Meu sempre estimado
Mestre Pedro,
beiramos a passagem
do terceiro mês da tua, para nós, tão súbita saída de cena.
Quando atendi o telefonema do
Rezende e ouvi de sua voz arrastada e queixosa o prenúncio da morte do amigo
comum embutido na expressão “triste notícia”, duas forças se chocaram na mente
ansiosa, a um tempo transida de amarga e irracional certeza e aguilhoada pela
humana revolta contra o absurdo. Dir-se-ía que fora eu um crítico teatral que
assiste atônito aos caprichos de novel diretor, movido pela ânsia da
contestação barata, a desrespeitar o ritmo de uma peça, de que pensávamos saber
de cor o texto e a evolução, e que, de repente, afasta contra qualquer
expectativa o personagem de quem prelibávamos a esperada e decisiva intervenção
para a solução de mistério destramente guardado até o último ato. Mais do que
perda, a abrupta retirada do palco do protagonista nos turba pela interrupção
sem sentido, a recusar-nos com sádico engenho ou estúpida inépcia a tão
conhecida mas sempre renovada participação na libertadora catarse de um enredo
que, malgrado tantas vezes repetido, sabe guardar o viço de domesticada
surpresa.
Não te inquietes, todavia, diante deste
aparente desalinho em nossa correspondência. A introdução semelha apegar-se ao
presente, se bem que sob aspecto estritamente pessoal. Trato de inteirar-te da
situação de Therezinha, precipitada pelo extemporâneo do passamento, um pouco
talvez conforme a tua maneira de ser, no passo estugado com que te lançavas
para tomar assento no pullman como se
fosse saltar para os degraus da entrada do ônibus, à maneira de antanho nos
bondes da Light, a velocidade
reduzida pelo solícito motorneiro, e os passageiros pulando para os amplos
estribos da viagem de volta à casa.
E
se esse cuidado persiste, tão presente será igualmente o surdo, desentranhável
protesto contra os descaminhos do destino, e mais, a raiva vestida de luto que
carrega a impotência defronte da morte antecipada, quase tão sem sentido quanto
a frase aristotélica, a cujo estudo e análise dedicaste cerca de quinze anos da
tua existência. Resulta difícil entendê-la à medida que, com a pachorra dos
antigos inspetores de polícia, se procura costurar retalhos à primeira vista
incongruentes, tal imagem dadaísta, comparar depoimentos amiúde contraditórios,
pensar, refletir, meditar, debaixo da negra sombra de um desenlace inamovível,
no baldado intento não de conceber ou enxertar aqui e ali alguma inferência ou dedução,
mas, em fim de contas, não tanto compreender mas na verdade aceitar o que, meu
pressuroso e voluntarioso amigo, tu tornaste sem remédio.
Por isso, esta carta, na realidade, não
difere muito das anteriores. O presente, esse conceito elusivo e inaferrável,
que, como no paradoxo de Zenão, se subdivide em infinitesimais parcelas, e
dessarte demonstra a sua lógica inexistência, apontando para um futuro para
sempre condenado a ser futuro e, por conseguinte, inatingível e imprevisível,
ora este maldito presente nos confronta, a se atravessar e, de certa forma,
desestruturar as nossas vidas. Dirás que o Estagirita soube superar a aporia
eleática e que, ipso facto, o argumento
não é válido. Replicarei que, como o degrau de uma escada, o problema, supostamente
ou não, resolvido, permanece e, a
fortiori, se afigura ironicamente indispensável para os seus sucessores.
De modo idêntico, a tua morte clama por
uma explicação. Neste caso, porém, não há prestidigitação possível que logre
revertê-la, seja por um mágico passe, seja pela sua implacável desconstrução,
como se a laboriosa, percuciente realização do desarrazoado constituísse uma
espécie de deus ex machina, que
viria, para gáudio dos teus amigos, em triunfal socorro do desastrado diretor.
Baldado será, assim, o esforço do
investigador. Neste fait divers não
há, convenhamos, suspeitos. Demonstrada está a autoria, e é o bastante para
realimentar-nos a negação de interpretação que conduza não ao registro fático e
notarial, e sim ao resignado acatamento de uma, digamos, consequência biológica
natural. Aqui se fala de prazos e de nada mais. Sabemos o nosso destino,
conquanto discordemos sobre o post mortem.
