X
I
não é incomum que o cinema apresente, à
guisa de antecâmara do paraíso, as brancas e rugosas nuvens com que conviviam
os aviadores do tempo de Saint-Exupéry. Não sei se entraste nessa fila
bem-comportada, em que os recém-vindos aguardam a vez, com infinita paciência.
De minha parte, estou propenso a pensar que terás sacudido um pouco este torpor
que a imaginação de Hollywood – se ainda a retém nesses anos de gordos
orçamentos e magro engenho – associa aos vestíbulos da burocracia celeste. Não
me espantaria, portanto, que, entre absorto e apressado, avançasses com o teu
passo costumeiro, ansioso em colher da proverbial figura de longas e sedosas
barbas brancas prontas indicações acerca da próxima partida para o destino que
te fora reservado. Não sei se o humor de São Pedro se alteraria. Afinal, se em
vida jamais respeitaste as filas das rodoviárias, nesse comportamento não vendo
decerto mal algum, porque irias em novas circunstâncias mudar os teus modos ?
Em geral, se alguém se sentisse defraudado, o jeito pachorrento do Rezende
trataria de apaziguar-lhe a despropositada ira.
E se por acaso as reclamações te chegassem aos ouvidos, como esquecer o
rosto atônito de quem não vê motivo para protestos tão descabidos.
Tinhas acendrado respeito à cultura e
ao estudo, e por isso não haveria santo que induzisse a votar em candidato que
fosse desprovido de tais insígnias. O teu apreço pelas coisas do espírito não
impediria, contudo, que viesse a empatizar com o assaltante do ônibus, se
porventura intuísses no saqueio dos passageiros a motivação social. Certa feita me contaste que, da tua dianteira
poltrona, e a despeito do natural antagonismo entre o bandido e as vítimas, o
salteador de beira de estrada te dera confiante as costas, por haver lido na
tua expressão estar ele a agir dessa forma por não dar-lhe a sociedade outra
saída.
Terá sido igualmente a razão que não te
levou a exigir a libra de carne da empregada que, à traição, se apoderara de
todos os comprovantes da paga recebida, e se aventurou na justiça trabalhista a
exigir o que não lhe era devido. Acresce notar que dispunhas de testemunhas
diversas para comprovar o furto por esta camareira das jóias de família de tua
mulher. Advogado que eras, inscrito na O.A.B., e com a assessoria de
especialista em direito do trabalho, enfrentaste desgastante ação, sem embargo
de covardes ameaças e até de pichações nos caiados muros da Visconde do
Uruguai. Sabias entrever no mal um resquício de esquecida bondade, e relevar os
boçais impropérios sob o manto esgarçado da imperante impunidade. Com a tua
lisura e límpida exação ganhaste a admiração do encanecido e experiente juiz
trabalhista, que do ofício soube conjugar o domínio da lei com a prática das
pessoas. A prova desses longos meses da ação fraudulenta deixaria em ti a marca
discreta da inerente hesitação com que respondias a chamadas telefônicas. Por
um átimo, te cruzavam a mente soezes memórias de gente ruim. Depois, na
ligeira, levíssima inflexão o alívio de vê-las dissipadas.
“M-mauro ??”
Não
sei se deveria perguntar-te acerca da campanha de infâmias e tentativas de
intimidação. Guardo a impressão que prezavas demasiado a privacidade, para
desperdiçar minutos preciosos em questões tão baixas, tão indignas da
atenção da gente de vida morigerada,
respeitadora das leis e dos homens.
A
cada telefonema, feito é bom que se diga, à hora combinada, sentia na pausa
inicial e no incerto assomo, que na oclusiva se disfarçava, a reaparição fugaz
de um revenant[1], que sub-repticiamente
cuidava de viva manter a lembrança dos velados temores que outrora se alçavam
de urzes e charnecas, e hoje parecem irromper de toda parte.
Mas voltemos aos pontos deixados em
suspenso, que alinhei na carta precedente. Da mudança de casa e da redução da
criadagem, o que foi antes dito torna a resposta a esses dois tópicos como
praticamente resolvida. Dificilmente Thérèse poderá sustentar um trem de vida
que, já com o teu ordenado mais alto, não mais se afigurava viável.
Com os serviçais, a coisa se encaminha
na mesma direção. A pobre da Geralda faleceu, vítima também de um AVC, depois
de passar vários dias na UTI. E o jardineiro foi
dispensado. Não sei porque mantiveram o Hermes (x), que exigia mundos e fundos, e que foi
mantido com dois salários mínimos. À distância, não logro entender a razão de
conservá-lo.
