segunda-feira, 17 de junho de 2013

Cartas ao Amigo Ausente (XI)

                            
                                                   X I

 

  
       Meu bom e generoso Amigo Pedro,

 

       não é incomum que o cinema apresente, à guisa de antecâmara do paraíso, as brancas e rugosas nuvens com que conviviam os aviadores do tempo de Saint-Exupéry. Não sei se entraste nessa fila bem-comportada, em que os recém-vindos aguardam a vez, com infinita paciência. De minha parte, estou propenso a pensar que terás sacudido um pouco este torpor que a imaginação de Hollywood – se ainda a retém nesses anos de gordos orçamentos e magro engenho – associa aos vestíbulos da burocracia celeste. Não me espantaria, portanto, que, entre absorto e apressado, avançasses com o teu passo costumeiro, ansioso em colher da proverbial figura de longas e sedosas barbas brancas prontas indicações acerca da próxima partida para o destino que te fora reservado. Não sei se o humor de São Pedro se alteraria. Afinal, se em vida jamais respeitaste as filas das rodoviárias, nesse comportamento não vendo decerto mal algum, porque irias em novas circunstâncias mudar os teus modos ? Em geral, se alguém se sentisse defraudado, o jeito pachorrento do Rezende trataria de apaziguar-lhe a despropositada ira.  E se por acaso as reclamações te chegassem aos ouvidos, como esquecer o rosto atônito de quem não vê motivo para protestos tão descabidos.

        Tinhas acendrado respeito à cultura e ao estudo, e por isso não haveria santo que induzisse a votar em candidato que fosse desprovido de tais insígnias. O teu apreço pelas coisas do espírito não impediria, contudo, que viesse a empatizar com o assaltante do ônibus, se porventura intuísses no saqueio dos passageiros a motivação social.  Certa feita me contaste que, da tua dianteira poltrona, e a despeito do natural antagonismo entre o bandido e as vítimas, o salteador de beira de estrada te dera confiante as costas, por haver lido na tua expressão estar ele a agir dessa forma por não dar-lhe a sociedade outra saída.

        Terá sido igualmente a razão que não te levou a exigir a libra de carne da empregada que, à traição, se apoderara de todos os comprovantes da paga recebida, e se aventurou na justiça trabalhista a exigir o que não lhe era devido. Acresce notar que dispunhas de testemunhas diversas para comprovar o furto por esta camareira das jóias de família de tua mulher. Advogado que eras, inscrito na O.A.B., e com a assessoria de especialista em direito do trabalho, enfrentaste desgastante ação, sem embargo de covardes ameaças e até de pichações nos caiados muros da Visconde do Uruguai. Sabias entrever no mal um resquício de esquecida bondade, e relevar os boçais impropérios sob o manto esgarçado da imperante impunidade. Com a tua lisura e límpida exação ganhaste a admiração do encanecido e experiente juiz trabalhista, que do ofício soube conjugar o domínio da lei com a prática das pessoas. A prova desses longos meses da ação fraudulenta deixaria em ti a marca discreta da inerente hesitação com que respondias a chamadas telefônicas. Por um átimo, te cruzavam a mente soezes memórias de gente ruim. Depois, na ligeira, levíssima inflexão o alívio de vê-las dissipadas.

        “M-mauro ??”

         Não sei se deveria perguntar-te acerca da campanha de infâmias e tentativas de intimidação. Guardo a impressão que prezavas demasiado a privacidade, para desperdiçar minutos preciosos em questões tão baixas, tão indignas da atenção da  gente de vida morigerada, respeitadora das leis e dos homens.

         A cada telefonema, feito é bom que se diga, à hora combinada, sentia na pausa inicial e no incerto assomo, que na oclusiva se disfarçava, a reaparição fugaz de um revenant[1], que sub-repticiamente cuidava de viva manter a lembrança dos velados temores que outrora se alçavam de urzes e charnecas, e hoje parecem irromper de toda parte.                                            

         Mas voltemos aos pontos deixados em suspenso, que alinhei na carta precedente. Da mudança de casa e da redução da criadagem, o que foi antes dito torna a resposta a esses dois tópicos como praticamente resolvida. Dificilmente Thérèse poderá sustentar um trem de vida que, já com o teu ordenado mais alto, não mais se afigurava viável.