Mais cogite, mais especule acerca do
ocorrido, mais me convenço de que não era chegada a tua vez e a tua hora. O
nosso Filósofo acreditava que o cérebro seria um órgão frio e que o pensamento,
a razão se situavam no coração. Perdoe-me o amigo pelo afeto da expressão, e no
entanto hoje a tua morte se me afigura um arremedo dessa estranha noção dos
tenteantes primórdios da ciência médica.
Agiste por impulso, de forma quase pueril, na
afirmação menos de um princípio do que de um vezo. Se o falecer faz parte do
nascer e viver, se o fim é uma decorrência do princípio, se a morte pode ser
vista como bruta e desapiedada, o homem aprendeu a conviver com a irracional e
sempiterna apreensão da sua vinda, primeiro por ignorá-la, mais tarde por
considerá-la contingência alheia, e ao fim, ao admitir-lhe a importuna e
inarredável companhia.
Não obstante o destino humano de carpir os
entes que entram na barca de Caronte, e a macabra medição do consequente
sofrimento, a aceitação, posto que penosa, será sempre menos dificultosa se
depara diante dela motivo suficientemente forte para nele arrimar-se.
Haverá
decerto repulsa orgânica, acompanhada de temor sub-reptício e egoístico, que
nos induza a não explicitar os fatores, como se encarássemos as Erínias à
feição de monstros em letargo. Deixemô-las dormir, por ser imprudente despertá-las,
eis que poderiam vir em nosso encalço.
Amigo
Pedro, por isso este longo intróito o encontrarás nas entrelinhas das missivas
precedentes, em isoladas menções, e quiçá em frases de bem-comportada
admoestação. Não há, pois, nada a fazer, o que talvez já seja um começo.
Por
falar em fazer, há mais de semana que os e-mails
relacionados com a tua sucessão se aquietaram. Não me atrevo a afirmar que
está tudo resolvido, mas se pode dizer que as principais questões foram
atendidas. A rotina do pagamento mensal da pensão vitalícia já se iniciou,
aberta a conta em Miami com o número pertinente, e a remessa dos talonários de
cheque aguarda apenas que o depósito do seguro se realize. As nuvens no horizonte concernem à
reorganização da vida da Therezinha. Este mês de agosto será ainda atípico, com
a gordura extra dos atrasados de junho. A partir de setembro o contracheque
refletirá a sua efetiva renda mensal. Sugeri ao Dr. Brito que aconselhe Thérèse
a, se possível, não mexer no capital do
seguro, e inverter o dinheiro em time
deposits. Basta uma instrução ao banco e ela poderá ter, por exemplo, dois time deposits com vencimento trimestral.
O juro é calculado com base na taxa vigente no dia inicial da aplicação e para
maior comodidade se autoriza a renovação automática. Quanto aos juros que
renderem, ela pode dispor que sejam creditados em conta, ou agregados ao
respectivo time deposit. Com a atual
elevação da taxa pela Reserva Federal, esse investimento se tornou mais
lucrativo. Se a tua esposa souber gerir esta soma, poderá
eventualmente comprar algo de que necessite, sem endividar-se e manter um trem
de vida um pouco superior àquele proporcionado pelo contracheque do Itamaraty.
Cabe ao Dr. Brito, que tem ido semanalmente a Petrópolis, bem orientá-la para
que não dilapide o capital. A presença dele se afigura também importante, não
só para afastar os mouros da costa, senão para convencê-la a livrar-se de
despesas inúteis.
Como vês, a maior parte das
providências se transfere para a Visconde do Uruguai. O meu papel tende,
portanto, a diminuir. A propósito, em correspondência com o Rezende de oito de
agosto, escrevia eu: “Sem o Dr. Brito não teria sido possível montar o esquema
de sustentação da Therezinha. Mantenho com este amigo secreto do Pedro um
diálogo constante através da internet. Veja a ironia. Sem o computador, que o
nosso Pedro abominava, como seria factível realizar tanta coisa à distância,
vencer os óbices burocráticos, valendo-me de apoios pontuais e determinantes.