Quanto à biblioteca, seria preferível
preservá-la pela cessão a uma universidade, ou a instituição estatal.
Francamente falando, não vejo quem possa negociar essa delicada questão. Se lá
estivesse, me prontificaria de bom grado. Por ora, o mais relevante será evitar
que venha a cair nas mãos de donos de sebo, por dois motivos: a par de ser
comprada a preço vil, a tua coleção se pulverizaria nas mãos de incontáveis
adquirentes. Lembras-te daqueles feixes de tomos com que nos deparávamos amiúde
ao adentrar o sebão da rua do Carmo ? Não gostaria que os teus livros tivessem
igual sorte.
Por
fim, a publicação do “Animal Político”. Na sua última missiva, o Rezende me
anunciou o propósito de falar a respeito com seu amigo, o Vice-Reitor da
Pontifícia Universidade Católica. Em verdade, vejo a PUC mais como possível
adquirente da biblioteca, do que encarnando o papel de editora da tua obra. No
entanto, a iniciativa pode dar frutos. Na conversa com o Vice-Reitor, o
Rezendão, como tu gostavas de chamá-lo, pode ser encaminhado para possíveis
interessados.
A esse propósito, te confidencio uma
cousa. Não sei o que te animou, ao deixares em mãos da velha raposa livreira, a
dona Vanna, um exemplar do typescritpt. Para
mim, se me desculpas a franqueza, não creio que ela se disponha a este passo. Primo, porque não possui editora; e secondo, porque este não é o seu mister.
Nas palavras que escrevi para o Rezende, livreiros vendem livros, que outros
publicam.
De qualquer modo, o contato do Rezende
com o Vice-Reitor pode ser útil, mesmo se não obtiver resultados imediatos. O
que carece é pesquisar domínios onde o interesse pela filosofia e, em especial, por
Aristóteles venha a aumentar a possibilidade de um editor considerar mais
seriamente a publicação. Dada a qualidade do teu escrito, a sua atualidade em
termos de bibliografia, e a amplitude dos temas que versas, encaro com um certo
otimismo que o “Animal Político” abandone o seu ineditismo dentro de um prazo
razoável.
Para a
edição, existem, a meu juízo, dois obstáculos. Sendo um datiloscrito, tenderá a topar com a má vontade de parte dos editores.
Nos tempos que correm, meu caríssimo amigo, nenhum autor submete ao exame dessa
gente trabalhos que não estejam gravados em disquete. É exigência conhecida de
todos, eis que os eventuais publishers não querem saber de contratar
digitadores para tal. Pressupõem-na como conditio
sine qua non.
Pedro, adivinho um ar de surpresa na tua face. ‘Ora, terá o Mauro esquecido a minha atitude perante o computador ?’ Essa tua pergunta, com leve matiz de ironia, também quase chegou a imaginar ouvi-la.
Pedro, adivinho um ar de surpresa na tua face. ‘Ora, terá o Mauro esquecido a minha atitude perante o computador ?’ Essa tua pergunta, com leve matiz de ironia, também quase chegou a imaginar ouvi-la.
Ora, como
poderia considerar-me teu amigo se ignorasse essa tua posição? Mas aqui não se
trata de discutir dos efeitos deste novo paradigma, e do que pensas a respeito.
É questão por demais relevante para que a salpicássemos em um punhado de
parágrafos, delegando a outros a faina de juntá-los e apresentá-los em um todo
coerente e articulado. Para imitar o Estagirita, disso trataremos
oportunamente.
Eis que não cabe nesse momento dissertar sobre
o mérito da questão, ou inquirir-se acerca do dever ser. Para empregar
terminologia que igualmente dominas, deparamo-nos com um problema de
procedimento. Se o nosso comprador só aceita que a mercadoria venha embalada de
certa forma, será para o vendedor putativo um exercício de futilidade arguir a
propriedade ou não desta premissa.
E para ti,
dadas as circunstâncias, a tratativa se vê facilitada. Em verdade, estou
propenso a crer nessa hipótese. Rememorando a tua reação, quando te instávamos
a ser um tanto mais empenhado na tarefa de encontrar editor, sentia indisfarçável
reticência, e até mesmo difusa relutância em confrontar este passo inevitável.