         Com os serviçais, a coisa se encaminha na mesma direção. A pobre da Geralda faleceu, vítima também de um AVC, depois de passar vários dias na UTI. E o jardineiro foi dispensado. Não sei porque mantiveram o Hermes (x), que exigia mundos e fundos, e que foi mantido com dois salários mínimos. À distância, não logro entender a razão de conservá-lo.

     Quanto à biblioteca, seria preferível preservá-la pela cessão a uma universidade, ou a instituição estatal. Francamente falando, não vejo quem possa negociar essa delicada questão. Se lá estivesse, me prontificaria de bom grado. Por ora, o mais relevante será evitar que venha a cair nas mãos de donos de sebo, por dois motivos: a par de ser comprada a preço vil, a tua coleção se pulverizaria nas mãos de incontáveis adquirentes. Lembras-te daqueles feixes de tomos com que nos deparávamos amiúde ao adentrar o sebão da rua do Carmo ? Não gostaria que os teus livros tivessem igual sorte.

       Por fim, a publicação do “Animal Político”. Na sua última missiva, o Rezende me anunciou o propósito de falar a respeito com seu amigo, o Vice-Reitor da Pontifícia Universidade Católica. Em verdade, vejo a PUC mais como possível adquirente da biblioteca, do que encarnando o papel de editora da tua obra. No entanto, a iniciativa pode dar frutos. Na conversa com o Vice-Reitor, o Rezendão, como tu gostavas de chamá-lo, pode ser encaminhado para possíveis interessados.

        A esse propósito, te confidencio uma cousa. Não sei o que te animou, ao deixares em mãos da velha raposa livreira, a dona Vanna, um exemplar do typescritpt. Para mim, se me desculpas a franqueza, não creio que ela se disponha a este passo. Primo, porque não possui editora; e secondo, porque este não é o seu mister. Nas palavras que escrevi para o Rezende, livreiros vendem livros, que outros publicam.

       De qualquer modo, o contato do Rezende com o Vice-Reitor pode ser útil, mesmo se não obtiver resultados imediatos. O que carece é pesquisar domínios onde o interesse  pela filosofia e, em especial, por Aristóteles venha a aumentar a possibilidade de um editor considerar mais seriamente a publicação. Dada a qualidade do teu escrito, a sua atualidade em termos de bibliografia, e a amplitude dos temas que versas, encaro com um certo otimismo que o “Animal Político” abandone o seu ineditismo dentro de um prazo razoável.

        Para  a edição, existem, a meu juízo, dois obstáculos. Sendo um datiloscrito, tenderá a topar com a má vontade de parte dos editores. Nos tempos que correm, meu caríssimo amigo, nenhum autor submete ao exame dessa gente trabalhos que não estejam gravados em disquete. É exigência conhecida de todos, eis que os eventuais  publishers não querem saber de contratar digitadores para tal. Pressupõem-na como conditio sine qua non.
       Pedro, adivinho um ar de surpresa na tua face. ‘Ora, terá o Mauro esquecido a minha atitude perante o computador ?’ Essa tua pergunta, com leve matiz de ironia, também quase chegou a imaginar ouvi-la.

       Ora, como poderia considerar-me teu amigo se ignorasse essa tua posição? Mas aqui não se trata de discutir dos efeitos deste novo paradigma, e do que pensas a respeito. É questão por demais relevante para que a salpicássemos em um punhado de parágrafos, delegando a outros a faina de juntá-los e apresentá-los em um todo coerente e articulado. Para imitar o Estagirita, disso trataremos oportunamente.

      Eis que não cabe nesse momento dissertar sobre o mérito da questão, ou inquirir-se acerca do dever ser. Para empregar terminologia que igualmente dominas, deparamo-nos com um problema de procedimento. Se o nosso comprador só aceita que a mercadoria venha embalada de certa forma, será para o vendedor putativo um exercício de futilidade arguir a propriedade ou não desta premissa.

     E para ti, dadas as circunstâncias, a tratativa se vê facilitada. Em verdade, estou propenso a crer nessa hipótese. Rememorando a tua reação, quando te instávamos a ser um tanto mais empenhado na tarefa de encontrar editor, sentia indisfarçável reticência, e até mesmo difusa relutância em confrontar este passo inevitável. Depois da elaboração solitária do “Animal Político”, ou de qualquer obra, literária, filosófica, artística, científica, etc. o autor inédito pode cair vítima de estranho sortilégio. Acreditar que já fez a sua parte, e que, em geração espontânea, algo ou alguém a transportará da gaveta para o prelo.