Lá de cima, ele poderá ver que o novo paradigma não é tão feio quanto lhe
parecia... Muito pelo contrário.”
Trocando em miúdos, meu caro amigo, as
coisas se vão ajeitando. Em ordem de tentativa prioridade, restam a venda do
carro, a decisão de possível mudança e a redução da criadagem, a venda da tua
biblioteca e a publicação do “Animal Político”.
Semelha
não haver motivo válido para não
vender o automóvel. Hás de convir que a sua serventia é pequena, a par de
acarretar gastos permanentes como o imposto anual, o óleo e a gasolina, para
não mencionar a conta da oficina, tão corriqueira nos velhos carros. Quiçá o
maior benefício de aliená-lo, será a oportunidade de afinal liberar a viúva
desse traste que é o Hermes (x), com o pretexto irretorquível de que não há mais necessidade de chofer.
Sei
o quanto o casal apreciava residir em casa espaçosa, cercada por muros caiados
de branco, pátio lajeado e a viçosa, florida vegetação serrana. Sei, igualmente, que a Therezinha muito
aprecia esse pequeno, particular, protegido mundo de que é senhora.
Embevecidos, os seus olhos contemplam as alvas cópias de estatuetas
neoclássicas que às mancheias lhe compraste, ora disseminadas pelo verde dos canteiros, como se fossem petrificados
visitantes em um jardim de antanho. O problema não seria tanto o medo que senti também envolver a
mansão, as cortinas e venezianas sempre cerradas, quanto limitações mais
prosaicas ditadas por fundos insuficientes para sustentarem a simples
permanência na rua Visconde do Uruguai, 128, naquele cenário um pouco fora de
moda, por ti destinado para entreter as fantasias de uma pessoa enclausurada
por audição deficiente e velhos hábitos cristalizados ao longo de cinquenta
anos de matrimônio.
Muita vez, os dispêndios se avultavam
diante de ti, crescendo desproporcionais para os recursos remanescentes, que
terás visto escorrer como as águas dos
temporais, a entranhar-se na terra ávida e luxuriante da mata atlântica. Na
ânsia de atender aos desejos da companheira, que podiam parecer modestos, posto
que não cessassem, viste definhar a tua conta bancária. Do solar na larga
chácara da Barão do Rio Branco para a residência no terreno do condomínio
fechado de Valparaíso, as economias amealhadas em carreira encurtada pela
tardia entrada no Itamaraty foram sendo sangradas, quase à feição dos odiados
picadores, a quem incumbe debilitar a besta taurina, para que os toureiros
famosos, com seus trajes de luces
refuljam nos espetáculos da rápida temporada da acanhada plaza de toros quitenha.
Hoje, o que antes seria leve, inconsequente
suspeita, cai dentro de mim com a dureza das amargas verdades. Pedro, agora
vejo que a tua existência retornara aos apertos de dinheiro da juventude. Com
efeito, o salário creditado em conta estava longe de ser consentâneo com a
criadagem, a mansão e os inocentes caprichos da esposa. O próprio Dr. Brito se
espantara com a modéstia da tua declaração anual do imposto de renda,
preenchida à mão, no modelo verde simplificado. Agora, como compreendo o teu
esquadrinhar do contracheque, na busca incansável de erros ou de deduções
descabidas, cuja eventual descoberta aumentasse um pouco que fosse a paga, e
ainda mais neste instante, me envergonha a minha sobranceira indiferença
defronte da suposta perda de tempo em tentar desvelar os arcanos mistérios da
contabilidade estatal. Pesa-me dizer-te que agora me confrange a tua
incredulidade diante do meu olímpico distanciamento dos ítens e sub-ítens da
folha de remuneração. Sem o perceber, marcava eu, e não com risco de giz, a diversidade
na condição, e o que é pior, a tua gravosa falta de meios.
Com a implacável frieza das operações
aritméticas, a insensível sobrecarga de uma existência a requerer sempre mais,
não é difícil conceber a posteriori o
real significado de que a totalidade dos teus haveres se resumia a poupança de
dez mil reais na Caixa Econômica Federal. Nada mais possuías, ou, o que
certamente corresponderá melhor às tuas perspectivas, a tal nível havia chegado
o que dispunhas para uma emergência.