Depois da elaboração solitária do “Animal Político”, ou de qualquer obra,
literária, filosófica, artística, científica, etc. o autor inédito pode cair
vítima de estranho sortilégio. Acreditar que já fez a sua parte, e que, em
geração espontânea, algo ou alguém a transportará da gaveta para o prelo.
Não há, decerto,
ilusão mais doce e envolvente. As fórmulas mágicas, desafortunadamente, nós os
escritores ignotos, temos de deixá-las para os fautores de best-sellers.
Mas não te preocupes, meu caro Pedro. Para
isso, há remédio. Não será difícil converter o typescript do “Animal Político” em disquete. Basta escaneá-lo.
Não, Pedro, escanear não é variante de palavra
chula. Como preferiste te manter ao largo de tudo o que dissesse respeito ao
computador, é bom que saibas tratar-se de neologismo, de resto já consignado no
Houaiss. Deriva-se do aparelho denominado scanner
que, por ler textos e reproduzir imagens, possibilitará assim a gravação em
uma simples disquete das quase duzentas páginas do teu livro.
O outro
problema se refere à inexistência tanto de bibliografia, quanto de índice
onomástico. Para monografia do nível da tua, se me afigura impensável publicá-la
sem agregar essas duas seções.
Tais lacunas
não devem, todavia, constituir motivo de inquietude. Como pretender que com as
teclas da tua Olivetti pudesses idealizar a feitura da relação bibliográfica e
o elenco dos nomes citados em curto período de tempo ?
Tão logo
escaneado o texto, um técnico em computação poderá servir-se do programa de software já gravado no disco duro para
criar as seções suplementares, com base nos recursos da informática. Para ti, a
disposição sobretudo do índice, sempre com os inevitáveis lapsos à espreita,
implicaria em labuta insana, que consumiria meses e meses, senão anos. Para
ele, ao invés, o programa cuidaria de agregar aos nomes os respectivos números
de página, sem a possibilidade de erro...
E a bibliografia, pelas suas características, tomaria ainda menos tempo.
Completada a
conformação do texto integral, de posse destes indispensáveis adendos,
estaremos armados de disquete que faça mais justiça ao teu abrangente e aturado
esforço de três lustros, e que mostre a gregos, troianos e filisteus não só a
erudição, mas também a capacidade da tua decorrente cultura de, através de
aparente, posto que estreita, fresta no imenso corpus aristotelicum, abrir larga e variegada profusão de luzes
biológicas, antropológicas, linguisticas, semiológicas, históricas e
filosóficas. Da frase famosa e controversa, porém na verdade apenas uma frase
inserida nas linhas introdutórias da Política de que “o homem é, por natureza,
um animal político” engendraste obra que, qual janela, mostra husserliana
realidade de vasto conhecimento, ora colocado a serviço dos estudiosos da
interação de homem e política, não cingida unicamente à Antiguidade clássica,
mas trazida até os tempos contemporâneos, em douta e detida análise da evolução
(e involução) da pessoa humana.
Os panegíricos
não são do meu feitio, nem tampouco me tolda a vista a amizade de quarenta
anos. Parafraseando um dito célebre, não criar condições para que o teu livro
seja publicado, mais do que um crime, seria um erro. De longe ou de perto, hei
de empenhar-me em poder, dentro de espaço de tempo condizente, colocar em letra
de forma e ao alcance não de uns poucos, mas de todos aqueles que no Brasil e
alhures se interessam por problemas filosóficos e a influência do Estagirita
através dos séculos.
Se nos dias
de Platão, um livro era considerado publicado após a leitura do manuscrito, em
geral por um escravo, perante grupo de pessoas adrede convidadas, terá
despertado a espécie do filósofo da Academia que um dos seus discípulos,
Aristóteles, quebrasse tal prática, comprando e lendo em sua casa ôN âéâëßá[2]
que lhe chamassem a atenção. Daí a frase de Platão - EÁðßùìåí åkò ôxí ôï Píáãíþóôïõ ïkêßáí[3]
- referida no parágrafo sexto da Vita
Marciana. Em seu comentário, Düring assinala a relevância da anedota para
mostrar a diferença de approach entre
Platão e Aristóteles. Nessa época, a maior parte dos homens, inclusive os
jovens da Academia, ‘ouviam’ livros; Aristóteles, sublinha o classicista sueco,
‘lia’ como fazemos nós. Mais tarde, se difundira a prática de ‘ler’. Como
acentua Düring, este tópico somente é inteligível se o dito do Mestre data dos
anos 360 a.C.