     Não há, decerto, ilusão mais doce e envolvente. As fórmulas mágicas, desafortunadamente, nós os escritores ignotos, temos de deixá-las para os fautores de best-sellers.  

     Mas não te preocupes, meu caro Pedro. Para isso, há remédio. Não será difícil converter o typescript do “Animal Político” em disquete. Basta escaneá-lo.

      Não, Pedro, escanear não é variante de palavra chula. Como preferiste te manter ao largo de tudo o que dissesse respeito ao computador, é bom que saibas tratar-se de neologismo, de resto já consignado no Houaiss. Deriva-se do aparelho denominado scanner que, por ler textos e reproduzir imagens, possibilitará assim a gravação em uma simples disquete das quase duzentas páginas do teu livro.

     O outro problema se refere à inexistência tanto de bibliografia, quanto de índice onomástico. Para monografia do nível da tua, se me afigura impensável publicá-la sem agregar essas duas seções.

     Tais lacunas não devem, todavia, constituir motivo de inquietude. Como pretender que com as teclas da tua Olivetti pudesses idealizar a feitura da relação bibliográfica e o elenco dos nomes citados em curto período de tempo ?

     Tão logo escaneado o texto, um técnico em computação poderá servir-se do programa de software já gravado no disco duro para criar as seções suplementares, com base nos recursos da informática. Para ti, a disposição sobretudo do índice, sempre com os inevitáveis lapsos à espreita, implicaria em labuta insana, que consumiria meses e meses, senão anos. Para ele, ao invés, o programa cuidaria de agregar aos nomes os respectivos números de página, sem a possibilidade de erro...  E a bibliografia, pelas suas características, tomaria ainda menos tempo.

        Completada a conformação do texto integral, de posse destes indispensáveis adendos, estaremos armados de disquete que faça mais justiça ao teu abrangente e aturado esforço de três lustros, e que mostre a gregos, troianos e filisteus não só a erudição, mas também a capacidade da tua decorrente cultura de, através de aparente, posto que estreita, fresta no imenso corpus aristotelicum, abrir larga e variegada profusão de luzes biológicas, antropológicas, linguisticas, semiológicas, históricas e filosóficas. Da frase famosa e controversa, porém na verdade apenas uma frase inserida nas linhas introdutórias da Política de que “o homem é, por natureza, um animal político” engendraste obra que, qual janela, mostra husserliana realidade de vasto conhecimento, ora colocado a serviço dos estudiosos da interação de homem e política, não cingida unicamente à Antiguidade clássica, mas trazida até os tempos contemporâneos, em douta e detida análise da evolução (e involução) da pessoa humana.

        Os panegíricos não são do meu feitio, nem tampouco me tolda a vista a amizade de quarenta anos. Parafraseando um dito célebre, não criar condições para que o teu livro seja publicado, mais do que um crime, seria um erro. De longe ou de perto, hei de empenhar-me em poder, dentro de espaço de tempo condizente, colocar em letra de forma e ao alcance não de uns poucos, mas de todos aqueles que no Brasil e alhures se interessam por problemas filosóficos e a influência do Estagirita através dos séculos.

       Se nos dias de Platão, um livro era considerado publicado após a leitura do manuscrito, em geral por um escravo, perante grupo de pessoas adrede convidadas, terá despertado a espécie do filósofo da Academia que um dos seus discípulos, Aristóteles, quebrasse tal prática, comprando e lendo em sua casa ôN âéâëßá[2] que lhe chamassem a atenção. Daí a frase de Platão - EÁðßùìåí åkò ôxí ôï Píáãíþóôïõ ïkêßáí[3] - referida no parágrafo sexto da Vita Marciana. Em seu comentário, Düring assinala a relevância da anedota para mostrar a diferença de approach entre Platão e Aristóteles. Nessa época, a maior parte dos homens, inclusive os jovens da Academia, ‘ouviam’ livros; Aristóteles, sublinha o classicista sueco, ‘lia’ como fazemos nós. Mais tarde, se difundira a prática de ‘ler’. Como acentua Düring, este tópico somente é inteligível se o dito do Mestre data dos anos 360 a.C.

