. Gostavas de perlustrar os livros empilhados nas duas ou três salas da editora Loyola. Mostravas que o teu ceticismo não te afastava dos autores católicos, que ali formavam o grosso da pauta livresca. Duas simpáticas senhoras, a mais jovem andando pelos cinquenta, atendiam aos clientes que até lá galgavam. Tratavam não só a ti, mas também aos teus companheiros, com a deferência reservada aos maiores, concedendo-nos generosos descontos.

        E, dessarte, descendo no elevador apinhado, consultavas o relógio. Chegaras ao fim da linha, em termos de escalas intermediárias, a precederem a hora marcada com os amigos no sebo da rua do Carmo. Em esperta homenagem à tua irrequieta fome de livros, seríamos cúmplices em ensejar-te a derradeira oportunidade de instrumentalização para o eventual arremate de um que outro tomo, garimpado na sistemática desordem das mesas e prateleiras do também claudicante estabelecimento.

        Por aqueles anos, em que aguardava eu a mítica designação de parte do capataz do Itamaraty, costumava ser o primeiro a chegar ao soturno sebão, como o chamávamos.Os negócios de livros usados, se não arrimados em grande livraria, têm em geral a vida breve. Muitos aparecem e desaparecem com a fugacidade das flores campestres. Surpreendia-nos, portanto, a resistência do velho e decrépito casarão da rua do Carmo. Além da longa e sombria sala, com enferrujadas estantes a recobrirem as paredes, e duas fileiras de mesas, que se estendiam até o caixa – havia um jirau, em que, por disciplina, se expunham coleções (como nas prateleiras do rés-do-chão). Era administrado por cooperativa de empregados, quase todos com mais de sessenta anos, excetuado o Henrique um outro, que se punha ares de gerente.

       Nesse ambiente esquecido da movimentação lá fora, reinava certa sonolência. As luzes mortiças, o baixo tom das vozes, os escassos fregueses, a pachorra da mor parte dos atendentes, tudo participava como elemento daquela qualidade síntese.

      Do meu avô Romualdo herdei a preocupação com o horário, essa dúbia virtude tão pouco carioca. Por isso, calculava mal o tempo e os compromissos na cidade que poderia inserir antes do encontro aprazado. Em aparecendo cedo, cumprimentava o Henrique e me dedicava a lento, arrastado, se possível minucioso, exame dos volumes dispostos sobre as mesas. Havia as pilhas de seis a sete tomos, porém o mais comum seria a colocação lateral, com a lombada para cima, que se sustentava por uma série de outros livros, ali enfiados de modo a ensejar a exposição do maior número possível. Nas pontas das mesas, coleções editadas em diversos volumes, amarradas com barbante, serviam para evitar que o ajuntamento desmoronasse pelas beiras.

      Na incrível disparidade do mostruário, seria preciso sobre-humana vontade e concentração, para não se deixar vencer pela vetustez ou mediocridade das publicações, que se sucediam em notável monotonia. Depois de uns vinte minutos de inútil perscrutar, a atenção tendia a embotar-se, e a paciência, a desaparecer.

      Por vezes o Henrique – o nosso contato para eventuais aquisições e descontos – semelhava condoer-se com a minha beneditina pesquisa, e me dizia:

      “Doutor, olhe naquela outra mesa. Ali tem umas novidades.”

      E empurrado pela dica, para lá passava, na vaga esperança de que “as novidades” encerrassem algum achado. Porque o que faz perseverar o ‘garimpador’ do sebo é a inabalável crença na lei da probabilidade matemática. O quociente pode ser baixo, mas em todo o parco, difuso, tedioso, estranho e fora de moda amontoado de obras podia existir o livro raro e esgotado que há tanto tempo procuras sem êxito.

      Absorto na tarefa, não me apercebia da aparição do Rezende. No seu passo manso, vestindo bermudas, trazia uma canga sobre a camiseta branca. Atravessando a selva em que se transformou o Rio de Janeiro, o seu traje inconspícuo seria precaução adrede escolhida para eludir os perigos que rondam as pessoas de idade.

      O jeito calmo e bem-humorado, baixo de estatura, e fornido de carnes, sem ser propriamente gordo, Rezende, se visto na tua companhia, quase nos forçava a ver na dupla uma moderna versão brasileira dos célebres personagens de Cervantes.