Como as peças da pancada da véspera se
evaporam, sob os raios do meridião, em fugazes, volúveis, iridescentes brumas,
assim o teu saldo bancário se viu reduzido a zero, por causa da breve e trágica
estada na vizinha casa de saúde, para a qual foste conduzido às pressas,
praticamente in extremis.
Ao repassar a crise que atravessavas, sob a soturna guia da introspecção
que nos ajuda a recoser o gobelino dos anos terminais da tua vida, compreendo
tantas coisas – as tuas rápidas falas ao telefone, quando me ligavas; a
voracidade no restaurante, que acenava com frugais refeições caseiras; as
pesquisas no sebão da rua do Carmo, e os livros deixados com o Henrique, para
“comprar depois”; o cheque escrito às pressas, na conversão demasiado
conservadora, em paga de volumes por mim trazidos do estrangeiro; as
postergações dos almoços no Rio e o seu espaçamento nos últimos anos, que
erradamente eu atribuía à velhice, e não à hesitação em incorrer em mais
despesas; as invectivas contra o plutocrata Roberto Marinho, que não seriam
mera implicância, mas raiva visceral diante da acintosa riqueza e das mofinas
apoquentações de uma pobreza demasiado próxima.
No entanto, meu bom e generoso amigo Pedro, existe no teu drama – que
pode até explicar a tua primeira negativa de internação – uma gritante
contradição. Linhas acima, falo de desembolsos com a criadagem, a mansão e os
caprichos de Thérèse. E, sem embargo, mergulho no relato não só de dificuldades
financeiras, mas também na importuna aproximação de um sentimento de pobreza,
nascido não de fúteis apreensões, mas da diuturna realidade.
Deparavas, entre confuso e agoniado,
reversão lenta porém na aparência inelutável. Gozavas de boa saúde – pelo
menos, dizias manter-te à distância dos consultórios médicos, embora não
julgaste apropriado confiar-nos a existência do terceiro amigo, por
coincidência um clínico que te tomava regularmente a pressão, em almoços
quinzenais no Falcone; guardavas a lucidez, a álacre busca do saber e o gosto
por um bom chope bem gelado, às vezes com o tempero de um gole da Ipioca do
Rezende; se bem que um tanto emagrecido, continuavas de porte desempenado e efusivo
nos cumprimentos; em uma palavra, sabias compartimentalizar a angústia da
crescente discrepância entre a tua bolsa e as obrigações que, ao invés de
dissipar-se nos vales serranos, inchavam sempre mais.
Este intruso, a roupa sovada e brilhosa,
o colarinho puído, os punhos encardidos, não era criatura de romance, mas a
reificação da ameaça que sentias sobrepairar acima dos teus bem-cuidados muros. A cada ano, terás
lobrigado esse lento e irresistível avanço, enquanto progressivamente se
rasgava o tecido inconsútil com que pensaras envolver o teu projeto
existencial. As concessões à tua mulher não constituíam o único fautor da
morna e morosa descida para as precisões e vergonhas da necessidade.
Representavam, sem dúvida, um componente do quadro, mas a clef de voûte desta construção se acha nos fundos da propriedade,
guardada pela coruja de Palas Atena e
encimada pelo dístico Humanitas.
A contradição se exacerbava, carregada de
um fado cruel. Aos livros dedicaras a vida, refugiando-te nos páramos de Quito,
não só para manter distância de visitas importunas, mas, sobretudo, para dispor
de tempo e lazer, daquela sxolé (3) que seria impensável na azáfama das
grandes embaixadas e nas repetidas concessões no comportamento, sob as vistas
indiscretas de exíguo grupo que luta por migalhas de um poder, no contexto
geral, em verdade medíocre.
Como em romance da Comédie Humaine, pensarias porventura na aparição da esquálida
choldra dos credores e seus prepostos, quando tocasse o dobre da impecúnia? A
angústia que bate à porta do futuro devedor, de quem assiste impotente ao
irreversível exaurimento das minguadas posses e que perplexo se vê prestes a
cair, tangido pela força inercial da geleira da inadimplência, nas agruras do
fiado nas vendas e quitandas da vizinhança, nos sobressaltos dos juros
escorchantes do cheque especial, e as imagens sombrias, nas noites insones, da
penosa passagem sob as forcas caudinas da renovação de míseros papagaios.