       Dessarte se explica o cognome de ‘o Leitor’ dado a Aristóteles. De seus diversos epítetos, será decerto um dos mais obscuros.  Entretanto, menciono o episódio para apontar um tempo em que a ‘publicação’ de livro – no caso, um rolo de manuscrito – se afigurava relativamente simples. Seria igualmente efêmera se o autor não engajasse copistas para aumentar o número de exemplares.

       Por uma estranha reviravolta, a revolução na informática tende a facilitar tal publicação, eis que a tecnologia atual já possibilita prescindir de editores (e distribuidores), para não falar dos intermediantes agentes. Qualquer pessoa medianamente instruída nessa disciplina pode ‘colocar’ um texto na internet; e, por outro lado, conquanto esta técnica ainda careça de aperfeiçoamento, ora é factível proceder ao download de um livro de um site predeterminado, por exemplo, de biblioteca (ou porque não o file de um computador) para qualquer livraria, onde seria composto e encadernado. Como vês, o novel paradigma abre novos horizontes na difusão do saber – assim como Gutenberg em seu tempo -, a par de criar dificuldades no campo da preservação dos direitos autorais.

       As fases de transição podem ser interessantes, no sentido que os chineses emprestam a esse adjetivo. Sobre tal ponto, preferiria deixá-lo para quando nos debruçarmos no teu repúdio à informática. Diga-se apenas que, em abrindo a caixa de Pândora, muitos males repontam, mas também inúmeras mercês como, v.g., acabar com a praga dos livros esgotados...

        Sem nos apartar de todo desta matéria, gostaria de versar contigo outra faceta dessas criaturas que devemos exclusivamente aos escritores. Outro dia, li artigo no New Yorker – que, se vivo estivesses, me ocuparia de logo mandar-te cópia – com o título “Late Works – writers confronting the end”[4]. Embora inspirado por livro póstumo do grande pensador e crítico Edward W. Said, acerca de derradeiros trabalhos em música e literatura de grandes artistas e escritores, John Updike, como contador de estórias, articula a sua crítica precipuamente sobre romancistas e teatrólogos.

        Se a obstinada vontade de continuar a escrever, sob o acicate de difuso sentimento da proximidade do fim, terá resultado em obras merecedoras de orgulho ou esquecimento, cresceu na minha mente, durante a leitura dos parágrafos por vezes túrgidos de Updike, a convicção de que o “Animal Político”, se começara como simples exercício a respeito de uma expressão de Aristóteles, experimentaria, com o passar dos teus anos, sensível mudança. Posto que válido, lúcido e vigoroso, Cronos principiava a manifestar-te na lenta progressão das sombras vespertinas, imagens ainda latentes das insídias da finitude. Talvez de modo inconsciente, decidiste então romper as talas de quatro capítulos esquemáticos, que conformavam a monografia, e lançar-te por campos antes não explorados.

       Havida a premonição ou não de que no vaso superior da ampulheta a areia começava a escassear, o fato inegável da mudança no formato da obra indicava certa que transcendia o objeto imediato do trabalho. As portas foram abertas para outras inquietudes e outros temas, que pensavas de algum modo se conectarem com a ideia geral que discutias. E se a ampliação não pode ser desconhecida, creio que soubeste descerrar as porteiras de maneira a preservar uma unidade articulada na diversidade das referências.

        Em determinado instante – de que talvez nem te hajas dado conta – ao zelo para a compleição do livro através da multiplicação dos excursos e das apostilas em que se transformaram muitas notas de pé de página (as tuas, por ditames da Olivetti, viriam sempre ao final dos capítulos) se substituiria o afã de terminá-lo. Não obstante este desígnio, a princípio larvar, foste buscar nos arcanos da tua sabedoria os materiais indispensáveis  para arrematá-la na expressão do personagem Auda abu Dai do clássico ‘Lawrence of Arabia’ de David Lean, “como algo que te fosse honroso”.

       Aceitando a deixa, interrompamos por umas horas nosso diálogo epistolar, para que tenha tempo de atender, neste cair de tarde, aos gravames que o aferrar-se a intricado ofício semelha suscetível de causar,

       com o abraço saudoso do amigo de sempre,

 

 




[1] assombração
[2] os livros
[3] Vamos para a casa do Leitor
[4] ‘Obras tardias – escritores confrontando o fim’
 (x) pseudônimo.
 

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