       Com mais de oitenta anos, ainda não se aposentara da P.U.C. onde lecionava elementos de filosofia. Advogado aposentado da Caixa Econômica e intelectual católico, Rezende transpira plácida satisfação, em que a ínsita bondade conjugada com pitada de suave malícia sabe viver com meios frugais e a não descrer, por princípio, das boas intenções do próximo.

       Estávamos, assim, entretidos em dois dedos de prosa, eis senão quando irrompias, na tua andadura ligeira, a claridade da rua a emoldurar-te o vulto, à distância reconhecível pela moção corporal, posto que provisoriamente desprovido de feições. Na murmurosa pasmaceira do ambiente, eras uma espécie de trêfega epifania.

      Apreciavas deveras que ali estivéssemos a esperar-te, a formar a pequena corte que através de tantos anos souberas imantar. Bradavas cumprimentos, e, em seguida, traduzias no amplo e habitual gesto a espontânea e algo desengonçada saudação, que se abateria com cordial veemência nas minhas costas, se o tempo não me houvesse ensinado a maneira de aparar o amistoso golpe. Na verdade, ambos havíamos internalizado, nas respectivas ação e reação, aquele meio abraço, em que a tua despejada efusão convivia, sob o olhar divertido do Rezende, com a minha precavida discrição.

      Trocadas as primeiras impressões, investias contra toda aquela pletora de livros que jazia no sebão da rua do Carmo. Como a ave de rapina que, intenta, passeia sem afeto as penetrantes vistas por aquela imensa planície, para sempre pronta a individuar a inerme presa, a tua atenção flutuava sobre áridos terrenos. A ativa contemplação poderia prolongar-se por incontáveis minutos, até que, de repente, pinças uma brochura.E o exercício se repetia, a ponto de intervir afinal, para recordar-te do escopo da nossa presença naquele armazem de livros.  

        Remanchavas um pouco, e antes de render-se às injunções do horário, te dirigias aos fundos da construção, onde existia pátio coberto, com à direita um tanque, caixas empilhadas, e à esquerda, uma espécie de refeitório, onde os empregados esquentavam as marmitas, e um W.C., no qual só me animava a entrar constrangido pelas circunstâncias.

       Da caminhada para o restaurante Urich – e do almoço – já me terei ocupado em outra correspondência. Resta, pois, acrescentar mais alguns traços ao que foi antes dito acerca das estações finais do encontro da trinca.

       Os horários da partida do Terminal Menezes Cortes do ônibus para Petrópolis variaram desde os tempos do bar Monteiro. Nos últimos anos, oscilaram entre três horas e três e vinte da tarde, e dessas coordenadas dependia o teu grau de urgência.

        Saídos do restaurante, fosse a travessia longa (bar Monteiro) ou curtíssima (Urich), estabelecera-se a tradição de que nos oferecias o cafezinho do bar Capital. Para mim, tal prática se explica pelo fato de teres sido sempre o primeiro a adentrar no boteco, movido pela pressa da iminente partida e, em especial, pelo teu passo estugado, já suficientemente descrito. O café era o tradicional dos bares cariocas, sorvido de pé pelos fregueses. Ao entrarmos no novo milênio, com a acelerada deterioração social, nos parcos minutos junto ao balcão éramos assediados por pivetes e, mesmo, pivetões que em breve perderiam o discutível privilégio de estarem na categoria de menor. Não há conversa que resista ao acosso incessante dessas camaleônicas hordas. Pedro, por sua vez, ou buscava centavos na moedeira, ou procurava esquivar-se, com desculpas educadas.

        Em seguida, com o viajante à frente, contornávamos o prédio, para subir, de escada rolante, até o segundo andar, de onde se ganha a plataforma em que estaciona o pullman. Nosso amigo, na mão o bilhete, andava de um lado para outro, a fim de certificar-se de qual seria o ônibus. Apesar de partir sempre do mesmo ponto – pelo menos assim pensava eu – as dúvidas quanto a possível e desastroso equívoco o atormentavam. Se não obtivesse a desejada certeza dos motoristas ou empregados – às vezes, o ônibus ainda não encostara – não trepidava em furar a fila do guichê fronteiro, para colher a ansiada informação.  E o fazia com a sólita desenvoltura, mal se apercebendo da gesticulante fúria que a sua afobação provocara. Se estivesse perto, Rezende cuidaria de apaziguar os ânimos, enquanto Pedro se apartava, o olhar perplexo de quem não atina com o motivo de toda a confusão.