No confinado horizonte da montanha, já
entreverias ao longe esse cortejo de mau augúrio. Terás pensado no velho
companheiro e presença bissexta nos almoços, que importunava os convivas com a
desfaçatez de achacar-lhes uns trocados, sob as constrangidas vistas da dupla ?
Só a evocação te faria horror, eis que não eras talhado para esse triste papel.
E, não obstante, à falta de outros
recursos, o quadro sombrio se prefigurava mais do que verossímil, máxime nos
fins de mês, quando o cerco se delineava
mais nítido.
Como
poderias contemplar a hipótese da terceira mudança – de fato, uma quarta,
se computado o duplex na Joaquim
Nabuco. Todas essas travessias teriam
parte no processo lento e perverso de te tornar o futuro inda mais acanhado.
Com a alienação de outro usufruto e a carga dos impostos, que perspectivas te
restavam ? Como retirar Thérèse do seu encolhido castelo e trazê-la para um
apartamento sem verdes espaços nem lugar para estatuetas que pareciam replicar
imagens de daguerreótipos ? Como seria concebível, enfim, arrancar os milhares
de livros do anexo, com a imensa escrivaninha e múltiplas estantes, para
colocá-los onde ?
Refarias,
então, ao inverso, o longo e largo caminho que os depositara no sobrado que
fizeras construir em cima da garagem ? Só que a volta não tornaria para escala
na bucólica Barão do Rio Branco e sim infletiria para os desvãos dos
corredores, dos cômodos mofinos, e de pé-direito atarracado, quase
claustrofóbico, de apartamento em que sequer poderias ambicionar lá dispor
parcela importante da biblioteca ?
A forçada renúncia ao teu ambiente
existencial, por acaso terias lograda reprimi-la nos porões do subconsciente,
daquele id em que vivem tantas pulsões inconfessas, talvez embalado por sonhos
difusos e teimosas procrastinações ?
Se assim foi, meu caríssimo Amigo,
permita-me que contigo me alegre, pois as Parcas te pouparam do sacrifício
ignóbil de um atroz, pungente recuo para dentro da caverna, como se os deuses
te quisessem castigar pela âñéò[1] da posse da tua errante biblioteca, saída da
pensão no Catete, com a tua incipiente série filosófica, crescida em torno da
obra do único filósofo brasileiro, Farias Brito, e que já visitara tantos
rincões (Lutécia, Lima e enfim Quito), onde transcenderia os limiares da
coleção privada, para alçar-se, na imitação
dos verdejantes montes que abraçam a capital equatoriana, a espaços mais
largos e profundos.
A pergunta, portanto, não cabe, porque
o teu silêncio, ao invés do adágio latino, não implica aprovação.
Esta correspondência se estendeu quem
sabe demasiado. Mas se algo pode vislumbrar por entre as sombras do Hades e as
trevosas névoas do Tártaro, estará a certeza de que, enquanto vivo foste,
lograste, posto que a duras penas, conservar a aparente realidade de um mundo
ameaçado, porém felizmente intato até a tua partida à francesa que pode até ser
a moveable feast se desatarmos as
travas da imaginação e enveredarms pelos recônditos mistérios que se encerram
em teus incontáveis livros, comprados, seja nos tempos das vacas gordas, seja
das magras, com alegria, amor e ambição, sem falar do deslavado apego na busca
insana e infindável das miríades de recantos nas tortuosas veredas do humano
conhecimento.
Meu grande amigo e generoso mestre, não
sei quando terei a oportunidade de trocar não dedos de prosa, senão descansadas
conversas em ignotas paragens, mas a minha acidental proximidade do Olimpo me
acena com a certeza dessa reunião, despojada dos cuidados e das maçadas do
espaço terráqueo.
Com o abraço que traz em si a saudade,
esse dúbio dom da língua portuguesa, que pretendemos cinzelar em placas de
granito em uma nova Torre de Babel, cujos planos, dizem, andam adiantados, e
que talvez se alevante, na arrogância que associam às alturas, no terreno hoje
conhecido como Ground Zero,
* *
(2) pseudônimo.
(3) estudo; lazer.
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