Dessarte se
explica o cognome de ‘o Leitor’ dado a Aristóteles. De seus diversos epítetos,
será decerto um dos mais obscuros.
Entretanto, menciono o episódio para apontar um tempo em que a
‘publicação’ de livro – no caso, um rolo de manuscrito – se afigurava
relativamente simples. Seria igualmente efêmera se o autor não engajasse
copistas para aumentar o número de exemplares.
Por uma estranha reviravolta, a revolução na
informática tende a facilitar tal publicação, eis que a tecnologia atual já
possibilita prescindir de editores (e distribuidores), para não falar dos
intermediantes agentes. Qualquer pessoa medianamente instruída nessa disciplina
pode ‘colocar’ um texto na internet; e,
por outro lado, conquanto esta técnica ainda careça de aperfeiçoamento, ora é
factível proceder ao download de um
livro de um site predeterminado, por
exemplo, de biblioteca (ou porque não o file
de um computador) para qualquer livraria, onde seria composto e encadernado.
Como vês, o novel paradigma abre novos horizontes na difusão do saber – assim
como Gutenberg em seu tempo -, a par de criar dificuldades no campo da
preservação dos direitos autorais.
As fases de transição podem ser
interessantes, no sentido que os chineses emprestam a esse adjetivo. Sobre tal
ponto, preferiria deixá-lo para quando nos debruçarmos no teu repúdio à
informática. Diga-se apenas que, em abrindo a caixa de Pândora, muitos males
repontam, mas também inúmeras mercês como, v.g., acabar com a praga dos livros
esgotados...
Sem nos apartar de todo desta matéria,
gostaria de versar contigo outra faceta dessas criaturas que devemos
exclusivamente aos escritores. Outro dia, li artigo no New Yorker – que, se
vivo estivesses, me ocuparia de logo mandar-te cópia – com o título “Late Works
– writers confronting the end”[4].
Embora inspirado por livro póstumo do grande pensador e crítico Edward W. Said,
acerca de derradeiros trabalhos em música e literatura de grandes artistas e
escritores, John Updike, como contador de estórias, articula a sua crítica
precipuamente sobre romancistas e teatrólogos.
Se a
obstinada vontade de continuar a escrever, sob o acicate de difuso sentimento
da proximidade do fim, terá resultado em obras merecedoras de orgulho ou
esquecimento, cresceu na minha mente, durante a leitura dos parágrafos por
vezes túrgidos de Updike, a convicção de que o “Animal Político”, se começara
como simples exercício a respeito de uma expressão de Aristóteles,
experimentaria, com o passar dos teus anos, sensível mudança. Posto que válido,
lúcido e vigoroso, Cronos principiava a manifestar-te na lenta progressão das
sombras vespertinas, imagens ainda latentes das insídias da finitude. Talvez de
modo inconsciente, decidiste então romper as talas de quatro capítulos
esquemáticos, que conformavam a monografia, e lançar-te por campos antes não
explorados.
Havida a
premonição ou não de que no vaso superior da ampulheta a areia começava a
escassear, o fato inegável da mudança no formato da obra indicava certa que
transcendia o objeto imediato do trabalho. As portas foram abertas para outras
inquietudes e outros temas, que pensavas de algum modo se conectarem com a
ideia geral que discutias. E se a ampliação não pode ser desconhecida, creio
que soubeste descerrar as porteiras de maneira a preservar uma unidade
articulada na diversidade das referências.
Em
determinado instante – de que talvez nem te hajas dado conta – ao zelo para a
compleição do livro através da multiplicação dos excursos e das apostilas em
que se transformaram muitas notas de pé de página (as tuas, por ditames da
Olivetti, viriam sempre ao final dos capítulos) se substituiria o afã de
terminá-lo. Não obstante este desígnio, a princípio larvar, foste buscar nos
arcanos da tua sabedoria os materiais indispensáveis para arrematá-la na expressão do personagem Auda abu Dai do clássico ‘Lawrence of Arabia’ de David Lean, “como
algo que te fosse honroso”.
Aceitando a deixa, interrompamos por umas
horas nosso diálogo epistolar, para que tenha tempo de atender, neste cair de
tarde, aos gravames que o aferrar-se a intricado ofício semelha suscetível de
causar,
com o abraço
saudoso do amigo de sempre,
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