       De hábito, não aguardava o embarque para despedir-me de meu amigo. A princípio, pretextava alguma desculpa. Empós, a minha saída antecipada passou a ser havida como mais um rito a ser observado. Rezende, ao contrário, tratava aquela ocasião como se Pedro estivesse por empreender longa e, quem sabe, perigosa viagem. Por isso, se quedava até o arranque do ônibus.

      Ao deixá-los, a cena se repetia diante de minhas vistas. Mais alto, sorridente, o jeito espigado, Pedro aguardava que o motorista abrisse a porta, para que galgasse os degraus da entrada; Rezende, mais abaixo, compunha o quadro, os olhos postos no colega universitário de outrora, enquanto lhe ouvia as palavras.

     Meu caro Pedro,

     terás notado que nesta décima terceira carta tomo certas liberdades com o tratamento, alternando, por vezes, a segunda com a terceira pessoa. Em algumas passagens, a proximidade ou a direta participação, me induzem ao tu, que trago das minhas origens sulinas. Em outras, prefiro a terceira, quando um certo distàcco[1] se impõe pelo próprio contexto narrativo, em que a ênfase se desloca do diálogo para a descrição. Nesses casos, por conseguinte, não se trata de substituiçãao do tu pelo você (vocativo carioca por excelência), mas sim da introdução do ele, mais adequado às contingências da situação em causa.

        Na verdade, pensando melhor, não há mudanças no tratamento, enquanto diálogo. As variações, na realidade, não são de pessoa, mas de enfoque, ao colocar-se a necessidade de inserção de parênteses descritivos.

 

       Pedro, meu colega, mestre e companheiro,

 

       a tua morte prematura – mais de quatro meses já transcorreram desde o catorze de  maio – termina não só o ‘exercício do almoço’, se assim poderíamos chamar toda essa liturgia que de bom grado participamos por mais de duas décadas. Se teve diversas modalidades e localizações, a tua presença sempre representou o elo indispensável, a condição insubstituível, para o sentido de tal exercício. Outras personagens – e ainda careço de mencioná-las – se associaram ao encontro. No entanto, essa irregular e tão pouco sistemática reunião hoje se nos afigura qual traço indelével na existência de três pessoas – Pedro, Rezende e Mauro. Os demais, são figurantes, e nós que acreditávamos vivenciar algo episódico, sem nos darmos conta vivíamos experiência tão duradoura quanto o podem ser os projetos desta vida.

      Com a partida de um amigo, mestre e interlocutor, não se morre um pouco e sim muito. Ao expressar-te o que sinto, o principal inimigo a enfrentar não é a sorte atroz, mas as insídias do lugar-comum a pôrem em dúvida o sentimento, a esvaziarem a carga do pesar pela virtual impossibilidade de eludir esta lamentável presença, que abastarda cada adjetivo, ridiculiza a densidade do sofrimento, tudo parecendo engessar nas cediças fórmulas de um milenar discurso.

     Por isso, e somente por agora, eu invoco o silêncio como testemunha. Valham-me também o cintilar das estrelas do infinito, a luz alvar e delicada da lua sobre as lápides de mármore branco, a visitar serena, seja o Père Lachaise, seja o Campo da Esperança ou o cemitério de Valparaíso. Serão acaso frases sem sentido, como a do mote do teu livro ? E se porventura forem, que importância terá ?

     Mas não encerremos, por enquanto, essas linhas. Vamos aferrar-nos à esperança de através da reexumação das experiências passadas, sufocar a dor da perda, enquanto batalhamos por conservar-te ao nosso lado, não fosse através da opaca e distorcida lente da frágil e volúvel memória humana.

    Com o imperecível apreço do,

 
(.
                                                  *          *




[1] afastamento (italiano)
                                                     
 (x) pseudônimo
 
 
 
 

Nenhum comentário: